Para além do caso Robinho: o significado da decisão do STJ na HDE 7986


A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na HDE 7986 (caso Robinho) é um marco na assistência jurídica internacional em matéria penal. Acertou muito o Tribunal Superior brasileiro mantendo uma tradição de abertura à cooperação internacional iniciada com a Resolução 9/2005 (sugerida pelo saudoso ministro Gilson Dipp),  sobre auxílio direto; consolidada por Teori Zavascki no caso Berezovsky (MSI/Corinthians; Recl 2645/SP, de 2009); renovada pelo ministro Ribeiro Dantas e outros juízes da Corte na definição do princípio lex diligentiae emmatéria probatória transnacional; e agora reforçada magnificamente pelo ministro Francisco Falcão (juiz com nome de craque) e os outros julgadores que formaram a maioria no caso Robinho para reconhecer a sentença penal italiana que o condenou por estupro. Este julgado afastou uma visão puramente soberanista da jurisdição penal e deu relevo à posição da vítima na cooperação jurídica internacional, sem privar o sentenciado de suas garantias judiciais.

O precedente sedimentado em 20 de março de 2024 avança na posição do STJ no tema porque proferida pelo seu principal órgão colegiado, a Corte Especial. Nos casos anteriores de homologação de sentenças penais estrangeiras, o STJ havia atuado apenas monocraticamente por sua presidência, nos termos do Regimento Interno, uma vez que não ocorreram impugnações defensivas. Todos os óbices levantados pela defesa do jogador foram afastados pelo STJ. Como sustentei neste texto publicado no Conjur, tais preliminares não eram procedentes.[1]

A decisão colegiada na HDE 7986 terá impacto positivo imediato no caso Falco – também condenado em Milão por estupro; foi correu de Robinho; e é parte da HDE 8016) – e num fato igualmente chocante, o caso Narbondo, que diz respeito ao coronel Pedro Antonio Mato Narbondo, brasileiro nato condenado na Itália por homicídios cometidos na Argentina durante a ditadura militar dos anos 1970, no contexto da Operação Condor.

Será interessante ver como a Corte trabalhará o tema da imprescritibilidade de graves violações de direitos humanos diante de uma sentença proferida em país europeu por um fato que, pela concepção que ainda prevalece nos tribunais apicais brasileiros, já estaria prescrito. A Corte IDH tem uma linhagem de julgados que ordenam que se afaste a prescrição nas graves violações de direitos humanos que constituam crimes de direito internacional ou crimes de jus cogens. O STJ reconsiderará sua própria posição contrária – vide o REsp 1.798.903/RJ, de 2019 – e avançará no controle de convencionalidade, conforme os parâmetros interamericanos? A adoção da compreensão defendida pelo ministro Rogerio Schietti no referido recurso especial – e que ficou vencido – poderia indicar que sim.

Se este ponto nodal for superado, o STJ deverá então decidir o que fazer com a sanção de prisão perpétua aplicada na Itália a Narbondo. Evidentemente, a pena de ergastolo – como se diz no idioma do Estado requerente – terá de ser parametrizada de acordo com a Constituição de 1988 e o Código Penal brasileiro, com dosimetria específica, dada sua vedação expressa no Brasil. Trata-se da HDE 8001.

O outro efeito positivo da decisão de ontem do STJ é abrir espaço e dar suporte mais claro e seguro para o reconhecimento por outros países de sentenças penais brasileiras, em casos de inextraditabilidade de seus nacionais. Fortaleceu-se, portanto, o princípio da reciprocidade no ordenamento nacional. Nosso primeiro episódio de transferência ativa do Brasil para o exterior ocorreu no caso Bauer, um homicida brasilense de 1987 que só foi preso no exterior mais de trinta anos depois de assassinar sua então namorada, a partir de condenação proferida pelo tribunal do júri de Brasília. Após a entrada em vigor da Lei de Migração, em 2017, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) pediu a transferência da condenação para a Alemanha, e a Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da PGR atuou naquela nação, com o apoio do Ministério da Justiça, para o reconhecimento da sentença brasileira, advindo o resultado positivo, com início da execução penal. Brasil e a Alemanha não têm tratado sobre o assunto, e a medida foi possível por reciprocidade.

Agora, com esse claro posicionamento do STJ, não precisaremos esperar tantos anos para fazer cumprir no exterior condenações proferidas no Brasil já que se pode afirmar a receptividade brasileira à homologação de sentenças penais estrangeiras, desde que proferidas com a observância de garantias judiciais internacionalmente reconhecidas, no mínimo aquelas instituídas pelo art. 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pelo art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Em última análise, a decisão do STJ no caso Robinho densificou na nossa jurisdição o princípio do reconhecimento mútuo, que é crucial para a efetividade da cooperação internacional e, por meio dela, para a tutela penal transnacional de direitos humanos. Ao ordenar o cumprimento da pena no Brasil, a Corte atendeu agiu como se esperava, fez o que era devido, decidiu como tinha de ser.


[1] Vide uma discussão mais extensa em: ARAS, Vladimir. O reconhecimento de sentenças penais estrangeiras no Brasil: os casos Robinho, Falco e Narbondo. Revista do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, v. 93, p. 161–194, jun. 2023.


[Este texto foi originalmente publicado no Conjur em 21 de março de 2024]

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