O direito ao meio ambiente saudável no sistema interamericano: o caso La Oroya vs. Peru


Em 22 de março de 2024, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) publicou sua sentença, datada de 27 de novembro de 2023, referente ao caso dos Moradores de La Oroya contra o Peru.

Fundada em 1681, a Villa de la Oroya é uma cidade de 33 mil habitantes situada na vertente oriental dos Andes peruanos, a 176 km de Lima. Há mais de cem anos ali se instalou o Complexo Metalúrgico de La Oroya (CMLO), para exploração de minério. Depois de décadas de exploração descuidada e irresponsável, a cidade tornou-se conhecida pelos seus altíssimos níveis de poluição, especialmente por rejeitos de chumbo que impregnam seu solo, numa contaminação que atingiu em certo momento 97% da população ali residente e reduziu drasticamente a expectativa de vida de seus habitantes.

O Complexo Metalúrgico La Oroya foi instalado em 1922 pela empresa americana Cerro de Pasco Copper Corporation. Depois a estatal Centromín Perú passou a operar o complexo entre 1974 e 1997. A Doe Run Perú, subsidiária da multinacional americana Doe Run Company, assumiu a unidade após sua privatização em 1997. A companhia começou o processo de liquidação em 2009.

Fonte: Wikipedia

A decisão em La Oroya é um marco na justiça ambiental. Pela primeira vez, a Corte IDH reconheceu a justiciabilidade do direito ao meio ambiente como um direito difuso e responsabilizou internacionalmente um Estado Parte da Convenção Americana de 1969 por sua violação, na perspectiva da salubridade e do direito à vida.

No caminho para esta determinação, a Corte em San José afirmou que o marco normativo internacional permite reconhecer que a obrigação de proteger o meio ambiente é uma norma de jus cogens, o que lhe dá caráter imperativo (§ 82 e 91-94 da sentença), nos termos da Convenção de Viena de 1969.

O Estado peruano foi declarado internacionalmente responsável por violações de direitos relacionados ao meio ambiente, saúde, integridade pessoal, vida digna, acesso à informação, participação política, garantias judiciais e proteção judicial, que afetaram concretamente 80 vítimas (38 mulheres e 42 homens) residentes em La Oroya.

A Corte concluiu pela ocorrência de omissão estatal em relação à prevenção da poluição ambiental por chumbo, cádmio, arsênico e dióxido de enxofre em função das atividades industriais realizadas em La Oroya e por não haver prestado informações cruciais para a população ali residente. Com isso, o Estado descumpriu o seu dever de devida diligência em matéria ambiental (§ 168).

Confirmou-se que havia um risco significativo para a saúde dos habitantes de La Oroya, com impactos severos na qualidade de vida das vítimas, especialmente crianças, mulheres e idosos. O Estado peruano falhou em fornecer informações completas sobre a poluição causada pela mineradora e não viabilizou a participação efetiva das vítimas nas decisões ambientais que lhes interessavam.

Câncer, lesões em órgãos vitais, infertilidade e danos irreversíveis ao sistema respiratório são algumas das consequências à saúde dos moradores de La Oroya causadas pelos altos níveis de metais pesados lançados no ar, no solo e nas águas daquela comunidade.

(Arce e Calderón, 2017). 

Em função dos danos causados à população circunstante, a Corte IDH ordenou várias medidas de reparação, incluindo o dever de realizar diagnósticos para determinar a contaminação por metais pesados e a prestação de atendimento médico gratuito às vítimas.

A decisão da Corte IDH no caso dos Moradores de La Oroya tem várias implicações importantes, tanto para o Peru quanto para a proteção dos direitos humanos nas Américas. Podemos destacar algumas delas:

  1. Reconhecimento dos direitos ambientais como direitos humanos: a sentença reafirma a importância de um ambiente saudável como parte fundamental dos direitos humanos e consagra o dever dos Estados de proteger esse direito. A decisão destaca a conexão entre o meio ambiente e outros direitos humanos, como o direito à saúde, à vida digna e à integridade pessoal.
  2. Responsabilização estatal: A decisão sublinha a responsabilidade dos Estados de monitorar e controlar as atividades empresariais que possam afetar negativamente o meio ambiente e a saúde pública. O Estado peruano foi responsabilizado por não haver protegido adequadamente os direitos das vítimas em La Oroya, estabelecendo um precedente para a responsabilidade estatal em casos semelhantes.
  3. Foco em grupos vulneráveis: Ao identificar o impacto desproporcional da contaminação em crianças, mulheres e idosos, a decisão destaca a necessidade de prestar especial atenção aos grupos vulneráveis nas políticas e medidas de proteção dos direitos humanos.
  4. Participação pública e acesso à informação: A sentença reforça o direito das comunidades afetadas de serem informadas e de participarem nas decisões ambientais que afetam suas vidas. Isso promove a transparência e a democracia participativa em questões ambientais.
  5. Medidas de reparação e prevenção: As medidas de reparação ordenadas pela Corte, incluindo diagnósticos de saúde e tratamentos gratuitos para as vítimas, além de exigências de políticas públicas para evitar futuras violações (garantia de não repetição), instituem um modelo regional para a resposta do Estado a desastres ambientais e violações de direitos humanos.
  6. Precedente jurisprudencial: A decisão serve como um importante precedente para orientar casos futuros envolvendo violações de direitos humanos relacionadas ao meio ambiente, tanto no sistema interamericano quanto em outros sistemas de proteção dos direitos humanos, neste caso mediante o diálogo de cortes.
  7. Desenvolvimento Sustentável como Obrigação Estatal: A Corte enfatiza que o desenvolvimento sustentável exige que os Estados adaptem seus modelos de produção, exploração e consumo para garantir sua continuidade sem prejudicar o ambiente e os recursos naturais para as gerações futuras. Este conceito está intimamente ligado ao princípio da equidade intergeracional e não nega o desenvolvimento dos Estados, mas requer uma perspectiva “verde” que harmonize as necessidades presentes e futuras.
  8. Consideração das Três Áreas: Os Estados devem considerar de forma integral, e não isoladamente, o âmbito ecológico, o social e o econômico em suas políticas públicas. Devem também atentar para grupos vulneráveis, como crianças, mulheres, pessoas com deficiência, povos indígenas etc.
  9. Ambiente como Patrimônio Comum e Dever de Cooperação Internacional: O ambiente é visto como um patrimônio comum da humanidade, vinculado a uma norma de jus cogens, que impõe aos Estados o dever solidariedade e de cooperação internacional na formulação de políticas, investigações científicas, controle e promoção da defesa do meio ambiente.
  10. Justiça Intergeracional e Conservação Ambiental: A equidade intergeracional exige das gerações atuais a administração e gestão do meio ambiente de forma que seja entregue às gerações futuras em condições pelo menos iguais às recebidas. Isso gera três deveres específicos para os Estados: os deveres de conservação de opções, de conservação de qualidade e de conservação de acesso.
  11. Importância da Participação Política em Assuntos Ambientais: É reconhecido o direito à participação dos cidadãos na definição das questões de interesse público, incluindo as de natureza ambiental, como um mecanismo para levar em conta preocupações e conhecimentos dos cidadãos na formulação e execução de políticas públicas que afetam o meio ambiente.
  12. Obrigações de Prevenção e Controle da Contaminação: A sentença destaca as obrigações dos Estados de prevenir e controlar a poluição, evidenciando a situação dramática em La Oroya, onde a contaminação do solo, da água e do ar por materiais tóxicos, como o chumbo, cádmio e arsênico, afetou severamente a saúde dos habitantes, especialmente crianças.

A importância da decisão da Corte IDH no caso La Oroya, como sua segunda sentença verde, está na sua ampla contribuição para a proteção dos direitos humanos no contexto dos desafios ambientais. Em 2020, o Tribunal Interamericano já havia iniciado esse esforço no caso Comunidades Indígenas Membras da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina (§ 264), mas de forma mais limitada do que agora se vê na causa contra o Peru. O novo julgado fortalece a jurisprudência internacional sobre a responsabilidade dos Estados de proteger esses direitos diante de atividades industriais perigosas e do risco de grave poluição ambiental e, como vimos, pela primeira vez destaca o direito ao meio ambiente saudável.

Aplicando o art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos sobre o desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA) no hemisfério, a Corte afirmou a justiciabilidade direta dos direitos ambientais e destacou a importância dos princípios do direito ambiental e, mais especificamente, o valor do direito a um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, reconhecido internacionalmente. Este direito abrange aspectos procedimentais e substantivos. São eles (§ 118):

1. Elementos procedimentais: Referem-se aos processos e mecanismos pelos quais indivíduos e comunidades podem participar ativamente na tomada de decisões relacionadas ao meio ambiente. Isso inclui:

  • Acesso à informação ambiental: os governos e outras entidades devem tornar acessível ao público informações relevantes sobre o meio ambiente e as atividades que possam afetá-lo.
  • Participação pública na tomada de decisões ambientais: As pessoas devem ter a oportunidade de participar do processo de tomada de decisão que afete o meio ambiente, como no caso do planejamento de projetos de desenvolvimento ou na tramitação da legislação ambiental.
  • Acesso à justiça em assuntos ambientais: Se os direitos ambientais forem violados, os indivíduos e as comunidades devem ter meios para buscar reparação, por meio de remédios efetivos.

2. Elementos substantivos: Referem-se aos direitos inerentes ao próprio meio ambiente e à sua proteção, o que inclui:

  • Proteção do ar, da água e dos alimentos: Garantir que os recursos naturais essenciais para a vida não sejam poluídos e sejam gerenciados de forma sustentável.
  • Proteção do ecossistema e do clima: Preservar a biodiversidade e manter a estabilidade climática, entre outros aspectos essenciais para a manutenção da vida na Terra.

A sentença em La Oroya reflete a importância atribuída pela Corte Interamericana à proteção ambiental, ao desenvolvimento sustentável e à justiça intergeracional, estabelecendo deveres claros para os Estados na gestão ambiental e na garantia da vida, da saúde e do bem-estar das populações atuais e futuras.

Com a responsabilização internacional do Peru, ficam claras as obrigações estatais de prevenir, regular, monitorar e reparar os efeitos da poluição ambiental. Reforça-se a necessidade de garantir a publicidade da existência de riscos ambientais, o direito à informação e o direito de participação cidadã nas decisões estatais sobre questões que afetem o meio ambiente, em harmonia com o Acordo de Escazú e com pronunciamentos de organismos regionais de direitos humanos. (§ 147-150 da sentença).

Também relevante foi a reafirmação do dever estatal de reconhecer e proteger o trabalho dos defensores do meio ambiente, conceito que compreende os ativistas em geral que operam para a promoção de direitos ambientais. Intimidações e ameaças a essas pessoas devem ser rigorosamente apuradas pelo Estado, no cumprimento de obrigações processuais positivas. Por tais razões, a Corte determinou a responsabilidade do Estado peruano por não haver investigado de maneira séria e efetiva os atos de intimidação, as ameaças e as represálias denunciados por algumas das vítimas de La Oroya (§§ 317-319 da sentença).

A Corte reconheceu que o direito a um recurso judicial implica o dever de investigar com devida diligência as supostas violações de direitos humanos, punir os responsáveis e conceder uma reparação adequada às vítimas. Com relação ao dever
de investigar,
assinalou-se que […] ameaças e atentados à integridade e à vida de defensores de direitos humanos […] “são particularmente graves porque têm um efeito não apenas individual, como também coletivo”.

Corte IDH, Caso Moradores de La Oroyoa vs. Peru, § 303.

Embora somente diga respeito ao Estado peruano, como pessoa jurídica de direito internacional público, indiretamente a decisão da Corte IDH em La Oroya também contribui para reforçar a necessidade de compromisso das empresas com a agenda ESG (Environmental, Social, Governance); com os Princípios Orientadores da ONU (Regras de Ruggie de 2011) sobre empresas e direitos humanos; com as Diretrizes da OCDE sobre Empresas Multinacionais de 2011; e com os Estândares Interamericanos, aprovados pela REDESCA, em 1º de novembro de 2019, sobre empresas e direitos humanos.

Devido à força da res interpretata, a sentença do caso La Oroya terá efeitos irradiantes com impactos no Brasil, em relação ao grave episódio de contaminação por chumbo ocorrida em Santo Amaro, na Bahia, em razão das atividades da Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac) – depois Plumbum Mineração e Metalurgia Ltda. Entre 1969 e 1993, esta empresa despejou impunemente na atmosfera, nas águas e no solo da região cerca de 500 mil toneladas de escória de chumbo e cádmio. 

Caetano Veloso imortalizou o drama da poluição ambiental em Santo Amaro em sua canção Purificar o Subaé, o rio que banha sua cidade natal:

Os riscos que corre essa gente, morena
O horror de um progresso vazio
Matando os mariscos, os peixes do rio
Enchendo meu canto de raiva e de pena

Purificar o Subaé
Mandar os malditos embora
Dona da água doce quem é
Dourada rainha senhora
O amparo do sergi-mirim
Rosário dos filtros da aquária
Dos rios que deságua em mim
Nascente primária

(Caetano Veloso)

Deixe um comentário