
No caso de Dolińska-Ficek e Ozimek vs. Polônia (2021), a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) decidiu que a forma de composição da câmara extraordinária da Suprema Corte do país viola o direito ao devido processo legal, previsto no art. 6º, da Convenção Europeia.
Dois juízes poloneses provocaram a CEDH em Estrasburgo quando tiveram pedidos administrativos rejeitados pela Câmara Extraordinária de Revisão e Fazenda Pública da Suprema Corte polonesa, que foi criada em 2018, juntamente com a polêmica Câmara Disciplinar do mesmo tribunal.
Segundo a CEDH, a violação dos direitos dos dois juízes é uma das consequências de uma série de mudanças da legislação polonesa, para reforma do Judiciário. Entre estas alterações está uma que privou os magistrados locais do direito de eleger os membros judiciais do Conselho Nacional do Judiciário, criado em 1989.
Uma reforma legislativa permitiu ao Executivo e ao Legislativo interferir direta ou indiretamente nessas nomeações para o CNJ polonês. Antes da modificação de 2018, eram os próprios juízes que elegiam os candidatos da judicatura para as cadeiras do Conselho. Mas a competência para essa eleição passou à Câmara dos Deputados (Sejm).
A primeira reação a esta modificação veio da Rede Europeia de Conselhos do Judiciário (ENCJ), que suspendeu o CNJ polonês por não cumprir os requisitos de independência em relação ao Executivo e ao Legislativo.
Em 2019, foi a vez de o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) assinalar a irregularidade da reforma polonesa ao julgar em conjunto os casos C-585/18, C-624/19 e C-625/18, determinando, à luz do princípio da primazia do direito da UE sobre as leis nacionais, que a lei polonesa deveria ser afastada em favor do artigo 47 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e do art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Artigo 47.
Direito à ação e a um tribunal imparcial
Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal.
Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo. (…)
Posteriormente, no caso 791/19, Comissão Europeia vs. República da Polônia, o TJUE, que tem sede em Luxemburgo, decidiu que a Polônia descumpriu o artigo 19(1) do Tratado da União Europeia e o art. 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia pois o novo regime disciplinar criado para os juízes poloneses não era compatível com os princípios de imparcialidade e independência vigentes na União Europeia.
Órgãos internos da Polônia também se opuseram às mudanças que minaram a independência do Judiciário. Em sua resolução de 23 de janeiro de 2020, a Suprema Corte polonesa reconheceu a gravidade da intervenção política no sistema de justiça do país:
59. A atual instabilidade do judiciário polonês origina-se das mudanças no sistema judiciário nos últimos anos, que violam as normas estabelecidas na Constituição, no Tratado da UE, na Carta dos Direitos Fundamentais e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos .
O leitmotiv da mudança foi subordinar juízes e tribunais às autoridades políticas e substituir juízes de diferentes tribunais, incluindo o Supremo Tribunal Federal. Isso afetou o procedimento de nomeação de juízes e os órgãos participantes do processo, bem como o sistema de promoção e disciplinamento de juízes. Em particular, foi feita uma tentativa manifestamente inconstitucional de destituir alguns juízes do Supremo Tribunal e de rescindir o mandato do Primeiro Presidente do Supremo Tribunal, contestando a legitimidade do Supremo Tribunal.
As mudanças sistêmicas geraram dúvidas sobre a legitimidade julgadora dos juízes indicados para o cargo nos novos procedimentos. A motivação política para as mudanças comprometeu as condições objetivas necessárias para que tribunais e juízes fossem percebidos como imparciais e independentes. O Supremo Tribunal considera que a politização dos tribunais e a sua subordinação à maioria parlamentar em violação dos procedimentos constitucionais estabelece um sistema permanente onde a legitimidade dos juízes individuais e dos seus julgamentos pode ser contestada com cada nova autoridade política. Não obstante, a politização dos tribunais afasta-se dos critérios de independência e imparcialidade dos tribunais exigidos pelo direito da União e pelo direito internacional, em particular o artigo 47.º da Carta e o artigo 6.º, n.º 1 [da Convenção”

Na sua sentença no caso Dolińska-Ficek e Ozimek vs. Polônia, a Corte Europeia levou em conta estas e outras posições de organismos europeus e teve ainda em conta o princípio 13 da Magna Carta dos Juizes, aprovada pelo Conselho Consultivo de Juízes Europeus (CCJE), que atua perante o Conselho da Europa. Tal dispositivo trata dos conselhos nacionais de Justiça:
Órgão competente para garantir a independência
13. Para assegurar a independência dos juízes, cada Estado cria um Conselho da Magistratura ou outro órgão específico, independente dos poderes legislativo e executivo, dotado de amplas competências para todas as questões relativas ao seu estatuto, bem como à organização, funcionamento e imagem das instituições judiciárias. O Conselho será composto exclusivamente por juízes ou por uma maioria substancial de juízes eleitos por seus pares. O Conselho do Judiciário será responsável por suas atividades e decisões. ”
Como se lê no §267 da sentença da CEDH, a Comissão Internacional de Juristas (ICJ) também se manifestou. A entidade enfatizou que os conselhos nacionais de Justiça desempenham um papel relevante para o autogoverno do Judiciário, sua independência e imparcialidade em muitos países europeus.
267. (…) Um judiciário independente, operando dentro de um sistema que respeite a separação de poderes, é um elemento essencial do Estado de Direito e uma condição necessária para a proteção efetiva dos direitos humanos. A CIJ fez referência à Carta Magna de Juízes, que afirma claramente que os conselhos do judiciário devem ser independentes dos órgãos legislativos e executivos e compostos em uma maioria substancial de juízes eleitos por seus pares. Esses princípios têm sido reiterados por outras autoridades internacionais, por exemplo, na Carta Universal do Juiz e pelo Relator Especial da ONU sobre a Independência de Juízes e Advogados, em seu relatório anual de 2 de maio de 2018. As normas internacionais sobre a independência do Judiciário consagram o princípio de que os poderes políticos – legislativo e executivo – não devem ser responsáveis pela nomeação, funcionamento ou destituição de membros dos conselhos judiciais, nem de outro modo neles interferir. Além disso, as condições substantivas e as regras processuais detalhadas que regem as decisões de nomeação não devem suscitar dúvidas quanto à impermeabilidade dos juízes em questão e à sua neutralidade, conforme reiterado pelo TJUE no acórdão de 19 de novembro de 2019.
Em sua conclusão geral, no §353, a Corte Europeia estabeleceu que houve uma violação manifesta do direito interno que afetou adversamente as regras processuais fundamentais para a nomeação de juízes para a Câmara de Revisão Extraordinária e Fazenda Pública da Suprema Corte. A nomeação dos juízes para esse órgão foi feita por recomendação do CNJ, órgão que, após a reforma, já não oferecia garantias suficientes de independência em relação aos poderes Legislativo ou Executivo, devido à forma de sua composição.
Em consequência, tais irregularidades no processo de nomeação comprometeram a legitimidade da Câmara de Revisão Extraordinária e Fazenda Pública, faltando-lhe os atributos de um “tribunal” que seja “estabelecido por lei”, nos termos do artigo 6.1 da Convenção, segundo a interpretação que lhe dá a jurisprudência da CEDH.
A CEDH analisou o processo polonês com base no critério dos três passos, adotado pelo seu órgão plenário no caso Guðmundur Andri Ástráðsson vs. Islândia (26374/18) de dezembro de 2020, e depois reafirmado no caso Reczkowicz vs. Polônia (43447/19) de julho de 2021.
Esse exame de três etapas serve para determinar se as irregularidades em um procedimento de nomeação judicial são de tal gravidade que implicam a ofensa ao direito a um tribunal estabelecido por lei. Na etapa 1, verifica-se se houve uma violação manifesta do direito interno; no passo 2, examina-se se as violações do direito interno dizem respeito a alguma regra fundamental do procedimento de nomeação judicial; e no passo 3, checa-se se as alegadas violações do direito a um “tribunal estabelecido por lei” foram reexaminadas de forma efetiva ou reparadas pelos tribunais domésticos.
Tendo em conta tal critério (test), o Tribunal Europeu concluiu que a Câmara Extraordinária de Revisão e Fazenda Pública do Supremo Tribunal da Polônia, que examinou os casos dos dois juízes requerentes, não era um tribunal imparcial e independente estabelecido por lei. E por isto mesmo declarou que houve uma violação ao artigo 6, § 1º, da Convenção.
Como se vê, a ingerência política sobre o Judiciário polonês tornou-se incompatível com os padrões de rule of law na Europa. Para a Corte Europeia, o procedimento que passou a ser adotado em 2018 comprometeu “de forma sistemática a legitimidade do tribunal composto pelos juízes assim designados”, com reflexos em sua independência e imparcialidade.
Concluiu a Corte Europeia que “nesta situação, e no interesse do Estado de Direito e dos princípios da separação de poderes e da independência do poder judicial, é necessária uma ação corretiva rápida por parte do Estado polonês”.
Parece com algo que você já viu? Sim, parece. A Proposta de Emenda Constitucional 5, que visa aumentar a ingerência política na formação do CNMP brasileiro, é uma proposição legislativa da mesma família, um gênero de ideias que pretende submeter o sistema de Justiça a vorazes vontades políticas. Lá como cá, os pretextos sempre parecem bons.
Na Polônia, a subversão do modelo jurisdicional não se deu de uma vez. Ocorreu aos poucos.
Excelente artigo e super-atual dentro da tensão entre Polônia e a UE.
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