Cartão vermelho para brasileiros na Rússia


red

O clima futebolístico, das torcidas pró e contra, continua pautando o debate em torno da abjeta conduta de turistas brasileiros que, em dois vídeos, ridicularizam e humilham mulheres russas, levando-as a repetir frases de conteúdo sexual.

A reação das mulheres e também dos homens brasileiros aos vídeos dá mostras de uma importante mudança cultural. Machismo, misoginia e discursos de menosprezo ou de ódio contra mulheres não são mais tolerados como eram outrora. Este é um grande gol da sociedade brasileira, no sentido do seu amadurecimento, que merece ser comemorado.

Muitos viram machismo, sexismo e infantilidade no comportamento dos protagonistas dos vídeos. Está certo quem pensou assim. Por outro lado, há quem tenham visto ali a prática de crimes. As opções vão desde a injúria contra a mulher loira até o racismo.

Os autores das gravações merecem toda a reprovação social. E isto já vem ocorrendo. Além do vexame público e das críticas justas e gerais que vêm sofrendo, um dos homens acabou perdendo seu emprego em uma companhia aérea. Outro enfrentará procedimento administrativo na corporação policial a que pertence. Dois mais responderão a processos ético-disciplinares nos seus conselhos profissionais. Estas reações sociais e funcionais são esperadas e de bom tamanho.

Contudo, há quem espere ver a punição criminal dos homens em questão. Isto não me parece possível no presente caso. Tecnicamente, não há crime previsto na lei penal brasileira no qual possam eles ser dados como incursos.

Além disso há obstáculos processuais intransponíveis para que algum tipo de punição criminal venha a ocorrer no Brasil.


Houve crime de racismo?

É de se descartar de imediato o crime do art. 20, §2º da Lei 7.716/1989, que pune o racismo e o preconceito de cor, raça, etnia, procedência nacional ou religião.

Como a suposta infração penal foi cometida pela Internet, a pena para tal conduta seria de 2 a 5 anos de reclusão:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Não há como enxergar o crime de racismo na frase dita pelos agressores (que gritavam ser rosa a genitália da mulher estrangeira) e repetida inadvertidamente pela vítima. É sem sentido sustentar a existência de racismo com sinal invertido. A conduta preconceituosa estaria no emprego do adjetivo “rosa”, por oposição a órgãos sexuais de outras cores.

Além da dificuldade de demonstrar o dolo de preconceito racial, é frágil o argumento do viés discriminatório a outras raças, que teria resultado do emprego do adjetivo descritivo da cor do órgão sexual feminino daquela mulher em particular. Grosseria, desrespeito, mas não crime.


Houve crime de injúria?

O segundo crime teórico seria o de injúria, um delito contra a honra tipificado pelo art. 140 do CP, com a causa de aumento prevista no inciso III do art. 141 do mesmo código. A majorante estaria presente porque o crime foi praticado na presença de várias pessoas e também por meio que facilitou a divulgação da injúria, a Internet.

Também é muito difícil caracterizar o crime de injúria (art. 140 do CP) na conduta dos autores do primeiro vídeo, aquele no qual a vítima é levada a repetir o substativo vulgar relativo ao órgão sexual feminino com o adjetivo de cor rosa. Se a vítima teve o seu decoro atingido pela conduta dos agressores brasileiros – e teve –, o animus injuriandi não parece presente. E sem ele não se pode falar em crime contra a honra.

Ademais, para que uma investigação criminal se inicie, é imprescindível que haja a iniciativa da vítima, em persecução de caráter privado (art. 140 c/c o art. 141, III, do CP).

Se a hipótese delitiva a ser considerada for a do § 3º do art. 140 do CP (“Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência“), a ação penal é pública condicionada à representação da ofendida.

Em qualquer dos dois casos (injúria comum ou injúria racial), a vítima teria de tomar a iniciativa de provocar as autoridades de investigação e persecução, com base no art. 145, parágrafo único, do CP e no art. 5º, §§4º e 5º, do CPP, não podendo o Ministério Público nem a Polícia agirem de ofício.

§ 4º. O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado.

§ 5º.  Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la


Condições para a extraterritorialidade da lei penal

Nesta mesma linha, tanto para o delito de injúria (art. 140 do CP) quanto para o delito de racismo (art. 20 da Lei 7.716/1989), a persecução penal no Brasil dependeria da reunião das condições de extraterritorialidade da lei penal brasileira, previstas no §2º combinado com o inciso II, alínea ‘b’, do art. 7º do CP. 

Entre essas condições, que são objetivas, estão a dupla tipicidade, a entrada dos acusados no território brasileiro e a extraditabilidade dos crimes em questão.

Diante de tais critérios, de logo o delito de injúria simples (art. 140, CP) seria excluído do alcance da lei penal brasileira no exterior porque, ainda que incida o aumento de um terço (art. 141, III, CP) sobre a pena da injúria (que é de 1 a 6 meses de detenção), não terá sido ultrapassado o patamar mínimo para que um crime seja classificado como extraditável, à luz da lei brasileira.

Segundo o art. 82, inciso IV, da Lei 13.445/2017, é de dois anos de prisão o liminar inferior para que uma infração penal tenha a estatura ou a seriedade necessárias para motivar uma extradição. De fato, não se concede extradição no Brasil quando a lei brasileira impõe ao crime pena de prisão inferior a 2 (dois) anos. E vice-versa.


Possível prática de contravenção penal

Entre as figuras delitivas previstas na legislação criminal brasileira, apenas uma parece amoldar-se à conduta dos homens que gravaram os vídeos machistas. Refiro-me à contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, prevista no art. 61 do Decreto-lei 3.688/1941, conhecido como Lei das Contravenções Penais (LCP):

Art. 61. Importunar alguem, em lugar público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor:

Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Esta infração penal poderia estar presente, numa análise provisória, guardada a presunção de inocência dos supostos agressores.


O princípio da territorialidade absoluta nas contravenções penais

Em se admitindo que os brasileiros em questão praticaram a contravenção penal do art. 61 da LCP, a lei brasileira não os alcançaria no exterior. 

Diferentemente do que se passa com os crimes em geral, que são abrangidos pelos critérios de territorialidade e extraterritorialidade, nas contravenções penais, que são infrações penais de menor potencial ofensivo punidas com prisão simples, só vale o princípio da territorialidade. Não se aplica a elas o art. 7º do CP, que só pune “os crimes” cometidos no estrangeiro.

Para as contravenções penais, vale o art. 2º da LCP, segundo o qual “A lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada no território nacional.

Assim, como os delitos ocorreram na Rússia, fora do território nacional, não há como estender aos autores da conduta ilícita a mão da lei contravencional brasileira, dado o princípio da territorialidade absoluta, que vigora para esta categoria de infrações penais.


Competência para a persecução penal

Recentemente, o STJ decidiu conflito de competência (CC 154.656/MG, j. em 25/04/2018) no qual definiu que crimes praticados por brasileiros no exterior são processados e julgados pela Justiça Federal, à luz do art. 109 da Constituição, nas condições que o acórdão especifica. Leia mais aqui. 

Esta solução vale apenas para os crimes, pois as contravenções penais são excluídas expressamente da jurisdição criminal da Justiça Federal, pelo inciso IV do art. 109 do CP.

Assim, se possível fosse imputar aos torcedores machistas a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, eles responderiam perante a Justiça Estadual, mais precisamente no Juizado Especial Criminal da capital do Estado onde residiam antes do fato.


Expulsos de campo

Em suma, embora grave, deplorável e censurável, a conduta desses brasileiros não se encaixa entre aquelas que exigem reparação penal.

Seus autores devem sofrer reprovação social, punição por seus órgãos profissionais e, talvez, expulsão da Rússia mediante medidas migratórias.

Com seus comportamentos deploráveis, cada um deles se tornou uma persona non grata naquele país. Por isto mesmo, merecem um vistoso cartão vermelho da Federação Russa.

 

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