Torcendo o direito penal


Já está em vigor a Lei 12.299/2010, que alterou o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003).

A nova lei, publicada no D.O.U. em 28/jul, cuida da responsabilidade civil decorrente de eventos desportivos e tipifica seis novos crimes, sendo que tão-somente dois deles são infrações penais de menor potencial ofensivo (41-B e 41-F).

Não demorou muito, já a apelidaram de “Lei Galvão Bueno”, pois o art. 13-A, incisos IV e V, do ET passou a proibir os torcedores de portar cartazes, bandeiras e símbolos ou entoar cânticos com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo. Felizmente, mandar um “Cala a boca, Galvão” ainda pode!

Listo a seguir as principais inovações de natureza penal e processual, não sem antes registrar que:

a) o princípio da intervenção mínima do direito penal foi para o espaço, pois escalaram o direito penal onde ele não devia jogar.

b) a Fifa manda!

De fato, ao preparar-se para a Copa do Mundo de 2010, a África do Sul aprovou uma lei denominada “2010 Fifa World Cup South Africa Special Measures Act“. Foi este diploma que levou à prisão aquelas belas torcedoras holandesas que foram detidas no estádio Soccer City, em Joanesburgo, por suposta propaganda ilegal de uma cervejaria.

Para assegurar a realização do mundial, 56 tribunais especiais foram criados no país-sede de 2010. Trata-se dos Fifa World Cup Courts (Magistrates Courts), ou Tribunais da Copa do Mundo Fifa. Clique aqui para ler a matéria do The Guardian. Funcionaram como órgãos temporários. Aqui seriam tribunais de exceção.

Voltando ao Brasil, eis o quadro penal-processual da Lei 12.299/10. Todos os crimes são de ação penal pública incondicionada e de competência da Justiça Estadual e do Distrito Federal:

a) o art. 41-A permite aos Estados e ao Distrito Federal criar Juizados Especiais do Torcedor, com competência cível e criminal. Aparentemente, o legislador pretende que esses órgãos judiciários julguem todos os crimes previstos no Estatuto, independentemente do teto de dois anos. Não deixa claro, contudo, se o procedimento adotado será o sumariíssimo para todas as infrações. Parece-me que não, devendo prevalecer o critério genérico, de limiar de pena adotado pelo art. 394, §1º, do CPP.

b) o art. 41-B tipifica o crime de “Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos“, com pena de 1 a 2 anos de reclusão, e multa, assim como duas condutas equiparadas. No inciso I, pune-se quem “promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil) metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento“. Trata-se de estranha infração, não devidamente contextualizada, cuja apuração se dará com fita métrica, para saber se os 5 km foram respeitados. A conduta do inciso II (“portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência“) é ainda mais draconiana. A extensão da expressão “quaisquer instrumentos” é acintosa e claramente inconstitucional pois ofende o ideal de segurança jurídica, o princípio da proporcionalidade e a função de garantia do tipo, temas incorporados à legalidade penal.

c) segundo o §2º do art. 41-B, o réu primário e de bons antecedentes, que não tenha sido punido por qualquer das condutas previstas no art. 41-B, terá direito subjetivo à conversão da pena de reclusão de 1 a 2 anos em restritiva de direito, consistente na proibição de comparecimento às praças esportivas por prazo entre 3 meses e 3 anos, cumulada, nos termos do §4º, com a proibição de permanecer em “estabelecimento” (o legislador não define de que tipo) indicado pelo juiz desde duas horas antes da competição, até duas horas depois do seu encerramento. Em caso de descumprimento de tais medidas, a pena reconverter-se-á em privativa de liberdade (§3º). Sanção semelhante estava prevista no art. 39 do Estatuto do Torcedor, dispositivo que acabou revogado pela nova lei.

d) o §5º do art. 41-B permite ao Ministério Público propor transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95) nos crimes previstos nesse artigo, com aplicação imediata da sanção não privativa de liberdade prevista no §2º do art. 41-B do Estatuto (restrição espacial). A previsão é desnecessária, pois que a regra geral da Lei dos Juizados seria de pronto aplicável.

e) o art. 41-C passa a punir, com sanção de reclusão de 2 a 6 anos e multa, o crime de corrupção passiva desportiva, que consiste em “Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva“. Cuida-se de forma especial de corrupção, não caracterizada como crime contra a Administração Pública. Desde a ratificação da Convenção de Mérida (Decreto 5.687/2006), o Brasil está obrigado a punir as várias formas de corrupção no setor privado.

f) no art. 41-D criminaliza-se a corrupção ativa desportiva, também com pena de 2 a 6 anos de reclusão, quando o agente dá ou promete vantagem patrimonial ou não patrimonial, com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição. A intenção do legislador é punir a prática da “mala preta”.

g) o art. 41-E tipificou a conduta de fraude desportiva, com pena de 2 a 6 anos de reclusão. Tal conduta se consuma quando o agente frauda, por qualquer meio, ou contribui para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva. Pune-se a manipulação de resultados de forma ampla, ainda que sem fim econômico.

h) o art. 41-F inova ao prever um crime contra as relações de consumo, que ocorre com a venda de ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete. Criminalizou-se a atividade dos cambistas, desconhecendo que o direito penal deve ser a ultima ratio. A pena é de 1 a 2 anos de reclusão, e multa, consistindo em infração penal de menor potencial ofensivo, submetida ao procedimento sumariíssimo, perante o Juizado Especial.

i) por fim, com redação sofrível, o art. 41-G estabelece que, quem fornecer ingressos para venda por preço superior ao estampado no bilhete; quem desviá-los ou facilitar sua distribuição para este fim cometerá crime. Em função do princípio da especialidade, essa tortuosa norma somente se aplicará aos cambistas de eventos desportivos. Em shows de rock, pagode e axé está liberado! E a tipificação veio com penas pesadas, que vão de 2 a 4 anos de reclusão, e multa. O homicídio culposo no trânsito tem a mesma sanção! Esta escala penal é desarrazoada, podendo ser ainda majorada pela causa especial de aumento do parágrafo único em 1/3, se o agente for funcionário público, dirigente ou funcionário de entidade desportiva ou organizadora ou de empresa emissora, distribuidora ou vendedora de ingressos, ou ainda membro de torcida organizada. A seleção dessa conduta é incompatível com os critérios de lesividade e proporcionalidade e também com o princípio da isonomia. Um desastre.

Com tantos problemas, a regra não ficou clara! Conflitos em campo e nas arquibancadas terminarão (?) no fórum criminal, onde os combates processuais continuarão. E, além das decisões dos árbitros, os torcedores brigões (nossos hooligans e barrabravas) talvez muito reclamem das decisões dos juízes de verdade.

Como diria o líbero Caetano, tudo isso pode ter a ver com a Copa do Mundo de 2014. Ou não.

4 comentários

  1. O Estatuto do Torcedor é uma fraude e é bastante interessante ter acesso agora a uma opinião com embasamento jurídico. Eu discuto a validade e a aplicabilidade dele desde 2003, quando inventaram isso na vida do torcedor de futebol sem que ele fosse consultado. O ponto central, a meu ver, é este: o torcedor não é consultado em momento algum e não se sabe quais são suas necessidades e prioridades. Simplesmente definem restrições e proibições e o torcedor é obrigado a engolir isso tudo. E o seu texto termina de maneira bastante precisa: sim, isso tem tudo a ver com a tal Copa de 2014. Não tem nada de Estatuto do Torcedor aí; é um Estatuto do Dirigente.
    Abraços

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  2. Acho interessante também o descuido com a coerência das sanções para condutas de algum modo assemelhadas ou comparáveis.

    A conduta de “invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos” é sancionada com reclusão, de 1 a 2 anos, e multa. Já a conduta de “entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências” é punida com pena de detenção, de um a três meses, ou multa (CP, art. 150).

    Mas eu entendo. É muita coisa para os nossos congressistas pensarem sozinhos! É lastimável que eles não sejam dotados de gabinetes com assessores legislativos…

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