
A União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios podem ser assistentes de acusação, atuando ao lado do Ministério Público em ações penais públicas?
Na minha opinião, a resposta é não, com temperamentos.
O Ministerio Público já presenta o Estado em juízo na arena criminal. Não há razão para a sobrerrepresentação governamental, que desequilibra o polo ativo da relação processual em detrimento do réu. Serão dois entes estatais contra o cidadão.
O artigo 268 do CPP confere o direito de assistência ao ofendido ou ao seu representante legal, parecendo claro, inclusive pela referência ao art. 31 do mesmo código, que atribui essa faculdade principalmente a pessoas físicas e somente muito excepcionalmente a pessoas jurídicas de direito privado.
A legalidade estrita é um valor liberal fundamental para o direto penal. Reflexamente também o é para o processo penal, tendo em conta a cláusula do due process of law. Por isto, quando o legislador pretende permitir que um órgão público diverso do Parquet seja assistente de acusação sempre o faz expressamente.
É o que ocorre em três situações no direito processual brasileiro:
- Artigo 26 da Lei 7.492/1986, que autoriza a CVM e o BACEN a atuarem como assistentes do MPF nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
- Artigo 80 do CDC, que permite os Procons como assistentes do MP em todos os crimes contra as relações de consumo.
- Artigo 2º, §1º, do Decreto-lei 201/1967, que faculta ao Poder Público federal, estadual ou municipal atuar como assistente do MP nos crimes funcionais de prefeitos municipais.
Fora dessas exceções expressamente previstas em lei, não se tolera a admissão de assistente público.
A União, os Estados, o DF e os Municípios, assim como os órgãos da Administração Pública indireta, sempre poderão atuar no juízo cível para obter a reparação civil que pretendam, sem prejuízo algum decorrente da sua não admissão na ação penal.
No crime, por força do artigo 91 do Código Penal, o efeito da condenação obtida pelo Ministério Público será justamente o de tornar certa a obrigação de indenizar o lesado, inclusive o ente público eventualmente lesado.
Ademais, o confisco patrimonial nas ações penais federais sempre se dá em proveito da União, ao passo que nas ações penais sobre lavagem de dinheiro a lei prevê que o perdimento também se dê em proveito dos Estados federados. De novo, os interesses subjacentes já estão expressamente considerados ex lege.
Lembremos ainda que o instituto da assistência não se restringe à postulação indenizatória, uma vez que o assistente não opera apenas como parte civil, mas de fato pode reforçar a acusação pública (art. 271, CPP), que é privativa do MP entre os entes estatais (art. 129, I, CF), sem qualquer exceção.
Dizendo de outro modo, se é certo que a Constituição autoriza a vítima a propor a ação penal subsidiária diante da inércia do MP, nada há na CF/1988 que permita a outro órgão estatal, que não o próprio MP, a tocar uma ação penal ou nela intervir, mesmo como assistente da parte principal.
Essa privatividade, não esqueçamos, mais do que um poder do Ministério Público, é uma garantia da pessoa humana na estrutura acusatória do processo penal, que reconhece a figura do “promotor natural”. Admitir a intromissão de outro órgão estatal na acusação pública é debilitar essa garantia essencial para a processo do cidadão contra indevidas de temerárias perseguições estatais.
Diz o artigo 5º, LIII, que “ninguém será processado” senão pela autoridade competente. A competência deve ser instituída pela lei processual penal, e em nenhuma parte o CPP confere a órgãos estatais a faculdade de operar como assistentes do MP, lembrando que, se pudessem, o fariam sem as garantias dos promotores e procuradores, que têm independência funcional, inamovibilidade e vitaliciedade. Devido a essa carência, os patronos dos assistentes estão sujeitos a inúmeras ingerências políticas em prejuízo do acusado,
Um outro ponto deve ser levado em conta. A presença do assistente de acusação aumenta o tempo de tramitação da ação penal e pode impactar no direito do réu à razoável duração do processo, uma garantia constitucional prevista no artigo 5º da CF/1988.
Diante da falta de lei expressa, este, me parece, é um motivo relevante para não se admitir a incursão de entes estatais como assistentes no campo penal, ainda que a União, o Estado, o DF ou o Município pretenda posicionar-se como vítima. Mas serão mesmo “ofendidos” no sentido do artigo 268 do CPP? E quem é a vítima nos crimes vagos e nos delitos supraindividuais? O ofendido será a “União”, o “Estado” ou será a coletividade?
A meu ver esse problema se resolve com a cooperação dos entes do Poder Público com o Ministério Público, para que este, no juízo penal, promova os requerimentos pertinentes com apoio nos aportes que receberá da Advocacia Pública federal, estadual ou municipal.
Com tal cooperação interinstitucional, que se pode regular mediante convênio, preserva-se a cláusula do devido processo legal, não se desequilibra a relação jurídica processual e cada órgão público mantém-se no seu quadrado constitucional.