Separação do julgamento de crimes eleitorais conexos com crimes comuns


Introdução

Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal deve decidir se as investigações da Lava Jato sobre caixa dois eleitoral e corrupção devem ser submetidas à Justiça Eleitoral ou à Justiça Federal.

No início de novembro de 2018, a Subprocuradora-Geral da República Cláudia Marques apresentou questão de ordem no julgamento do quarto agravo regimental no Inquérito 4.435/DF (STF, 1ª Turma, rel. min. Marco Aurélio). Neste inquérito são apurados supostos crimes de corrupção ativa e passiva, caixa dois e crimes financeiros atribuídos ao ex-prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes e ao deputado federal Pedro Paulo Carvalho Teixeira. Investiga-se o suposto recebimento ilícito de 18,3 milhões de reais que teriam sido doados pela Odebrecht às campanhas eleitorais de 2010, 2012 e 2014.

Para Marques, havendo conexão entre crimes federais e crimes eleitorais, os primeiros devem ser julgados pela Justiça Federal, e os segundos, pela Justiça Eleitoral.

“A competência da Justiça Federal para julgar os crimes comuns em conexão com os eleitorais vem do artigo 109 da Constituição Federal. É uma competência absoluta que não pode ser mudada por leis” (SPGR Cláudia Marques, QO no INQ 4435/DF, 9.nov.2018).

A unidade de processo e julgamento de crimes comuns conexos com crimes eleitorais é daqueles temas que precisava ser revisitado pelo legislador ou deslindado pelos tribunais. De lege ferenda (art. 121 da Constituição), o ideal seria que a Justiça Eleitoral não tivesse competência penal, para que pudesse debruçar-se sobres os temas puramente eleitorais não criminais.

No contexto da corrupção sistêmica, uma decisão do STF em prol da conexão (reunião dos casos) terá um significativo impacto sobre investigações complexas em mãos do Ministério Público Federal ou dos Ministérios Públicos dos Estados ou do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. E este impacto será negativo, tornando mais difícil expor a corrupção eleitoral e a lavagem de dinheiro de recursos obtidos em campanhas, condutas que tornam desigual a disputa eleitoral e que abalam o princípio democrático.


O arranjo institucional da Justiça Eleitoral brasileira como um dos problemas

Há razões estruturais, jurídicas e históricas que recomendam que o STF decida pela separação dos processos da Justiça Comum e da Justiça Eleitoral ao julgar a questão de ordem no INQ 4435/DF.

No arranjo institucional da Justiça brasileira, a Justiça Eleitoral é um ente híbrido. Embora seja um ramo especial da Justiça da União, seus juízes e promotores eleitorais, atuantes na primeira instância, são recrutados dentre os juízes de Direito e os promotores de Justiça (estaduais).

Na segunda instância, o Ministério Público Eleitoral é representado pelos procuradores regionais eleitorais (PRE), membros do MPF, enquanto os TREs são compostos por juízes federais, juízes de Direito e desembargadores. De novo apresenta-se sua natureza híbrida.

No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a terceira instância, há juízes provindos do STF e do STJ e também advogados. Os ministros das cortes superiores acumulam suas atividades nas cortes de origem com o serviço eleitoral, o que evidentemente não é boa governança da administração da Justiça, dado que o STF e o STJ, de onde saem esses ministros do TSE, já têm suas pautas assoberbadas.

Há outros dois complicadores, pois todos esses juízes das três instâncias e os respetivos membros do MP eleitoral exercem funções de forma temporária ou rotativa. Na primeira instância, as zonas eleitorais são ocupadas rotativamente pelos juízes de Direito e promotores de Justiça, o que torna tais designações precárias, enfraquecendo a garantia do juiz e do promotor naturais. A Resolução 21.009/2002 do TSE, a Resolução 30/2008 do CNMP e atos correlatos não eliminaram todos os problemas intrínsecos à natureza especial e pouco orgânica da Justiça Eleitoral.

Na segunda e na terceira instâncias, isto é, nos TREs e no TSE, os juízes que vêm das carreiras judiciais têm mandatos curtos, de dois anos, tempo insuficiente para lidar com causas complexas, que demandem grande tempo de maturação, persecução ou julgamento e medidas de persecução complexas, às vezes de cunho transnacional.

Apesar de o §1º do art. 121 da Constituição determinar que “os membros dos tribunais, os juízes de direito e os integrantes das juntas eleitorais, no exercício de suas funções, e no que lhes for aplicável, gozarão de plenas garantias e serão inamovíveis”, na prática, a rotatividade ou o curto mandato dessas funções eleitorais abala enormemente essas garantias.

Para piorar, duas das vagas em cada um dos 28 tribunais eleitorais (27 TREs e o TSE) são reservadas a advogados eleitoralistas (art. 119, II, e art. 120, §1º, III, da CF). Diferentemente do que se passa com o quinto constitucional, os advogados que se tornam juízes temporários podem manter suas firmas e escritórios, cumprem seus mandatos no TRE e no TSE e depois voltam a suas bancas profissionais privadas. Tal desenho das cortes evidentemente pode levar a situações preocupantes, na perspectiva da deontologia e da independência judicial, além de causar complicações éticas fáceis de divisar.

Uma Justiça sem existência autônoma, sem carreiras próprias, com posições rotativas, mandatos curtos, advogados-juízes e composição de baixíssima accountability é adequada para julgar complexos crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro, associação em organização criminosa, obstrução da justiça que sejam conexos com crimes eleitorais, como a falsidade ideológica (caixa dois) ou crimes menos graves de propaganda eleitoral ou de boca de urna? Sem demérito algum a seus integrantes passados e presentes, a resposta parece ser não, e isso na análise meramente operacional ou estrutural desse segmento híbrido do Judiciário e do Ministério Público Eleitoral, no qual atuei como promotor eleitoral e como PRE Substituto em diversas eleições.

Crimes complexos exigem estruturas judiciais e ministeriais dedicadas, tal como se vê nas varas federais especializadas em lavagem de dinheiro e crime organizado. A rotatividade ou a precariedade das designações e a impossibilidade de estabelecer especializações dada à natureza dos órgãos e à inviabilidade de priorização dessas investigações criminais, devido à urgência do serviço eleitoral a cada dois anos, são fatores que por si recomendam ao legislador ordinário redobrada cautela na repartição da jurisdição entre a Justiça comum (Federal ou Estadual) e a especial (Eleitoral).


Interpretação sistemática em favor da separação de processos comuns e eleitorais

A Constituição Federal cuida da distribuição de competências entre os ramos comum e eleitoral da Justiça criminal em três artigos:

a) no art. 109, inciso IV, está o principal dispositivo. Após especificar a competência dos juízes federais para julgar os crimes que ofendam à clausula genérica do “interesse federal” (bens, interesses ou serviços), o inciso IV ressalva a competência da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar para julgar seus próprios casos;

b) no art. 96, inciso III, da Constituição, que, depois de determinar que juízes de Direito e promotores de Justiça têm foro especial nos Tribunais de Justiça dos seus Estados, ressalva a competência dos respetivos TREs para julgar essas autoridades quando cometam crime eleitorais; e

c) no art. 121, que ordena que lei complementar disporá sobre a organização e a competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.

Mesmo passados 30 anos da promulgação da Constituição, esta lei complementar nunca veio, e o Código Eleitoral de 1965, uma lei federal ordinária, tem servido a este propósito. E vem servindo de forma incompatível com essa mesma Constituição, como agora se verá.

É que o art. 96, III, e o art. 109, IV, da CF não autorizam nem determinam a reunião de processos comuns (federais ou estaduais) e especiais (eleitorais) em virtude de conexão. O que tais dispositivos fazem é, sem dúvida, exatamente o contrário: afirmam a competência especial da Justiça Eleitoral para julgamento dos crimes eleitorais, que são aqueles previstos no Código Eleitoral (Lei 4.747/1965), na Lei 6.091/1974, na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) e na Lei Eleitoral (Lei 9.5504/1997). 

Dizendo de outro modo, a Constituição manda que os crimes eleitorais sejam sempre julgados pela Justiça Eleitoral. Mas não ordena nem autoriza que os crimes federais comuns sejam deslocados para julgamento nela, Justiça Eleitoral. 

Ao tratarem dos crimes eleitorais, os mencionados artigos da Constituição não estabelecem a Justiça Eleitoral como polo de atração do julgamento de outros crimes (comuns), tampouco determinam que a zona eleitoral deva ser o foro prevalente para julgamento de crimes comuns conexos com os eleitorais. Quem fez isto foi o legislador eleitoral ordinário em 1932 (art. 114 do Decreto 21.076/1932), em 1935 (art. 190 da Lei 48/1935), em 1950 (art. 20, l, da Lei 1.164/1950) e em 1965 (art. 35, inciso II, da Lei 4.737/1965), em outros regimes constitucionais. A regra atual remonta a 1965, quando vigente a Constituição de 1946:

Art. 35. Compete aos juízes:

II – processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais.

A incompatibilidade deste artigo com a ordem constitucional que adveio em 1988 é flagrante, a ponto de se ver ali a impropriedade trintenária de ressalvar-se a competência originária criminal do TSE, atribuição jurisdicional que não existe no atual regime constitucional porque, por força dos arts. 102 e 105 da Constituição, todas as altas autoridades republicanas ou sujeitam-se ao foro especial do STF (deputados, senadores, ministros etc) ou ao STJ (governadores etc) para todas as infrações penais, inclusive as eleitorais. Ou seja, o TSE não tem competência penal originária, o que aponta para a não recepção do inciso II do art. 35 do Código Eleitoral.

Nos anos 1940, o legislador processual penal (ordinário) também previra regra semelhante à do Código Eleitoral ao determinar que no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevaleceria esta (art. 78, inciso IV, do CPP). No entanto, o Código de Processo Penal ressalvou a competência militar, que é especial, ao determinar no seu art. 79, inciso I, que a conexão importaria unidade de processo e julgamento, salvo no concurso entre a jurisdição comum e a militar. Assim, crimes militares são sempre julgados pela Justiça Militar, ainda que conexos com crimes comuns. E as infrações penais comuns, ainda que conexas com crimes militares, ficam na Justiça comum. 

Em 1941, no CPP, o legislador não previu semelhante regra de separação obrigatória para os crimes eleitorais. Em 1965, o art. 35, II, do Código Eleitoral repetiu a redação de dispositivos presentes nos códigos eleitorais anteriores de 1932, 1935 e 1950, que vigeram em regimes constitucionais já superados. 

Havendo conexão entre crime federal (comum) e crime eleitoral, a regra deve ser a da separação obrigatória dos processos para julgamento, tal como se dá com os crimes de competência da Justiça Militar. Estes são objeto da mesma ressalva constitucional no art. 109, inciso IV, mas seguem regra de separação do art. 79, inciso I, do CPP, enquanto os delitos eleitorais, sem qualquer razão para o discrímen, estão sujeitos à regra geral de unidade de processo e julgamento quando conexos com os crimes comuns.

Além de adotar soluções distintas para crimes de justiças especializadas, quando em concurso com crimes comuns, o legislador ordinário fez valer regra de atração que é incompatível com o art. 109, IV, da Constituição, no que respeita à ressalva de especialidade contida no final desse dispositivo constitucional. Como demonstrado acima, ali não há qualquer determinação ou autorização do constituinte para que os crimes eleitorais atraiam os crimes comuns para julgamento unificado. 


Interpretação histórica em favor da separação de processos comuns e eleitorais

A interpretação histórica do CPP e do Código Eleitoral deixa ver a incompatibilidade destas leis com a Constituição de 1988 no que toca à conexão de crimes eleitorais e crimes comuns. 

Tal método de interpretação das duas leis vigentes deve ser levada em conta para determinar se deve haver ou não a conexão de crimes comuns e crimes eleitorais.

O CPP de 1941 e o Código Eleitoral de 1965 foram sancionados quando a Justiça Federal não existia. De fato, a Justiça comum da União foi extinta pela Constituição de 1937 e recriada pelo Ato Institucional n. 2, de 1966. Logo, tais leis não podem ser usadas para afastar a competência da Justiça Federal (comum), quando em conflito com a Justiça Eleitoral. Em consequência, há um vácuo legislativo que não pode ser colmatado com leis não recepcionadas neste ponto.

Exatamente por causa do formato da Justiça brasileira entre os anos 1930 e os anos 1960, os arts. 78 e 79 do CPP são silentes quanto a qualquer situação de competência da Justiça Federal. Tal omissão é justificável, dado que, no momento da entrada em vigor do CPP em 1º de janeiro de 1942, não havia nada a regular quanto a isto. A inexistência de regras específicas sobre a competência da Justiça Federal comum no texto do CPP levou, por exemplo, o Tribunal Federal de Recursos (TFR) e o Superior Tribunal de Justiça, cada qual ao seu tempo, a aprovarem as súmulas 52 e 122, respectivamente, para regular o foro prevalente em caso de conexão entre crimes comuns de competência federal e estadual.

Em 1980, o Tribunal Federal de Recursos (TFR), que foi extinto em 1988, adotou a Súmula 52, segundo a qual “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, ‘a’, do CPP”. O Tribunal afastou a aplicabilidade do art. 78, II, “a” do CPP, entre outras razões, porque tal dispositivo não era apto a regular a competência da Justiça Federal de primeira instância, já que editado quando esta não existia no Brasil. Devia, portanto, prevalecer por força do inciso IV do art. 109 da CF o interesse federal, que cabe à Justiça Federal comum tutelar prioritariamente.

Assim, fica fácil ver que, ao ressalvar a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral, a parte final do art. 109, IV, da CF, ordena ao legislador que separe os crimes eleitorais (e os militares) dos crimes comuns, sem admitir reunião de processos por conexão em Justiça alguma. A regra ínsita ao inciso IV é a de separação, o que torna o art. 35, II, do Código Eleitoral e o art. 78, IV, do CPP dispositivos não recepcionados pela Carta Federal de 1988.


Ubi eadem ratio ibi idem ius

Uma interpretação, por assim dizer, ontológica também nos ajuda a perceber que a solução para a conexão entre crimes da Justiça Eleitoral e da Justiça Comum, especialmente da Justiça Federal comum, é mesmo a separação obrigatória dos casos.

Os crimes eleitorais e os crimes militares são especiais e assim tratados pela Constituição (art. 109, IV e art. 96, III). Logo, devem ter o mesmo destino nas mãos do legislador  infraconstitucional quanto à determinação da competência para julgá-los (art. 121 e art. 124, CF). 

Porém, o que se vê não é isto. O art. 79, inciso I do CPP determina que, havendo conexão entre crimes militares (especiais) e crimes (estaduais) comuns, deve prevalecer a competência especial. Como já vimos, tal dispositivo não considerou a competência federal comum, pois, quando entrou em vigor, a Justiça Federal não existia e, evidentemente, não se deve adotar solução analógica contra o texto constitucional. 

Não ocorre arrastamento dos crimes comuns pelos delitos militares. Tampouco os crimes eleitorais (especiais) devem arrastar os crimes comuns (principalmente os federais) para julgamento em zonas eleitorais, notadamente porque a competência constitucional da Justiça Federal é expressa, ao passo que a competência eleitoral depende do legislador infraconstitucional.

Ademais, não há uma relação de acessoriedade entre crimes comuns e crimes especiais, para que aqueles se vinculem a estes por ocasião do julgamento, o que levaria à supressão da competência da Justiça Federal comum para julgar os crimes que são “seus”. Por outro lado, a especialidade dos delitos eleitorais estará preservada com a simples separação dos processos.

Se para os crimes militares há separação obrigatória, os crimes eleitorais também devem ser julgados separadamente dos comuns. Onde há a mesma razão deve haver a mesma solução jurídica, preservando-se a competência da Justiça Federal (comum).


Conclusão

Crimes militares conexos com crimes comuns são julgados em Justiças diferentes, conforme o CPP (art. 79, I) e o CPPM (art. 102, “a”). Crimes eleitorais e crimes comuns (federais ou estaduais, mas principalmente os primeiros) também devem ser julgados por seus juízes naturais de forma separada, superando-se o art. 35, II, do Código Eleitoral e o art. 78, inciso IV, do CPP, devido à incompatibilidade de ambos com o inciso IV do art. 109 da Constituição.

As ressalvas de especialidade do inciso IV do art. 109 e do inciso III do art. 96 da Constituição dizem respeito à necessária separação dos casos de competência comum (federal ou estadual) e da competência eleitoral ou militar.

Tais dispositivos não determinam a reunião de processos para julgamento unificado em virtude de conexão. Ao fazê-lo, contra a franquia constitucional, o legislador ordinário avança sobre o interesse federal e, por critério artificial, subtrai do juiz natural crimes que deveriam ser julgados na Justiça comum.

A interpretação histórica, ontológica e constitucionalmente adequada dos arts. 96, inciso III, e 109, inciso IV da Constituição indica que deve prevalecer a separação dos feitos, de um lado reservando-se os crimes eleitorais à competência dos juízes zonais, devido à sua especialidade, e os crimes comuns, mesmo quando conexos, à competência dos juízes federais ou dos juízes de Direito.

Por fim, vale mais uma vez lembrar que o art. 35, inciso II, do Código Eleitoral não pode ser usado para regular a competência de uma Justiça (a Federal) que sequer existia quando tal lei foi sancionada em 1965.


[Artigo originalmente publicado em 26/11/2018 no site Jota]

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