Foi aprovada na quarta-feira, 29/6, a Declaração de Brasília contra a Corrupção. A carta consolida os debates e conclusões do seminário “Grandes casos criminais: a experiência italiana e perspectivas no Brasil“, realizado pelo CNMP e diversas entidades apoiadoras na sede da Procuradoria-Geral de Justiça Militar.
A Declaração contém muitos pontos interessantes. Porém, destaco um dos seus temas centrais: o sistema acusatório. Embora, teoricamente, a Constituição brasileira de 1988 tenha adotado tal modelo de persecução criminal, é seguro dizer que nosso processo penal ainda retém inúmeros resquícios do sistema inquisitivo, cujo auge se deu no século XIX.
Conforme o item 2 da Declaração de Brasilia, “O princípio acusatório no processo penal brasileiro, segundo modelo adversarial, deve permitir a todos os sujeitos processuais observar e fazer respeitar os direitos de acusados, das vítimas e da sociedade.”
A adoção de tal princípio é recomendada pelos Princípios Orientadores Relativos à Função dos Magistrados do Ministério Público, adotados pelo 8º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1990.
Realmente, os princípios 10 e 11 das Regras de Havana de 1990, sobre a função do MP no processo penal corporificam o postulado acusatório:
10. As funções dos magistrados do Ministério Público deverão ser rigorosamente separadas das funções de juiz.
11. Os magistrados do Ministério Público desempenham um papel activo no processo penal, nomeadamente na dedução de acusação e, quando a lei ou a prática nacionais o autorizam, nos inquéritos penais, no controlo da legalidade destes inquéritos, no controlo da execução das decisões judiciais e no exercício de outras funções enquanto representantes do interesse público.
Na Declaração de Bordéus, de 2 de Julho de 2009, o Conselho Consultivo dos Juízes Europeus e o Conselho Consultivo dos Procuradores Europeus emitiram ao Comitê dos Ministros do Conselho da Europa importante opinião sobre o papel dos Juízes e dos Procuradores numa sociedade democrática. Destaco os seguintes pontos, que se remetem ao modelo acusatório:
1. É do interesse da sociedade que o Estado de Direito seja garantido por um sistema judicial imparcial e eficaz. Os procuradores e os juízes devem assegurar, durante todas as fases do processo judicial, o respeito pelos direitos individuais e liberdades bem como garantir os direitos das vítimas das infracções; devem proteger a segurança das pessoas, dentro do respeito absoluto pelo direito das pessoas em causa em se defenderem e a beneficiarem de um processo justo perante um juiz imparcial e independente.
3. Uma boa justiça exige o respeito pela igualdade das armas entre o Ministério Público e a defesa. Exige ainda o respeito pela independência dos tribunais e pelo princípio da separação dos poderes, bem como o respeito pela força obrigatória dos julgamentos definitivos.
4. O papel distinto mas complementar dos juízes e procuradores é uma garantia necessária para uma justiça equitativa e imparcial. Se os juízes e os procuradores devem ser independentes no exercício das suas funções, devem também ser independentes uns dos outros.
Por sua vez, o parágrafo 17 da Recomendação REC (2000) 19, do Conselho da Europa, sobre o Papel do Ministério Público no Sistema de Justiça Penal, determina que os “Estados devem, em particular, garantir que uma pessoa não possa desempenhar, ao mesmo tempo, as funções de membro do MP e de juiz“, o que remete à separação de funções entre juízes e procuradores ou promotores.
O sistema acusatório é um modelo contraditório ou confrontativo, no qual as partes (MP e defesa) dialogam e produzem provas diante de um juiz ou tribunal imparcial, a quem cabe julgar a causa com base nas provas que lhe forem apresentadas. Sua característica fundamental é a absoluta separação de funções entre o Ministério Público como órgão de investigação e persecução e os juízes, como órgãos de julgamento. Membros do MP (e, obviamente, a Polícia) não podem exercer funções jurisdicionais de julgamento; juízes não podem realizar atos de investigação criminal ou de acusação. Nele não há lugar para os juízes de instrução ou autoridades equivalentes.
Um observador atento verá que, 27 anos depois da promulgação da nossa Constituição, ainda não nos livramos de procedimentos, das formas ou do ideário inquisitivo, fundado no sigilo, no autoritarismo e no cartorialismo, esta última uma característica que impregna a atividade bacharelesca-policial e atravanca a fluidez do processo judicial perante juízos e tribunais e no Ministério Público.
Triste dizer, mas na Ibero-América, o Brasil é o país mais distante da implantação do processo penal de partes, com igualdade de armas e diálogo contraditório, de natureza confrontativa, que possa viabilizar de forma mais efetiva a busca da verdade processual.
Nos 23 países dessa região histórico-geográfica-cultural, apenas Brasil, Cuba e Espanha ainda não aprovaram códigos processuais de cunho acusatório, cujas características primordiais são a separação de funções entre o juiz e o MP, a efetivação dos princípios da oralidade, imediatidade, concentração, publicidade, ampla defesa, contraditório e oportunidade da ação penal pública.
Levantamento que fiz sobre o quadro processual penal ibero-americano aponta que o Brasil é realmente um retardatário. Dezenove países ibero-americanos implementaram reformas processuais de natureza acusatória nas últimas duas décadas. A lista de sistemas reformados foi inaugurada pela Guatemala em 1992/1994. O vigésimo país do grupo ibero-americano, Porto Rico, segue o modelo adversarial pelo menos desde 1963, devido à forte influência norte-americana na formação do seu ordenamento jurídico, a partir de sua anexação ocorrida no final do século XIX:
PAÍS |
ANO DA PUBLICAÇÃO |
ANO DA VIGÊNCIA |
OBSERVAÇÃO |
Andorra |
2005 |
2006 |
Desde 2004 membro da Conferência Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo |
Argentina |
2014 |
2016 |
O Código Procesal Penal de la Nación (federal) teve vigência suspensa. Algumas das 23 províncias têm códigos acusatórios, como Córdoba (1998) e a Cidade Autônoma de Buenos Aires (2007). |
Bolívia |
1999 |
2001 |
|
Chile |
2000 |
2000 |
|
Colômbia | 2004 |
2005 |
|
Costa Rica |
1996 |
1998 |
Fortemente inspirado no Código-Modelo para a Ibero-América |
Equador |
2014 |
2014 |
Código misto penal e de processo penal. Por isso chamado Código Orgánico Integral Penal. |
El Salvador |
1996 |
1998 |
|
Guatemala | 1992 |
1994 |
Primeira reforma processual acusatória (pura) da América Latina. |
Honduras |
2000 |
2002 |
|
México |
2014 |
2016 |
Código Nacional de Procedimientos Penales em vigor desde junho de 2016. Vale no âmbito federal. Os Estados mexicanos têm seus próprios códigos estaduais, muitos de feição acusatória. |
Nicarágua | 2001 |
2002 |
|
Panamá | 2008 |
2009 |
|
Paraguai |
1998 |
1999 |
|
Peru |
2004 |
2006 |
|
Portugal |
1987 |
1988 |
|
Porto Rico |
1963 |
1963 |
Estado Livre Associado aos EUA, segue o modelo adversarial norte-americano. |
República Dominicana |
2002 |
2004 |
|
Uruguai |
2015 |
2017 |
O novo Código del Proceso Penal terá vigência em 01/02/2017 |
Venezuela |
2008 |
2009 |
Em alguns casos, esses novos códigos de processo entraram em vigor de uma só vez em todo o país; noutros seguiram modelo de implantação gradual, de forma regional, com aplicação territorial progressiva. O prazo de vacatio legis variou de 6 meses – caso do Código Orgânico Integral Penal, do Equador – a dois anos, caso do novo Código de Processo Penal do Uruguai. Muitos desses códigos evoluíram de padrões inteiramente inquisitivos diretamente a paradigmas puramente acusatórios. Alguns países da região viveram fases de transição, com códigos mistos. Para essa evolução, foram sem dúvida importantes os trabalhos dos juristas que lançaram o Código-Modelo de Processo Penal para a Ibero-América e os seminários, cursos e publicações do Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA).
Sistemas acusatórios meramente formais (mistos) ainda vigem em Cuba (Ley de Procedimiento Penal de 1977), Espanha (Ley de Enjuiciamiento Criminal de 1882 ) e no Brasil (CPP de 1941).
Nos demais países das Américas, parte continental, o sistema acusatório também está presente em Belize, Canadá, Estados Unidos, Guiana e Suriname. Na Guiana Francesa, um departamento de ultramar, vige o modelo dos juízes de instrução (juge d’instruction), ainda existente na França, mas a influência acusatória é cada vez maior, como se vê na atuação do Parquet National Financier. Aliás, na França e na Espanha, há grande debate na academia e entre autoridades do sistema de Justiça para a superação do modelo inquisitorial.
Apesar das minirreformas processuais realizadas no Brasil ao longo das duas últimas décadas, que resultaram nas leis 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), 9.099/1995 (transação penal e suspensão condicional do processo), 9.271/1996 (revelia e suspensão do processo), 10.792/2003 (interrogatório), 11.719/2008 (procedimentos), 11.689/2008 (procedimento do júri), 11.690/1998 (direito probatório), 11.900/2009 (videoconferência) e 12.403/2011 (cautelares penais), o CPP de 1941, de modelo misto, ainda segue em vigor, havendo inúmeros resquícios inquisitivos na nossa legislação, entre os quais a atividade probatória dos juízes, a atribuição de funções quase-judiciais à autoridade policial (como a fixação de fiança) e a anômala capacidade postulatória de delegados para “representaram” diretamente ao juízo para a aplicação de medidas cautelares, o que desnatura a bilateralidade do processo penal de partes, mantém de forma enviesada a iniciativa ex officio dos juízes na fase da investigação e põe em evidente desvantagem o pólo defensivo.
O projeto do novo CPP, já aprovado pelo Senado (PLS 156/2009), ainda tramita na Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010). Há correções de rumo a fazer nessa proposta, muito a aperfeiçoar e outros tantos temas a considerar, mas a essencialidade do modelo acusatório está ali presente, iniciativa favorecida pela criação do juiz de garantias:
“Art. 4º. O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
O Brasil está em mora nesse tema. Somos os lanterninhas no espaço ibero-americano, e isto não parece bom.