A imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento do dano na Lei de Improbidade Administrativa


improbidadeInfelizmente, o STF se encarregou de confirmar a sina de agosto. Refiro-me a agosto de 2018, no julgamento do recurso extraordinário 852.475.

Dia após dia, a Suprema Corte reescreve a Constituição, papel que não é seu, mas do Congresso Nacional, poder que, aliás, tem sido generoso nos remendos que tem feito na lei fundamental da Nova República.

Nesses 30 anos, a Constituição de 1988 sofreu 106 emendas (!) constitucionais, número por si impressionante e que revela a instabilidade de nosso desenho estatal, em várias de suas dimensões. 

Mediante infindáveis ações diretas de inconstitucionalidade, ações de descumprimento de preceito fundamental e recursos extraordinários com repercussão geral, quantas outras “emendas” indevidas terão sido feitas pelo STF no texto de 1988? Quantas ainda quererão seus juízes fazer ao abrigo da falta de accountability que afeta a Corte e que lastimavelmente incentiva seus ministros a assumirem posturas monocráticas, fora do sentido de cúria, e a decidirem de forma voluntariosa ou simplesmente discricionária?

No julgamento do RE 852.475 RG / SP, interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, ainda em curso, o STF, decidindo por maioria, está prestes [vide nota abaixo] a fazer mais uma profunda mexida textual na Carta de 1988.

O MP recorrente alegou existência de ofensa ao art. 37, § 5º, da Constituição Federal, pois, “mesmo que se considerassem prescritas as penas previstas na Lei n. 8.429/92, esta prescrição não alcançaria a penalidade (…) de ressarcimento do erário”.

Argumentou ainda o Parquet paulista que o art. 37, § 5º “contém dois comandos: o primeiro, da prescritibilidade dos ilícitos administrativos praticados por qualquer agente público, segundo dispuser a lei, e o segundo, o da imprescritibilidade das ações de ressarcimento, não podendo a lei, obviamente, dispor em contrário”.

No particular, a vontade do povo foi expressa na Constituição de 1988, que claramente previu a imprescritibilidade das ações de ressarcimento em caso de improbidade administrativa. 

No RE 852.475 RG / SP (Tema 897), o STF parece caminhar para afastar a imprescritibilidade e aproximar o prazo prescricional da ação cível do prazo prescricional das ações penais correspondentes. Via de regra um ato de improbidade administrativa é também um ilícito penal. Nada a objetar que assim seja para estipular um limitador temporal paras as sanções do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), entre as quais estão a suspensão dos direitos políticos, a multa e a perda do cargo. Porém, a obrigação de ressarcimento é coisa diversa, não é pena, não se sujeitando a esses prazos.

A regra do art. 37, §5º da CF é clara, diria aquele juiz. A parte final do parágrafo diz muito e não deveria ser extirpada, como fará o STF, se prevalecer a presente maioria de 6 a 2.

“§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”

Quando adotada em recurso extraordinário com repercussão geral, a decisão final do STF tem efeito vinculante e atingirá todas as ações cíveis de ressarcimento baseadas na LIA, em tramitação no País, seja na Justiça dos Estados ou na Justiça Federal. Será lei nova.

Os respeitáveis juízes do STF não são eleitos, têm cargos vitalícios e não respondem a ninguém. Por isso mesmo, deveriam ser mais comedidos no julgar e deveriam mais respeitar a vontade da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e o espírito deste tempo, que é intolerante com agentes públicos ímprobos e pessoas jurídicas corruptoras. Não se deveriam deixar levar por esse constante ativismo judicial, que, como temos visto também em matéria penal, tem conduzido a inovações quase sempre para pior. E com convicção!  

O ataque processual ao §5º do art. 37 da Constituição estava no horizonte de quem acompanha a pauta do STF. Em 2016, ao julgar um recurso extraordinário oriundo de Minas Gerais (STF, Pleno, RE 669.069 RG /MG, rel. Min. Teori Zavascki, j. em 03/02/2016), a Suprema Corte, por maioria, apreciando o tema 666 da repercussão geral, negou provimento ao recurso e fixou a seguinte tese: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”.

O tema 666 dizia respeito à “imprescritibilidade das ações de ressarcimento por danos causados ao erário, ainda que o prejuízo não decorra de ato de improbidade administrativa.”

Nos embargos de declaração que opôs, a Procuradoria-Geral da República tentou obter decisão que deixasse claro que as ações ressarcitórias que decorrem de atos de improbidade ou de ilícitos penais não haviam sido alcançadas pela tese 666 do acórdão proferido no RE 669.069 RG / MG.

Ou seja, a PGR pretendia deixar clara a prescritibilidade da ação cível relativa a atos ilícitos em geral, mas não da pretensão vinculada a atos de improbidade administrativa a que alude o §5º do art. 37. Na ocasião, os ministros do STF restringiram a discussão no RE 669.069 RG / MG à prescritibilidade das ações sobre ilícitos civis “de direito privado”.

Como consta do voto do ministro Zavascki, sua intenção era fazer valer a seguinte tese:

“A imprescritibilidade a que se refere o art. 37, §5º, da CF diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de atos praticados por qualquer agente, servidor ou não, tipificados como ilícitos de improbidade administrativa ou como ilícitos penais”.

No entanto, Zavascki ficou vencido e prevaleceu a posição do ministro Luiz Roberto Barroso, e a tese da repercussão geral do RE 669.069/MG foi assim redigida: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil“.

Nos casos de ilícito civil em geral, o prazo prescricional é de 5 anos, conforme o art. 1º do Decreto 20.910/1932. Neste quadro limitado, era a adequada solução, à luz da legislação dos anos 1930, para resolver as questões da tutela patrimonial da Administração Pública, quando levada por atos ilícitos de “direito privado”.

No entanto, o tema 887 da repercussão geral no RE 852.475 RG / SP vai além desse debate e pretende fixar a “prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos por ato de improbidade administrativa”. Diz respeito, portanto, a atos ilícitos “de direito público”, ainda que praticados por particulares ou pessoas jurídicas privadas.

Colhidos já 8 votos no STF, seis dos ministros se posicionaram pela prescritibilidade dessa espécie de ação de improbidade residual, disso podendo resultar a seguinte tese:

“A pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos e terceiros, pela prática de improbidade administrativa, devidamente tipificado pela Lei 8..429/1992, prescreve juntamente com as demais sanções do artigo 12, nos termos do artigo 23, ambos da referida Lei, sendo que na hipótese em que a conduta também for tipificada como crime, os prazos prescricionais são os estabelecidos em lei penal.”

Não há razão constitucional ou legal que permita estender o raciocínio da tese 666 à prescrição da ação civil de improbidade administrativa (residual), que é aquela que busca apenas afirmar a obrigação de reparar o dano causado ao erário como consequência do ato ímprobo. Dever de reparação não é pena. Portanto, não se sujeita ao seu tratamento.

Tampouco faz sentido regular, ainda mais por via judicial, a prescrição de uma ação cível meramente ressarcitória, sujeitando-a a prazos do direito penal (punitivo). A obrigação reparatória, embora decorrente do ato ilícito (criminal ou não), não é sanção penal. O dever de reparar o dano tem tratamento específico no Código Penal como efeito automático da condenação (art. 91, inciso I). Na legislação civil e processual civil, é consequência direta do ato ilícito (art. 186 do CC) e da cláusula neminem laedere.

De fato, foge à competência do STF legislar “positivamente” contra o texto expresso do art. 37, §5º da CF e de sua lógica intrínseca, para, a pretexto de dar segurança jurídica a quem lesou os cofres públicos, estipular prazo para as ações de ressarcimento específicas da LIA.

O sistema brasileiro anticorrupção, cuja construção nos últimos anos ia mais ou menos bem graças a uma série de leis aprovadas pelo Poder Legislativo, sofre duro golpe com o prenúncio dessa decisão, com score já em 6 x 2. Uma goleada que sofreremos todos. 

Surpreende o sentido da decisão porque esse julgado, que poderá debilitar um pouco mais o modelo brasileiro de integridade, é relatado por um constitucionalista, o ministro Alexandre de Moraes, egresso do Ministério Público recorrente.

Consumado o julgamento do RE 852.475 RG / SP, a ação civil para a reparação do dano ao erário não será mais imprescritível, o que tem um significado muito importante para além dos casos judicializados, e que não são poucos, sobretudo nos milhares de municípios do País. Centenas de milhões de reais não poderão mais ser cobrados de agentes públicos ímprobos e de empresas corruptoras, que lesaram o erário, imediatamente após a publicação do acórdão.

A decisão sinaliza para os agentes públicos ímprobos e empresas corruptoras que o tempo sana tudo, não só as sanções stricto sensu da Lei de Improbidade Administrativa. Com isso, a percepção de risco judicial (para o negócio ou a negociata) se reduz, e, em consequência, diminui a propensão dos autores de ilícitos à autocontenção e à formalização de ajustes em leniência e em colaboração premiada. Escasseia também o conjunto de incentivos à adoção de condutas éticas por agentes públicos e atores do mercado, afrouxando-se a lógica da conformidade (compliance), que ainda deve-se consolidar no Brasil.

A equação é simples. Se os riscos de natureza corporativa, profissional, pessoal, comercial ou reputacional sofrem incremento, valem a pena a colaboração com o Estado e as saídas negociadas (negotiated settlement). Se não há riscos judiciais ou se estes são baixos, a persuasão à compliance se rarefaz. Do mesmo modo, a atmosfera de impunidade se adensa, e os agentes ímprobos e corruptores ganham fôlego para montarem novos esquemas em detrimento do erário.

A decisão que se desenha no plenário do STF é, por isto, um nudge às avessas, uma peça de arquitetura jurídica capaz de motivar negativamente o comportamento dos agentes públicos, dos agentes do mercado e também das partes da relação processual. Em lugar de convidá-los a ações positivas de transparência e integridade, a decisão da Corte desencoraja aquele que, de outro modo, poderia sentir-se estimulado a colaborar e o convoca a acomodar-se. É uma cotovelada que reprime posturas positivas, é mais um empurrãozinho ladeira abaixo nos esforços nacionais por probidade. 

Todos os ministros da Corte sabem que o lema primordial na luta contra a corrupção é a privação do proveito do ilícito (seja civil ou penal) associado à reparação integral do dano causado às vítimas. O ilícito não pode compensar. Por isso, o Ministério Público e os demais legitimados devem sempre realizar investigações patrimoniais competentes para assegurar a recuperação doméstica e a repatriação de ativos, promover as reparações devidas e obter o confisco do lucro criminoso.

A ação cível, antes sine die, que põe em marcha o dever de reparar o dano causado ao tesouro público por um ato de improbidade é um componente fundamental dessa estratégia universalmente consagrada e também do regime de sanções em sentido lato, decorrentes da conduta ímproba. Serve ademais como um fator crucial para desencorajar o enriquecimento ilícito ou suprimi-lo.

Não por outro motivo, a reparação integral do dano é inegociável, mesmo no âmbito dos acordos de leniência da Lei Anticorrupção Empresarial (art. 16, §3º, da Lei 12.846/2013). E é inegociável porque é imprescritível e porque o ilícito não pode gerar proveito indevido, direto ou indireto, que fique imune ao confisco (disgorgement), nem ser perdoado sem depuração do prejuízo causado à Administração Pública, isto é, à sociedade como um todo.

O reconhecimento da prescritibilidade da ação de reparação relativa a atos de improbidade contra o texto expresso do art. 37 da Constituição mostra que a Suprema Corte não raras vezes sofre “ausências”, falta-lhe o espírito, perde-se a noção do que é justo, e entra-se numa anestesia que obnubila seu juízo crítico coletivo sobre seu papel de órgão responsável por legitimar em última instância os deveres de probidade e integridade que o texto de 1988 impôs a todos os agentes públicos, cuja executoriedade a sociedade reclama, e que ao Tribunal cabe fazer valer.

A decisão que se avizinha no tema 897 não atende ao interesse público e só beneficia quem delínque. O “crime” compensa, é a mensagem, um péssimo nudge. Basta deixar o tempo passar…

Naturalmente, os ministros do STF podem escolher a orientação doutrinária ou judicial que quiserem, no exercício do tão propalado e criticável “livre conhecimento”. Vide Streck, entre outros. Porém, ao cumprirem o papel de “guardiães da Constituição”, os juízes da Suprema Corte devem observar o espírito vivo da Carta de 1988, a mesma que os empodera para corretamente interpretá-la, mas jamais para deturpá-la.

Embora mereça correções – que estão sendo gestadas no foro apropriado – a Lei de Improbidade Administrativa de 1992 é elogiada em todo o mundo, especialmente por ser uma peculiar ferramenta de atuação do Ministério Público na tutela anticorrupção, fora do campo penal. A conjugação de instrumentos cíveis e penais para a luta contra a desonestidade na gestão pública é uma boa prática internacional que o Brasil tem aplicado com eficiência em diversos momentos e que já foi testada com sucesso.

Diferentemente do que se alega, o regime de imprescritibilidade da pretensão de reparação não traz insegurança jurídica alguma para o autor do ato ilícito, seja ele pessoa física ou jurídica. Para que a ação de ressarcimento por ato de improbidade administrativa “residual” seja viável e livre de marcos temporais, o Ministério Público e os demais legitimados teriam de demonstrar a ocorrência do ato de improbidade, em concreto, ainda que essa prova não possa mais suscitar a aplicação das sanções do art. 12 da LIA, porque, estas sim, atingidas pela prescrição. Ficaria hígido apenas o dever de reparar o dano, que não desapareceria pelo decurso do tempo, desde que os autores da ação cível demonstrem o seu pressuposto: a ocorrência de um ato ímprobo.

Lamentavelmente, ao se consumar, como se prenuncia, o julgamento desfavorável ao RE 852.475 RG / SP, o STF terá afrouxado a proteção do interesse público e sobretudo do erário; terá minado mais um pouco o direito do povo a um governo honesto; terá, enfim, contribuído para alargar os ralos por onde escorre o dinheiro público e, com ele, se vão a saúde, a educação, a infraestrutura e parte do futuro do Brasil. 


[Artigo publicado originalmente no Huffington Post Brasil aqui, em 6 de agosto de 2018]


Nota: A reação da comunidade jurídica levou o STF a modificar o entendimento que se desenhava na matéria. Dois de seus juízes, os ministros Fux e Barroso mudaram seus votos e deram provimento ao recurso extraordinário do MPSP. Com isto, por seis votos a 5, foi mantida a imprescritibilidade das ações civis de ressarcimento por ato de improbidade admistrativa de natureza dolosa.

2 comentários

  1. Bom Dia, Professor…
    Excelente artigo, parabéns.
    Comecei a acompanhá-lo desde a sua entrevista na Tv Senado sobre a reforma do CPP e não parei mais. Espero que o senhor continue publicando mais artigos em 2019.
    Crítica bastante pertinente em relação ao Ativismo Judicial. Atualmente, nossa Suprema Corte em muito está se assemelhando ao Poder Moderador de outrora. A comunidade jurídica deve permanecer atenta.
    Recentemente, li um texto chamado “Tobias Barreto e sua crítica ao Ativismo Judicial” de Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Cândido Alexandrino Barreto Neto, no qual aborda justamente a Crítica que Tobias Barreto fazia ao Poder Moderador da época, muito interessante.
    Mais uma vez, parabéns pelo blog, e espero continuar acompanhado mais temas polêmicos em 2019, ano este que já está prometendo…

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