A evolução da colaboração premiada na jurisprudência anterior a 2013


A larga utilização de acordos de colaboração premiada para a elucidação do esquema de doleiros do caso Banestado repercutiu na jurisprudência, notadamente no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Merece menção, por todas, a decisão daquela corte em correição parcial julgada em 2009, que reconheceu no plano judicial o formato empregado mais de uma dezena de vezes naquela investigação, quase que detalhando o seu procedimento:

PROCESSO PENAL – CORREIÇÃO PARCIAL – DELAÇÃO PREMIADA – LIMITES LEGAIS – EXTRAPOLAÇÕES ADMITIDAS EM FAVOR DO CIDADÃO – CONTROLE – PROCEDIMENTO.

  1. Não seguiu a legislação brasileira modelos do direito comparado de delação premiada como negociação do direito de ação, tendo todos os normativos nacionais tratado a colaboração como favor de pena, como minorante ou excludente da punibilidade (perdão judicial), na lavagem de capitais ainda admitindo o regramento do regime inicial e a substituição da pena privativa de liberdade.

  2. No limite legal é simplesmente reconhecida a incidência e dosado o favor correspondente quando da sentença criminal, sem necessidade de prévia intervenção ministerial.

  3. A prática tem ampliado os limites legais da delação premiada, seja pela incorporação de modelos do direito comparado, seja pela eficácia investigatória ou segurança ao delator, com a formalização de acordos desde o início das investigações criminais, então homologado pelo juiz.

  4. Embora criação extralegal, é ela mantida pela inexistência de interesse recursal dos envolvidos – ressalvada hipótese de direito indisponível -, não sendo moral e faltando legitimidade a terceiros em discutir favores concedidos ao delator.

  5. Acorda-se a provocação e a manutenção da ação penal, por negociação de seu titular e juízo homologatório de mera legalidade pelo magistrado, na omissão ministerial cabendo o reexame na forma do art. 28 CPP.

  6. Acordam-se favores processuais (suspensão do processo, liberdade provisória, dispensa de fiança, obrigações de depor ou de realizar determinadas provas pessoais…), penais (redução ou limitação de penas, estipulação de regimes prisionais mais benéficos, ampliação e criação de modalidades alternativas de respostas criminais, exclusão de perdimento…), fora dos limites dos fatos (para revelação de outros crimes da quadrilha..), ou mesmo extrapenais (reparando danos do crime, dando imediato atendimento às vítimas…), com plena intervenção do juiz na fixação ou alteração das condições, sujeitas a reexame pelo Tribunal.

  7. Fomalizado previamente o acordo, com a intervenção do agente ministerial e do delator, com seu advogado, é ele autuado em procedimento separado, com sigilo parcial ou total (em fase inicial investigatória onde sua revelação possa prejudicar diligências em andamento), e final reunião à ação penal no limite que envolva os fatos perseguidos.

  8. Provido parcialmente o recurso para oportunizar ao magistrado nova análise do acordo ofertado, de sua viabilidade e condições, sujeitas as divergências a reexame do juízo de conveniência pelo Tribunal, pois matérias estranhas à titularidade ministerial do direito de ação penal. (TRF-4, 7ª Turma, unânime, CP 2009.04.00.035046- 4/PR, rel. des. fed. Néfi Cordeiro, requerido: Juiz Federal Substituto de Francisco Beltrão, j. 03/09/2009).

O impacto se sentiu também no STF, no HC 90.688/PR, no qual se discutiu pela primeira vez naquela Corte a questão do sigilo dos acordos de delação (STF, 1ª Turma, HC 90.688/PR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. em 12/02/2008). Nesse julgamento, o ministro relator destacou que a colaboração premiada “é um instrumento útil, eficaz, internacionalmente reconhecido, utilizado em países civilizados” e manteve o sigilo do texto de um determinado acordo enquanto durasse a investigação relativa ao paciente.

A mudança de paradigma da prática forense no tocante aos acordos de colaboração passou a merecer a atenção da academia e impulsionou mudanças legislativas. O velho modelo de delação premiada unilateral – como direito subjetivo do delator – continua a existir, como uma variante do verdadeiro instrumento de colaboração premiada, na linha do que decidiu o STJ neste julgado, tendo em vista o artigo 159, §4º, do Código Penal:

A ‘delação premiada’ prevista no art. 159, §4º, do Código Penal é de incidência obrigatória quando os autos demonstram que as informações prestadas pelo agente foram eficazes, possibilitando ou facilitando a libertação da vítima. […] Ordem parcialmente concedida, nos termos do voto do Relator.” (HC 35.198/SP, Rel. Min. GILSON DIPP, 5.a Turma, DJ de 03/11/2004.)

No mesmo sentido desse habeas corpus, vejamos o que decidiu o STJ no HC 97.509/MG, que também apontou algumas das características mais relevantes do padrão original de delações premiadas:

PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA IMPETRAR HABEAS CORPUS. DELAÇÃO PREMIADA. EFETIVA COLABORAÇÃO DO CORRÉU NA APURAÇÃO DA VERDADE REAL. APLICAÇÃO DA MINORANTE NO PATAMAR MÍNIMO. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA.

  1. “A legitimação do Ministério Público para impetrar habeas corpus, garantida pelo art. 654, caput, do CPP, somente pode ser exercida de acordo com a destinação própria daquele instrumento processual, qual seja, a de tutelar a liberdade de locomoção ilicitamente coarctada ou ameaçada. Vale dizer: o Ministério Público somente pode impetrar habeas corpus em favor do réu, nunca para satisfazer os interesses, ainda que legítimos, da acusação” (HC 22.216/RS, Rel. Min. FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJ 10/3/03).
  2. O sistema geral de delação premiada está previsto na Lei 9.807/99. Apesar da previsão em outras leis, os requisitos gerais estabelecidos na Lei de Proteção a Testemunha devem ser preenchidos para a concessão do benefício.
  3. A delação premiada, a depender das condicionantes estabelecidas na norma, assume a natureza jurídica de perdão judicial, implicando a extinção da punibilidade, ou de causa de diminuição de pena.
  4. A aplicação da delação premiada, muito controversa na doutrina e na jurisprudência, deve ser cuidadosa, tanto pelo perigo da denúncia irresponsável quanto pelas consequências dela advinda para o delator e sua família, no que concerne, especialmente, à segurança.
  5. Competindo ao Órgão ministerial formar o convencimento do juiz acerca da materialidade e autoria delitiva aptas a condenação, ficou consagrado o princípio do nemo tenetur se detegere. Apesar da ausência de previsão expressa do princípio da não autoacusação na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, ficou assegurada a presunção de inocência e o direito absoluto de não ser torturado.
  6. O Pacto de São José da Costa Rica consagrou o princípio da não autoacusação como direito fundamental no art. 8o, § 2o, g, dispondo que ninguém é obrigado a depor contra si mesmo nem a se declarar culpado.
    7. A delação premiada, por implicar traição do corréu ao comparsa do crime, não pode servir de instrumento a favor do Estado, que tem o dever de produzir provas suficientes para o decreto condenatório.
  7. Ao delator deve ser assegurada a incidência do benefício quando da sua efetiva colaboração resulta a apuração da verdade real.
  8. Ofende o princípio da motivação, consagrado no art. 93, IX, da CF, a fixação da minorante da delação premiada em patamar mínimo sem a devida fundamentação, ainda que reconhecida pelo juízo monocrático a relevante colaboração do paciente na instrução probatória e na determinação dos autores do fato delituoso.
  9. Ordem concedida para aplicar a minorante da delação premiada em seu grau máximo, fixando-se, assim, a pena do paciente em 2 anos e 4 meses de reclusão, competindo, destarte, ao Juízo da Execução a imediata verificação acerca da possível extinção da punibilidade pelo cumprimento da pena imposta na Ação Penal 3.111/04, oriunda da Comarca de Estrela do Sul/MG. (STJ, 5ª Turma, HC 97.509/MG, rel. Arnaldo Esteves Lima, j. em 15/out/2010).

As decisões, anteriores à Lei 12.850/2013 (Lei do Crime Organizado) ajudaram a sedimentar o modelo consensual que está agora detalhadamente previsto na legislação brasileira, sem fazer desaparecer o instrumento anterior – mais simples e menos eficiente – que resulta da simples delatio.

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