Os crimes da ditadura militar prescreveram?


Os crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura militar (1964-1985) prescreveram?

Em 6 de agosto de 2009, ao concluir o julgamento do pedido de extradição do ex-militar uruguaio Manuel Cordero Piacentini (Ext 974-0) para a República Argentina, o STF apenas tangenciou o tema da (im)prescritibilidade dos crimes contra a humanidade. O major Cordero foi acusado de participar da Operação Condor, destinada a caçar (com “ç” mesmo) dissidentes dos regimes militares da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, entre 1970 e 1980.

Num julgamento em que ficou vencido, entre outros, o relator do pedido, o ministro Marco Aurélio, o STF deferiu a extradição, considerando que os crimes de desaparecimento forçado de pessoas (equiparados a sequestros), por serem permanentes, ainda não haviam sido atingidos pela prescrição da pretensão punitiva. Assim o é, em razão do art. 111, inciso III, do Código Penal brasileiro:

“Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:

III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência”.

Entendeu-se que, como o crime de sequestro é permanente e como as vítimas do regime ainda não foram localizadas, a prescrição não começou a correr. Tal entendimento, sustentado no parecer do MPF, foi acolhido pelo ministro Ricardo Lewandowski e reforçado pelo ministro Cezar Peluso, acabando por prevalecer no tribunal, o que permitiu a extradição de Manuel Cordero e começou a abrir uma avenida para a persecução criminal de agentes da ditadura militar brasileira, por delitos de sequestro cometidos em semelhante situação, no Brasil.

Eis um trecho do pronunciamento do Ministério Público Federal, acolhido pela maioria dos ministros do STF:

“Em relação ao sequestro, não há que se falar em prescrição, pois se trata de crime permanente tanto no Brasil como na Argentina. Nesse caso, o resultado delituoso se protrai no tempo enquanto a vítima estiver privada de sua liberdade e o prazo prescricional só terá início após a interrupção da ação do agente. De acordo com as informações prestadas pelo Estado requerente, o extraditando participou do sequestro de diversas pessoas, principalmente em 1976, as quais não foram libertadas até os dias de hoje. A despeito do tempo decorrido, não se pode afirmar que estejam mortas porque seus corpos jamais foram encontrados, de modo que ainda subsiste a ação perpetrada pelo extraditando”.

Contudo, a decisão do STF não determinou que no Brasil os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. Vejamos o porquê:

Em primeiro lugar, no caso concreto (um pedido de extradição) a Corte Suprema não examinou o tema da prescrição à luz do direito internacional público. Limitou-se a discuti-lo para o caso Cordero, com base na Constituição (art. 5º), no Tratado de Extradição do Mercosul, no Código Penal e na Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro).

Em segundo lugar, porque a Lei de Anistia de 1979 não foi objeto dos debates. O §1º do art. 1º da Lei 6.883/79 estará no centro das atenções do STF por ocasião do julgamento da ADPF 153, proposta pela OAB. Esta ação mereceu parecer contrário do Procurador-Geral da República e aguarda decisão do STF.

Em terceiro lugar, porque, mesmo no contexto brasileiro, o tema da imprescritibilidade de tais crimes exige o exame do direito internacional. A Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (Convention on the non-applicability of statutory limitations to war crimes and crimes against humanity), concluída em Nova Iorque, em 1968, é o documento internacional mais importante neste campo. Aberto a assinatura dos Estados-membros da ONU no mesmo ano do Ato Institutucional n. 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, o tratado em questão entrou em vigor em 11 de novembro de 1970, ainda em plena ditadura militar no Brasil. Vivíamos sob o governo Medici (1969-1974). Como era de se esperar, o Brasil não assinou o tratado nem a ele aderiu. Não tendo havido assinatura/ratificação nem adesão, o País não está vinculado aos seus termos.

Conforme a United Nations Treaty Collection, atualmente, a Convenção de 1968 tem 53 Estados-Partes. Entre eles aparecem México, Argentina,  Paraguai, Peru, Bolívia e Uruguai, só para citar algumas nações sulamericanas.

Mesmo que a Convenção estivesse em vigor para o Brasil, não haveria como dar-lhe execução imediata para ter como imprescritíveis os crimes conexos de que trata a Lei de Anistia 6.683/79. É que a própria Convenção exige que os Estados-Partes aprovem leis domésticas para regular a imprescritibilidade dali em diante. Eis o teor do seu artigo 4º:

“Os Estados Membros na presente Convenção obrigam-se a adotar, em conformidade com os seus processos constitucionais, as medidas legislativas ou de outra índole que sejam necessárias para assegurar a imprescritibilidade dos crimes referidos nos artigos 1º e 2º da presente Convenção, tanto no que diz respeito ao procedimento penal como à pena; abolir-se-á a prescrição quando vigorar por força da lei ou por outro modo, nesta matéria”.

Como as regras de prescrição são de índole penal, é imperioso, de acordo com o art. 5º, XXXIX, da Constituição, que exista lei em sentido formal e material, prevendo as hipóteses de imprescritibilidade. É o que se denomina legalidade penal estrita.

Qual seria a solução para processar agentes estatais (militares ou não) que cometeram sequestros, homicídios e estupros durante os anos de chumbo?

O caminho é longo. O primeiro passo depende do STF: invalidar a Lei de Anistia no que diz respeito aos crimes conexos. Para isto, é preciso dar provimento à ADPF 153, liberando o caminho para a abertura de inquéritos policiais e a propositura de ações penais pelo Ministério Público Federal.

O segundo passo está relacionada a imprescritibilidade de tais crimes. De nada adianta considerar inconstitucional o art. 1º, §1º da Lei de Anistia sem aferir a tese da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. Como vimos, a Convenção de 1968 não está em vigor no Brasil, não podendo ser aplicada. Ter-se-ia, então, de aplicar o art. 109 do Código Penal e fulminar qualquer pretensão persecutória.

Então, só vejo três saídas para firmar o entendimento de que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis também no Brasil, o que pode ser feito mediante:

a) a aplicação do art. 5º, inciso XLIV, segundo o qual “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático“. Este dispositivo poderia ser aplicado para ter como imprescritíveis os crimes contra a humanidades praticados durante o regime militar. Embora se cuide de regra constitucional fundadora de um novo regime constitucional, há um grave óbice: a lei penal mais severa (lex gravior) é irretroativa, consoante o art. 5º, XL, da CF; ou

b) a invocação da imprescritibilidade como jus cogens, isto é, como supernorma imperativa de direito internacional geral. Normas assim não podem ser derrogadas pelo direito interno. Vale notar que com a entrada em vigor da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, promulgada aqui por meio do Decreto 7.030/2009, o Estado brasileiro não pode ignorar a regra do art. 53, segundo a qual o jus cogens é “uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza“. A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade seria uma norma de jus cogens; ou

c) da invocação de uma prática consuetudinária (costume internacional), retratada, entre outros textos, em documentos da ONU e nas consideranda da Convenção de 1968: “em nenhuma das declarações solenes, atas e convenções que visam a perseguição e repressão dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade se previu a limitação no tempo“. Vale observar que o costume é uma fonte do direito internacional que tem o mesmo nível hierárquico que os tratados.

Minha opinião: não creio que, ao julgar a ADPF 153, o STF decida afastar do ordenamento jurídico o §1º do art. 1º da Lei de Anistia, que extinguiu a punibilidade dos autores dos crimes conexos.  Se assim for, não haverá porque o tribunal discutir a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade em tal contexto. Há uma saída mais confortável para a Corte: julgar procedente a ADI 4077 na qual o MPF pede a abertura dos arquivos da ditadura militar, para assegurar o direito à memória e à verdade. Acho que ficaremos nisso.

6 comentários

  1. Na minha opinião, a Lei de Anistia deve ser revogada. Pois segundo a constituição (item XLIII (43°) do Artigo 5°) considera inafiançáveis e insucetíveis de graça ou pena crimes que atentem contra a humanidade, crimes hediondos e outros; Provando que a lei é (na minha opinião), inconstitucional. Além dela, devemos nos lembrar da Convenção sobre a IMPRESCRITIBILIDADE de crimes de Guerra ou contra a humanidade ratificada em 1968 pela ONU, e aderida pelo Brasil. Isso significa, que a nossa constituição (escrita e aprovada por pessoas ligadas ao regime militar) ainda protege muitos dos criminosos que acabaram com a vida de muitas pessoas. Vale ressaltar que não somente os militares praticaram esses crimes mas também civis e militantes armados. Só nos resta que a Presidência da República (uma instituição formada por praticantes de tais crimes) se conscientize e torne a Comissão Nacional da VERDADE uma instituição digna de seu nome e que honre a memória (sejam elas de civis ou militares) daqueles que sofreram durante essa era negra da nossa história.

    OBS.: Perdoe-me se cometi algum erro a cerca da parte jurídica. Sou apenas um aluno do ensino médio.

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  2. Senhor Vladimir, no caso de acontecer “o STF decida afastar do ordenamento jurídico o §1º do art. 1º da Lei de Anistia, que extinguiu a punibilidade dos autores dos crimes conexos”, significa que os guerrilheiros, terroristas, assassinos, justiceiros, sequestradores, assaltantes, subversivos, etc. anistiados, também perderiam suas regalias adquiridas com o perdão de seus crimes? Eu entendi direito? É isso mesmo? Nesse caso, enfim, a Lei seria igual para todos?

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  3. Vlad, com a recepção da Lei da Anistia, haveria possibilidade de sustentar ainda a imprescritibilidade dos crimes cometidos na ditadura de 64?

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  4. Vlad, se a Lei de Anistia for considerada como não recepcionada, não há como considerar a mesma tese “Considerou-se que, como o crime de sequestro é permanente e como as vítimas do regime ainda não foram localizadas, a prescrição ainda não começou a correr.”, no que tange às vítimas não localizadas, para invocar a não prescrição? Abrs.

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    • Sim, Hélio. Você está certo. Admiti essa hipótese quando escrevi que o STF começou a abrir uma avenida para a persecução de tais crimes ao deferir a extradição de Manuel Cordero.
      Abraço.

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