Assistência qualificada às vítimas e o direito de escolher 


Num caso de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado da Nicarágua deveria implementar uma instituição especializada para prestar assistência jurídica gratuita a crianças e adolescentes vítimas de crimes, especialmente de violência sexual.

Este profissional, um defensor da criança ou adolescente, teria a missão de patrocinar os interesses desses menores durante investigações e processos penais, garantindo-lhes uma representação autônoma e diferenciada da dos adultos.

No Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) assegura às mulheres em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços da Defensoria Pública ou de assistência judiciária gratuita, conforme estabelecido nos artigos 27 e 28. Esses dispositivos garantem que as mulheres vítimas sejam acompanhadas por advogados em todos os atos processuais, tanto cíveis quanto criminais, e recebam atendimento específico e humanizado. Garante também a orientação jurídica extrajudicial.

O artigo 7º, inciso II, e o artigo 15, inciso II, da Lei Henry Borel (Lei 14.344/2022), embora com redação diversa, também preveem o direito de crianças e adolescentes vítimas de violência à assistência jurídica prestada pelo Estado, se for o caso.

A semelhança entre essas medidas da legislação brasileira e a preconizada pela Corte IDH evidencia a importância de oferecer assistência jurídica especializada e gratuita a grupos vulneráveis, como idosos, mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência. Tais iniciativas buscam assegurar que seus direitos sejam efetivamente protegidos e promovidos durante as investigações e os processos administrativos ou judiciais, refletindo um compromisso com a justiça e a dignidade humana.

No entanto, essa assistência qualificada não pode ser confundida com uma imposição. É dever do Estado oferecer a mulheres, crianças e adolescentes essa assistência ou orientação, que pode ser prestado pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público.

Mas a vítima tem o direito de optar pela contratação de um advogado particular, se puder arcar com esses custos. Ou ainda pode dispensar essa assistência, se quiser, a partir de uma ciência informada quanto ao exercício dos seus direitos.

Como se vê no artigo 8º, § 2, letra d, da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, é direito de toda pessoa acusada de um crime a constituição de defensor de sua escolha. Esse direito, mutatis mutandi, também é das vítimas, que não perdem o poder de decidir sobre seus próprios interesses e mantêm a autonomia de sua vontade.

Foi neste sentido o posicionamento da Corte IDH no § 387 da sentença proferida no caso V.P.C, V.R.P. e Outros vs. Nicarágua

387. La Corte considera que, como una medida de fortalecimiento de la capacidad institucional del Estado, Nicaragua debe crear e implementar una figura especializada que brinde asistencia jurídica a las niñas, niños y adolescentes víctimas de delitos, especialmente de violencia sexual, es decir un abogado de la niña, niño o adolescente, especializado en la materia, que defienda sus intereses durante las investigaciones y el proceso penal. Dicha asistencia técnica jurídica será brindada por el Estado de forma gratuita, en caso de que la persona menor de edad cuente con la edad y madurez suficiente para manifestar su intención de constituirse como parte querellante en el proceso, con el fin de defender sus derechos de manera autónoma como sujeto de derechos, diferenciada de los adultos. La asistencia técnica será de libre elección, por lo que será ofrecida y se brindará si la niña, niño o adolescente así lo requiere, a menos que cuente con patrocinio jurídico propio.

Está muito claro. Não faz o menor sentido impor uma suposta “assistência qualificada” à vítima, contra a sua vontade. Este é um serviço a que a mulher e os menores vítimas de violência têm direito. Mas isso não lhes suprime a possibilidade de, querendo, contratarem a orientação e o patrocínio de um advogado, ou de usarem serviços gratuitos de outras instituições, ou de se valerem de representação pro bono.

Em outras palavras, a assistência qualificada não é monopólio de nenhuma instituição em particular. 

De mais a mais, apesar da denominação dúbia, essa assistência a vulneráveis não se confunde com a assistência da acusação, instituto tradicional no Brasil, previsto no CPP. Para este tipo de atuação processual há regras próprias, relativas à postulação da vítima em juízo, na ação penal proposta pelo Ministério Público. 

Em suma, a assistência qualificada é uma coisa, e a assistência de acusação é outra. Aquela é mais ampla, pois pode se concretizar em juízo ou fora dele; esta só ocorre na ação penal.

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