O caso da derrubada do voo MH-17


Os destroços do MH-17 (Foto de Piroschka van de Wouw – Reuters)

A condenação de três pessoas na Holanda encerra um capítulo da história dos atentados à aviação civil. A condenação proferida na Haia em novembro de 2022 no caso do voo MH-17 resulta do trabalho de uma bem-sucedida equipe conjunta de investigação (ECI), que reuniu profissionais de cinco países, e da eficiente coordenação de jurisdições para selecionar o foro mais apropriado à boa administração da justiça.

O voo MH-11, da Malaysian Airlines, ia de Amsterdã para Kuala Lumpur, quando foi derrubado em 17 de julho de 2014, no contexto da primeira invasão da Ucrânia pela Rússia. A tomada da Crimeia havia começado em 28 de fevereiro daquele ano e forças separatistas pró-Rússia já operavam também nas regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk, que se declararam independentes em 2022.

Diante das operações russas em território ucraniano e das diversas manobras e ataques que violaram flagrantemente a Carta das Nações Unidas e outras normas do direito internacional, fica fácil perceber a ligação do ataque a esse avião de passageiros com os crimes praticados ou apoiados por Moscou no território ucraniano desde o início de 2014.

A derrubada do MH-17 provocou estupor internacional. Infelizmente, outros eventos graves contra aeronaves de passageiros ocorreram ao longo do século 20, São exemplos a queda do voo KAL 007, da Korean Airlines, atingido por caças russos em 1983, perto da Ilha de Sacalina; a destruição do avião que fazia o voo 655 da Iran Air, pelo USS Vincennes no Golfo Pérsico em 1988; a derrubada do voo 103 da PanAm, sobre Lockerbie, na Escócia, naquele mesmo ano; e o atentado contra o voo da Union de Transports Aériens (UTA 772) que foi destruído sobre o deserto do Saara, no Níger, em 1989. Em 2020, um voo da Ukraine International Airlines (AUI 752) foi derrubado por engano por um míssil iraniano logo após decolar do aeroporto de Teerã.

Quando eventos desta natureza ocorrem, pode-se ter uma violação do direito internacional da aviação civil. Em 2022, com base na Convenção sobre Aviação Civil Internacional, concluída em Chicago em 1944 e promulgada entre nós pelo Decreto 21.713/1946, a Holanda e a Austrália pediram à Organização de Aviação Civil Internacional (OACI) que apurasse a responsabilidade da Rússia pela derrubada do voo MH-17.

Um dos objetivos da OACI, segundo o art. 44 da Convenção de Chicago é “contribuir para a segurança dos voos na navegação aérea internacional”. Seu artigo 84 cuida do procedimento de solução de controvérsias entre os Estados Partes, e o art. 88 determina que a Assembleia da OACI pode suspender o direito de voto na Assembleia e no Conselho de qualquer Estado Parte que descumprir suas obrigações convencionais.

O art. 3º-bis da Convenção de Chicago – introduzido por emenda em 1984 e em vigor desde 1998 – também vem ao caso, pois determina que os Estados Partes devem abster-se de usar armas contra aeronaves civis em voo, salvo se forem hostis.

Articulo 3 bis
a) Los Estados contratantes reconocen que todo Estado debe abstenerse de recurrir a1 uso de las armas en contra de las aeronaves civiles en vuelo y que, en caso de interceptacidn, no debe ponerse en peligro la vida de los ocupantes de las aeronaves ni la seguridad de estas. La presente disposición no se interpretará en el sentido de que modifica en modo alguno los derechos y las obligaciones de los Estados estipulados en la Carta de las Naciones Unidas.

Na investida internacional para punir os responsáveis pela tragédia do voo MH-17, em 2020, a Holanda apresentou à Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) uma comunicação interestatal contra a Rússia, para que o Moscou seja responsabilizada internacionalmente pela violação dos direitos humanos das vítimas e familiares das vítimas da derrubada da aeronave, que foi atingida por um míssil russo da classe Buk-TELAR. Trata-se do processo Países Baixos vs. Rússia (nº 28525/20), no qual Amsterdã alega ter havido ofensa ao direito à vida e à integridade física e descumprimento pelo Kremlin das obrigações de investigar e processar os responsáveis pelo lançamento do míssil que derrubou a aeronave (direito a um recurso efetivo).

Eventos como a aviação civil podem ter soluções as mais diversas. O caso do atentado de 1988 contra o voo PanAm, que decolara de Londres com destino a Nova York, foi submetido a julgamento por um tribunal especial, organizado segundo as leis inglesas e formado por juízes escoceses, que tomaram assento na Haia, na Holanda. A corte especial escocesa na Holanda tinha competência exclusiva para julgar os dois agentes líbios acusados pelo Ocidente de terem derrubado o avião norte-americano, matando todos os seus 270 passageiros.

Várias resoluções do Conselho de Segurança, aprovadas a partir de 1992, e acordos internacionais firmados no final dos anos 1990 pelo governo de Muammar Khadafi e pela Holanda viabilizaram a transferência de custódia dos dois suspeitos, Lamin Khalifa Fhimah e Abdelbaset al-Megrahi, e o início do julgamento. Devido a sua inércia em apurar o caso e em colaborar com as autoridades dos países vitimados, a Líbia foi diversas vezes sancionada pelo CS/ONU por terrorismo internacional. Tais sanções incluíam embargos econômicos ao país.

A Resolução S/RES/1192 (1998), do Conselho de Segurança das Nações Unidas, estabeleceu o formato do futuro tribunal para o caso do voo PanAm 107:

  1. Acoge con beneplácito la iniciativa para que se juzgue a las dos personas acusadas de provocar la explosión del vuelo 103 de la compañía PAN AM (“los dos acusados”) ante un tribunal escocés que sesione en los Países Bajos, como se indica en la carta de fecha 24 de agosto de 1998 de los Representantes Permanentes interinos de los Estados Unidos de América y del Reino Unido de Gran Bretaña e Irlanda del Norte (“la iniciativa”) y sus anexos, así como la disposición del Gobierno de los Países Bajos a cooperar en la ejecución de la
    iniciativa;
  2. Insta al Gobierno de los Países Bajos y al Gobierno del Reino Unido a que adopten las medidas que sean necesarias para ejecutar la iniciativa, incluso la concertación de acuerdos con miras a habilitar al tribunal descrito en el párrafo 2 para ejercer jurisdicción conforme a lo dispuesto en el Acuerdo propuesto entre los dos Gobiernos, adjunto a la carta mencionada de 24 de agosto de 1998;
  3. Decide que todos los Estados cooperen con este fin y, en particular, que el Gobierno de Libia asegure la comparecencia en los Países Bajos de los dos acusados a los efectos de enjuiciamiento por el tribunal descrito en el párrafo 2, y que el Gobierno de Libia vele por que cualesquiera pruebas o testigos que se encuentren en Libia, a solicitud del tribunal, se pongan a la brevedad a disposición del tribunal en los Países Bajos a los efectos del
    juicio;

Jonathan Schwartz conta que, ultimadas as negociações internacionais para o Acordo entre o Governo do Reino Unido e o governo dos Países Baixos relativo à corte escocesa na Holanda, de 1998, Tripoli entregou os dois suspeitos ao governo holandês e ambos foram juridicamente extraditados para o Reino Unido, sem transferência de custódia. Pôde-se iniciar o processo perante a tróika extraterritorial escocesa, reunida em Camp Zeist. Chegou-se à fase de julgamento no ano 2000 e em janeiro do ano seguinte Fhimah foi absolvido e al-Megrahi, condenado a prisão perpétua, pela colocação de uma mala com explosivos no interior da aeronave, então em escala no aeroporto de Heathrow.

Soluções engenhosas como esta podem dispensar a constituição de tribunais internacionais ad hoc. A derrubada do voo MH-17 na Ucrânia provocou expectativas semelhantes da comunidade internacional, de que um julgamento deveria ser feito para atender ao ideal de justiça universal.

Imediatamente após a queda do voo MH-17, ainda em 2014, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução S/RES/2166 (2014), de 21 de julho, pela qual decidiu apoiar os esforços “para dar início a uma investigação internacional independente, rigorosa e completa sobre o incidente, de acordo com as diretrizes internacionais sobre aviação civil”

Em 2015, a Malásia, país de origem da companhia aérea que operava o voo, apresentou uma proposta de resolução ao Conselho de Segurança da ONU para a criação de um tribunal internacional ad hoc para julgar crimes de direito penal internacional e de direito penal ucraniano cometidos quando da derrubada do voo MH-17 no ano anterior. Porém, tal projeto foi vetado pela Federação Russa, um dos cinco membros permanentes do Conselho.

O item 6 da proposta malaia de resolução (S/2015/562) dizia que o Conselho de Segurança da ONU decidiria “estabelecer um tribunal internacional com a finalidade exclusiva de julgar os responsáveis pelos delitos relacionados à derrubada do voo MH17 da Malaysia Airlines ocorrida em 17 de julho de 2014 na província de Donetsk (Ucrânia)”. Para tal fim, o Conselho aprovaria na mesma ocasião “o Estatuto do Tribunal Penal Internacional para o Voo MH17 da Malaysia Airlines” que constava como anexo à resolução. Como de costume, o tribunal funcionaria na Holanda, conforme o seu Estatuto.

No pós-guerra, o CS/ONU foi responsável pela criação, por resolução, de duas cortes penais internacionais ad hoc, chamadas de tribunais de segunda geração. Foram eles o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia – Resolução S/RES/827 (1993) – e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda – Resolução S/RES/955 (1994). Vale notar que este último tribunal era competente para o julgamento do crime de genocídio promovido por milícias hutus contra a etnia tutsi, numa escalada de violência que se intensificou após o atentado de 6 de abril de 1994, em Kigali, contra o jato particular Falcon 50 que levava o então presidente do país, o hutu Juvénal Habyarimana. Em cem dias de conflito, cerca de 800 mil tutsis foram mortos por grupos armados conhecidos como Interahmwe, ligados à organização política extremista Hutu Power, que eram apoiados pela emissora Radio-Télévision Libre des Mille Collines (RTLM), que incitava o genocídio tutsi.

Vale lembrar que, em regra, os tribunais penais internacionais são subsidiários à jurisdição local. No Estatuto de Roma, de 1998, esta previsão é expressa. Antes de pensar na atuação da justiça penal internacional, é de se ver se o Judiciário nacional pode exercer jurisdição territorial ou extraterritorial sobre determinados fatos.

Diante da resistência política que inevitavelmente viria de Moscou à criação de uma corte internacional ad hoc para o caso MH-17, os países vitimados pela queda avião organizaram-se para conduzir uma investigação doméstica, mas multinacional, por meio da constituição de uma equipe conjunta de investigação (ECI) ou Joint Investigative Team (JIT). Austrália, Bélgica, Malásia, Holanda e Ucrânia participaram da ECI, que teve o apoio da Eurojust.

Ajustou-se também, por meio de acordos internacionais, que o julgamento dos réus ocorreria na Holanda, o país de onde partira a aeronave e ao qual pertenciam 192 das 298 vítimas. Excluiu-se, portanto, por acordo de cooperação, a jurisdição territorial ucraniana. A formação de ECIs e a transferência de processos penais são instrumentos de coordenação de jurisdições para a eficiência da prestação jurisdicional em casos transnacionais, no cumprimento de obrigações processuais positivas e na tutela de direitos humanos. Esses mecanismos permitem a economia de recursos públicos e promovem o respeito pelo princípio ne bis in idem.

Três dos quatro réus identificados pela JIT e processados pelo Ministério Público holandês (Openbaar Ministerie) foram julgados a revelia e condenados a prisão perpétua. Uma corte regular holandesa aplicou o direito penal holandês, conforme o acordo entre a Holanda e Ucrânia, firmado em Tallinn, em 7 de julho de 2017.

Pelo acordo, a Ucrânia realizaria a transferência da persecução penal para os Países Baixos, sem prejuízo da jurisdição originária holandesa, já que as vítimas eram em sua maioria passageiros de nacionalidade holandesa.
Foram julgados os russos Igor V. Girkin, Sergey N. Dubinskiy e Oleg Y. Pulatov e o ucraniano Leonid V. Kharchenko. Três deles – Girkin, Dubinskiy e Kharchenko – foram processados in absentia (a revelia), enquanto Pulatov constituiu advogado. Ele foi o único réu a ser absolvido.

O Openbaar Ministerie denunciou os acusados pelo crime do art. 168 do CP holandês, pela derrubada intencional de uma aeronave, e por múltiplos homicídios “premeditados” (art. 289 do mesmo Código). Como vimos, todas as 298 pessoas a bordo do voo MH-17 morreram.

O quadro jurídico para esse julgamento foi viabilizado pelo já mencionado Acordo de Tallinn, de julho de 2017, e por um memorando de entendimento (MOU) firmado por Austrália, Bélgica, Malásia, Holanda e Ucrânia em 20 de setembro daquele mesmo ano, também para que o processo e o julgamento dos crimes relativos ao voo MH-17 ocorressem na Holanda, num juízo criminal na Haia, segundo a lei penal local.

MOU de 20 de setembro de 2017

Paragraph 2
National prosecution by the Netherlands
The signatories have concluded that a prosecution in the Netherlands is an effective
process for ensuring accountability in compliance with the highest international
standards. A prosecution in the Netherlands will satisfy the UN Security Council’s stated
aim of holding the perpetrators to account. The JIT-partners have the utmost confidence
in the quality, independence and impartiality of the Dutch judicial system. The
signatories therefore fully support the national prosecution conducted in and by the
Netherlands of those responsible for the downing of flight MH17.

Foi nesse contexto de resistência de Moscou a uma solução puramente internacional e de possibilidade de cooperação jurídica mediante a coordenação de jurisdições nacionais que a Ucrânia (país da ocorrência) e a Holanda (país de origem do voo e da maioria das vítimas) realizaram a transferência do processo penal de Kiev para a Haia, objeto do art. 6º do Acordo de Tallinn de 2017, complementado por uma lei especial ucraniana.

Os três acusados condenados a prisão perpétua em novembro de 2002 ainda podem recorrer. Se a sentença transitar em julgado, uma nova etapa se iniciará, dependendo mais uma vez da cooperação jurídica internacional para eventual captura e extradição dos implicados. No cenário da Guerra da Ucrânia, é pouco provável que isto venha a acontecer.

A via da OACI tampouco parece muito promissora, dada a inexistência de casos nos quais Estados soberanos tenham sido responsabilizados internacionalmente pela violação da Convenção de Chicago, de 1944. Porém, pode ser relevante no caso contra a Rússia o art. 14 da Convenção para a Repressão dos Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, promulgado no Brasil pelo Decreto 72.383/1973. Este tratado, conhecido como Convenção de Montreal, de 1971, procura reprimir atos individuais que ponham em risco a segurança da aviação civil. Diferendos com base nessa convenção podem ser submetidos à Corte Internacional de Justiça (CIJ), na Haia.

Foi exatamente o que aconteceu no caso da derrubada do voo 103 da PanAm. Pressionada pela ONU e pela comunidade internacional, especialmente pelos EUA e pelo Reino Unido, a Líbia levou a questão à Corte Internacional de Justiça, argumentando que os suspeitos pelo atentado de Lockerbie deveriam ser julgados, preferencialmente, no território do Estado em que se encontrassem, isto é, na Líbia, valendo a regra extraditare vel iudicare.

Artigo 7º

O Estado contratante em cujo território o suposto criminoso for encontrado, se não o extraditar, obrigar-se-á, sem qualquer exceção, tenha ou não o crime sido cometido no seu território, a submeter o caso a suas autoridades competentes para o fim de ser o mesmo processado. As referidas autoridades decidirão do mesmo modo que no caso de qualquer crime comum, de natureza grave, em conformidade com a lei do referido Estado

Este processo ficou conhecido como Questões de Interpretação e Aplicação da Convenção de Montreal de 1971 decorrentes do Incidente Aéreo em Lockerbie (República Árabe da Líbia vs. Estados Unidos da América), iniciado em 1992. Em 1998, a CIJ afastou as preliminares levantadas pelos EUA e pelo Reino Unido e decidiu que tinha jurisdição sobre o caso. Porém, como vimos, o acordo firmado para a transferência voluntária da custódia dos dois réus líbios fez com que, a pedido das partes, o caso Lockerbie fosse arquivado pela CIJ em 2003.

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