A concordância do MP como condição dos acordos policiais de colaboração premiada


Foto por Andrea Piacquadio em Pexels.com

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5508 por meio da qual a Procuradoria Geral da República (PGR) questionava os §§2º e 6º do art. 4º da Lei 12.850/2013, que dispõe sobre o crime organizado.

Na ocasião, o STF assim se manifestou:

DELAÇÃO PREMIADA – ACORDO – CLÁUSULAS. O acordo alinhavado com o colaborador, quer mediante atuação do Ministério Público, quer da Polícia, há de observar, sob o ângulo formal e material, as normas legais e constitucionais. DELAÇÃO PREMIADA – ACORDO – POLÍCIA. O acordo formalizado mediante a atuação da Polícia pressupõe a fase de inquérito policial, cabendo a manifestação, posterior, do Ministério Público. DELAÇÃO PREMIADA – ACORDO – BENEFÍCIOS – HOMOLOGAÇÃO. A homologação do acordo faz-se considerados os aspectos formais e a licitude do que contido nas cláusulas que o revelam. DELAÇÃO PREMIADA – ACORDO – BENEFÍCIO. Os benefícios sinalizados no acordo ficam submetidos a concretude e eficácia do que versado pelo delator, cabendo a definição final mediante sentença, considerada a atuação do órgão julgador, do Estado-juiz.

(STF, ADI 5508, rel. min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, j. em 20/06/2018, p. em 05/11/2019)

A legitimidade dos delegados de Polícia para a celebração de acordos de colaboração premiada (na sua forma bilateral) está inequivocamente prevista nos arts. 4º, §§2º, 6º e 9º, e no art. 6º, incisos II e IV, da Lei 12.850/2013.

O tema causou e causava controvérsia na doutrina, quando, em maio de 2021, o STF voltou a ele, desta vez ao julgar o agravo regimental interposto pela PGR na Petição 8482, relativa ao acordo de colaboração premiada celebrado pela Polícia Federal com o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.

Na PET 8482 AgR/DF, o STF reposicionou-se:

ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. PRELIMINAR SUSCITADA PELA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA. LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE POLICIAL. PRECEDENTE DA ADI 5.508, POSIÇÃO MAJORITÁRIA DO STF PELA AUTONOMIA DA PF NA CELEBRAÇÃO DE ACP. POSIÇÃO CONTRÁRIA DESTE RELATOR VENCIDA NA OCASIÃO. TEMA QUE REPÕE A PGR EM PLENÁRIO E EM MENOR EXTENSÃO DO VOTO ENTÃO VENCIDO. ANUÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO SUSCITADA AGORA PELA PGR. CONDIÇÃO DE EFICÁCIA. ACOLHIMENTO.
1. Nos termos do entendimento formado no julgamento da ADI 5.508, a autoridade policial tem legitimidade para celebrar autonomamente acordo de colaboração premiada. Em voto vencido, assentada a negativa dessa faculdade.
2. Matéria novamente suscitada, em menor extensão, pela PGR. Considerada a estrutura acusatória dada ao processo penal conformado à Constituição Federal, a anuência do Ministério Público deve ser posta como condição de eficácia do acordo de colaboração premiada celebrado pela autoridade policial. Posicionamento de menor extensão contido no voto vencido proferido. Possibilidade de submeter a matéria ao mesmo Plenário a fim de que o entendimento majoritário seja confirmado ou eventualmente retificado. Em linha de coerência com o voto vencido, pela retificação do entendimento majoritário na extensão que pleiteia a PGR.
3. Questão preliminar suscitada pela Procuradoria-Geral da República acolhida para dar parcial provimento ao agravo regimental e tornar sem efeito, desde então, a decisão homologatória do acordo de colaboração premiada celebrado nestes autos, ante a desconformidade manifestada pelo Ministério Público e aqui acolhida. Eficácia ex tunc.

(STF, Pet 8482 AgR / DF, rel. min. EDSON FACHIN, j. em 31/05/2021, p. em 21/09/2021)

A questão foi posta pela PGR na preliminar do agravo regimental, que foi acolhida pelo plenário do STF por maioria de 7 votos a 4, ficando vencidos os ministros Roberto Barroso, Marco Aurélio, Rosa Weber e Cármen Lúcia, que a rejeitavam.

O inteiro teor dos votos vencedores não está disponível, pois o caso é sigiloso. No entanto, pode-se afirmar que o STF procurou alinhar sua interpretação ao modelo acusatório de processo penal tal como estruturado no Brasil, a partir de elementos essenciais (a condição de parte acusadora do Ministério Público e sua titularidade privativa sobre a ação penal) e de elementos acidentais desse design acusatório (a meu ver, o exercício do controle externo da atividade policial pelo MP).

Assim, minha impressão, s.m.j., é a de que, embora sem o dizer, o STF reforçou a atribuição do Ministério Público de controle externo (substancial) da atividade policial, nos termos do art. 129, inciso VII, da Constituição. O novo posicionamento do STF quanto aos acordos de colaboração, que não decorre de um reexame da Lei 12.850/2013, mas, sim, da Constituição, vem a ser uma chave para uma releitura desse dispositivo constitucional (inciso VII), o único, segundo me parece, capaz de conciliar a capacidade investigatória da Polícia e o papel de dominus litis do Ministério Público nas ações públicas.

No julgamento da ADI 5508, o ministro Celso de Mello, embora votando com maioria, já identificava a relação intrínseca entre essa capacidade negocial da Polícia e o controle externo a que sujeita, a cargo do Ministério Público. Dizia ele: “A exigência legal de manifestação do Ministério Público, se e quando o acordo de colaboração premiada for celebrado pela autoridade policial configura um natural consectário resultante da própria Constituição, que atribui ao Ministério Público o poder de controle externo da atividade policial”. No entanto, o referido julgador não chegou à conclusão inafastável de que o exercício de controle na esfera administrativa compreende o poder de sanção, o que não é o caso, por falta de hierarquia entre tais instituições e de poder disciplinar, conforme, aliás, decidiu o STF no HC 97.969, notando-se sua natureza externa. Mas o exercício do controle compreende também o poder de correção ou de retificação das manifestações policiais na atividade-fim, o que se faz em proveito do cidadão investigado, não em benefício da corporação do Parquet.

Com sua nova decisão, tornada pública em setembro de 2021, o STF fortalece uma opção, dentro do modelo acusatório, por um processo penal “de partes”, no qual o diálogo perante o juiz quanto às posições processuais em jogo e a sustentação dessas posições processuais caberão ao órgão de acusação e à defesa, jamais à Polícia. Não se pode deixar de perceber que a ideia de um processo “de partes” exclui a Polícia de intervenções estranhas à investigação criminal, sobretudo aquelas que dizem respeito ao direito de ação ou à renúncia a ele, no todo ou em parte. Sua presença processual em juízo desequilibra o xadrez judicial em detrimento do acusado.

Ademais, o reposicionamento do STF na matéria potencializa o papel do MP como instituição de garantias na ótica dos interesses jurídicos dos possíveis delatados. É, assim, um reforço ao devido processo. O aval do MP para que um acordo policial de colaboração premiada tenha seguimento é uma contenção a mais do poder punitivo do Estado; serve como filtro sistêmico, que pode ser lido em conjunto com a introdução do juiz de garantias no processo penal brasileiro.

Se a atividade de promotores de Justiça e procuradores da República, na persecução penal, estará sujeita ao controle externo do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do Poder Judiciário e ao controle interno mediante a aplicação do art. 28 do CPP, a atividade policial deve, mutatis mutandi, submeter-se a ao menos a um duplo controle: o primeiro, externo, a cargo do Ministério Público, e o segundo, de mesma natureza, pelo Estado-juiz.

Nesta linha de ideias, uma manifestação ministerial prévia e vinculante quanto à viabilidade do acordo formalizado pela Polícia Civil ou pela Polícia Federal é, como tudo que diz respeito às perspectivas probatórias incriminatórias, protetiva da posição de isenção do juiz numa etapa crucial, aquela da produção das provas de corroboração em juízo. A Polícia não é parte da ação penal; o Ministério Público não aderiu ao acordo; o juiz não deve buscar a prova de conteúdo incriminatório nem geri-la. Admitindo-se os acordos policiais sem adesão do Parquet, não haveria quem pudesse disso cuidar durante a instrução criminal, sem se ferir a independência funcional do “promotor natural”, sem se quebrar a imparcialidade do juiz.

Agora na perspectiva dos colaboradores, o prévio aval do Ministério Público amplia a segurança jurídica do ajuste e lhes confere maior proveito, pois o acordo policial terá, desde o início, a aderência do Parquet quanto à defesa de sua homologação e de sua cabal execução, inclusive, ao final, com a concessão dos benefícios acordados, mesmo em eventual etapa recursal.

Do ponto de vista do procedimento, com a nova posição do STF, a colaboração premiada passa a estar sujeita a duplo controle, quanto a sua validade e eficácia, quando a celebração ocorrer perante a Polícia. Nestas hipóteses, a eficácia do acordo (ou, antes, se preferirem, sua validade) dependerá da concordância do Ministério Público, por meio do “promotor natural”, à qual se deve seguir a homologação judicial, nos termos do art. 4º, §7º, da Lei 12.850/2013. O acordo só passará pelo segundo filtro, se, antes, houver passado pelo primeiro.

Vale ainda lembrar que, por ocasião da decisão do STF na ADI 5508, vários especialistas chamaram a atenção para um aspecto de debilitação do mecanismo negocial, com a afirmação de duas autoridades com legitimidade para celebração de acordos. Em lugar da tradicional nota que marca os acordos penais (o “dilema do prisioneiro”), consagrou-se ali a possibilidade de um dilema do carcereiro, que permitirá ao colaborador mau intencionado jogar com o processo para obter da Polícia ou do Ministério Público benefícios maiores ou mais robustos do que aqueles que obteria em troca, às vezes, de um conjunto menor de informações de interesse criminal ou de informações de baixa qualidade epistémica. O pronunciamento do STF na PET 8484 corrige essa fragilidade no regime de incentivos para a colaboração efetiva.

Por fim, como lembrou o ministro Fachin no seu voto na ADI 5508, em 2018, disso não resulta que “Delegados de Polícia estejam constitucionalmente alijados das dinâmicas próprias que envolvam a colaboração premiada, especialmente se vista como gênero, ou seja, especialmente se a colaboração não decorre de um acordo”.

A formalização de acordos válidos e eficazes é atribuição inerente à titularidade para a propositura da ação penal, pois, como lembrou Edson Fachin na referida ADI 5508, celebração do acordo pressupõe o exercício de do juízo acusatório, que é privativo do “promotor natural”. No arranjo acusatório adotado pela Constituição de 1988, esta tarefa cabe ao Ministério Público, sem óbice à concretização de medidas policiais para que ocorra uma colaboração premiada unilateral (delação premiada) ou para a existência de um acordo de colaboração premiada (bilateral).

Em suma, só vejo vantagens na decisão que comentamos, que, se representa um passo atrás do STF em relação à ADI 5508, corresponde a dois passos à frente quanto à efetividade dos acordos, à lógica do nosso sistema processual e à exata compreensão do controle externo da atividade policial.

Este texto foi originalmente publicado no JOTA em 27/09/2021.

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