O processo do Palácio de Londres


Vaticano, cardinali contro il palazzo pagato con l'obolo
O imóvel da Sloane Avenue em Londres (Fonte: Corriere della Sera)

Dez pessoas estão implicadas no “escândalo do palácio de Londres”, que começou a ser julgado em 27 de julho de 2021 pela justiça comum da Cidade Estado do Vaticano. Os réus, nove homens e uma mulher, são acusados pelos crimes de fraude, lavagem de dinheiro, abuso de funções e corrupção. Entre eles está o cardeal Angelo Becciu, ex-assessor do Papa Francisco na Secretaria de Estado, além de René Brülhart, ex-dirigente da unidade de inteligência financeira (Autorità di Vigilanza e Informazione FinanziariaASIF) do Vaticano, entidade que integra o grupo de Egmont desde 2013 e que corresponde ao COAF brasileiro.

O julgamento de cardeais e bispos pela primeira instância da justiça comum vaticana tornou-se possível graças a uma emenda aprovada pelo Papa Francisco em 2021, por meio de uma carta apostólica motu proprio. O artigo 24 da Lei de Organização Judiciária do Vaticano (Lei CCCLI, de 16 de março de 2020) previa que bispos e cardeais tinham foro especial perante o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. Desde a reforma legislativa, podem ser julgados em primeiro grau por crimes comuns, em pé de igualdade com outras pessoas. Porém, em assuntos da fé, os cardeais continuam submetidos a julgamento pelo Sumo Pontífice, conforme o cânon 1405 do Código Canônico.

O prédio, que foi adquirido pela Santa Sé em Londres e situa-se na Sloane Avenue em Chelsea, custou cerca de 350 milhões de euros. Parte dos recursos usados no negócio foi desviada do Óbolo de São Pedro (Denarii Sancti Petri), o fundo de beneficência mantido pela Santa Sé para ações de assistência social de iniciativa do Papa.

A denúncia apresentada pelos promotori di Giustizia do Vaticano tem 487 páginas e será submetido a um órgão colegiado de primeiro grau, com direito a recurso.

Segundo o art. 1º da Lei de Organização Judiciária (LOJ), o Poder Judiciário local tem três instâncias. Em primeiro grau funciona o Tribunal do Estado do Vaticano. Cinco juízes o compõem, mas uma turma de três magistrados julga os réus. Após a decisão, cabe recurso para a Corte d’Apello, órgão de segunda instância, com três magistrados mais o presidente, este sem voto. Dali um caso pode ser remetido à Corte di Cassazione, instância máxima com três cardeais juízes e que pode organizar-se, em causas complexas, em sessão ampliada com outros dois magistrados leigos. Esta corte corresponde ao Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, que é também um tribunal canônico.

O MInistério Público (Ufficio del promotore di giustizia) é objeto do art. 12 da LOJ, sendo composto por um titular e dois adjuntos. Os promotores de Justiça do Vaticano têm autonomia e independência funcional para o exercício das funções do Ministério Público. Segundo o art. 13.3 da Lei, a seção de Polícia Judiciária da Gendarmeria do Vaticano está funcionalmente subordinada ao Ministério Público. Perante os tribunais de segunda e terceira instância, funcionam mais dois promotores de Justiça, um para cada grau.

Os membros do Ministério Público e os juízes, todos com o tratamento de magistrati, são juristas indicados pelo Papa, entre professores e advogados. Já o tribunal comum mais alto do Vaticano é composto por três cardeais. Tais autoridades, quando no cargo (durante munere) são considerados cidadãos vaticanos, conforme o art. 4º da LOJ.

Conforme a Lei Fundamental de 1929 e os arts. 7º e 8º da Lei sobre as Fontes do Direito, aplicam-se no Vaticano o direito penal e o direito processual penal comuns, fortemente influenciados pela legislação italiana. O Código Penal italiano de 1889 (Codice Zanardelli) foi adotado em 1929, por ocasião dos Acordos de Latrão e amplamente reformado em 1969. A última grande atualização ocorreu em 2013 como consequência da adesão do Vaticano às convenções das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Palermo, 2000) e contra o Tráfico Internacional de Drogas (Viena, 1988) em 2012, e do ingresso do país na Convenção contra a Corrupção (Mérida, 2003), em 2016. No entanto, “o ordenamento jurídico vaticano reconhece no ordenamento canônico sua principal fonte normativa e seu principal critério de referência interpretativa”.

Como é fácil notar, o sistema prisional Vaticano é exíguo. As poucas celas são controladas pelo Corpo della Gendarmeria dello Stato della Città del Vaticano. Em caso de condenação, os réus podem cumprir penas de até 35 anos em prisões italianas, conforme os Acordos de Latrão. Não há prisão perpétua no país.

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