1. Violência política no Brasil
O atentado a faca contra a vida do candidato Jair Bolsonaro em 6 de setembro de 2018 provocou intensos debates jurídicos e políticos no País.
Do ponto de vista político, discutiu-se se o ataque lhe teria sido benéfico nas urnas, ou se não teria qualquer impacto eleitoral. Outros apostavam na tese de uma suposta armação. Alguns acreditavam que tudo não passou de fake news.
Não era notícia falsa. Infelizmente, o acirramento dos ânimos dos brasileiros em torno da disputa eleitoral, que vem num desagradável crescendo nos últimos meses, levou a esse ato de intolerância, que é repudiável venha de onde vier. Democracia não tolera extremismos. A violência como forma de expressão ou de atuação eleitoral tem de ser deixada para trás. Não são poucos os casos de candidatos a prefeito ou a vereador que perdem suas vidas em razão de embates políticos, durante as campanhas municipais.
Na crônica política baiana, é muito conhecida a história de Ivan Eça Menezes, ex-prefeito do município de Ubaíra pelo antigo PFL, que foi condenado por matar seu adversário Natur de Assis Filho, um ambientalista que militava no Partido Verde. O crime ocorreu em 2001. O júri, desaforado para a comarca de Feira de Santana, resultou na condenação do agressor a mais de 19 anos de reclusão.
Divergências políticas também marcaram o famoso caso Gulliver, na Paraíba. Em 1993, em um restaurante em João Pessoa, o ex-governador, ex-senador e ex-deputado Ronaldo Cunha Lima, já falecido, atentou contra a vida de seu antecessor Tarcisio Burity, mas não o matou. Nunca foi julgado.
Também da política paraibana, merece registro, pela sua enorme importância histórica, o atentado contra a vida do ex-governador e ex-ministro João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, ocorrido em 1930 no Recife. Sua morte é considerada uma das causas da Revolução de 1930, que levou à deposição do presidente Washington Luís e à ascensão de Getúlio Vargas.
2. De que crime se trata?
Se, na perspectiva política, a campanha presidencial de 2018 ainda não está definida, do ponto de vista jurídico, a discussão sobre o atentado a Jair Bolsonaro também não se encerrou e gira em torno de saber qual o crime cometido e qual seria a Justiça competente para julgar seu autor ou autores.
Portanto, qual seria o crime ou os crimes praticados por Adélio Bispo de Oliveira e seus supostos cúmplices?
2.1. A tentativa de homicídio
Houve uma tentativa de homicídio na minha opinião. O agressor usou um instrumento de grande lesividade (uma faca de razoável dimensão) e atingiu região potencialmente letal: o abdômen da vítima, onde estão vários órgãos vitais. O risco causado à vida do ofendido é inquestionável.
O resultado morte só não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do agressor. E é isto que caracteriza uma tentativa de homicídio. A vitima só não perdeu a vida porque houve rápido socorro, os médicos fizeram os procedimentos cirúrgicos adequados e o hospital tinha boas condições de atendimento. Não fossem esses fatores externos à conduta e independentes da vontade do criminoso, a vítima poderia ter morrido.
Essa tentativa de homicídio é qualificada pela utilização de surpresa, um recurso que dificultou defesa da vítima (art. 121, §2º, IV), e por sua motivação fútil (inciso II), isto é, a mera divergência de ideias ou de ideologia política. Pode-se pensar também na dissimulação, já que o agressor fez-se passar por eleitor da vítima.
Neste caso, a pena do agressor pode variar de 12 a 30 anos de reclusão, com a redução da tentativa entre um terço e dois terços, na forma do art. 14, parágrafo único, do Código Penal.
2.2. O crime político
Uma segunda conduta pode ter ocorrido simultaneamente à tentativa de homicídio. Com uma só ação, o autor da agressão teria então cometido dois delitos. É o que se chama de concurso formal. O segundo delito seria um crime político, uma categoria especial de infração penal que não se confunde com os crimes eleitorais nem com os crimes comuns cometidos por motivação político-partidária.
Os crimes políticos estão previstos na Lei 7.170/83, conhecida como Lei de Segurança Nacional (LSN). São de competência federal e têm rito recursal especial, porque a apelação, que se chama recurso ordinário, é julgada diretamente pelo STF, conforme o art.102, II, “b”, da Constituição.
Há vários delitos políticos previstos na lei brasileira. Alguns deles são afastados de pronto, como o do art. 29 da Lei 7.170/1983 (LSN):
Art. 29 – Matar qualquer das autoridades referidas no art. 26.
Pena: reclusão, de 15 a 30 anos.
Art. 26 – Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos
É que apenas as pessoas listadas no art. 26 da mesma lei são especialmente protegidas quanto a suas vidas e suas integridades físicas no tocante a essa forma especial de homicídio. São elas o presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal. Ninguém mais, nem o Procurador-Geral da República, que é notável ausência a merecer retificação pelo legislador.
Ademais, para que ocorra um crime político, como este do art. 29 da Lei 7.170/1983, devem estar presentes circunstâncias indicadas pelos arts. 1º e 2º da LSN, quanto à finalidade, ao bem jurídico violado e à motivação da conduta:
Art. 1º – Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão:
I – a integridade territorial e a soberania nacional;
Il – o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito;
Ill – a pessoa dos chefes dos Poderes da União.
Art. 2º – Quando o fato estiver também previsto como crime no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis especiais, levar-se-ão em conta, para a aplicação desta Lei:
I – a motivação e os objetivos do agente;
II – a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior.
Na audiência de custódia realizada na Justiça Federal em Juiz de Fora, a conduta de Adélio Bispo de Oliveira foi classificada como sendo o crime político do art. 20 da Lei 7.170/1983. A prisão em flagrante foi convertida em prisão preventiva pela Justiça Federal.
Assim que concluída a investigação, caberá ao MPF, representado pelo procurador Marcelo Medina, de Juiz de Fora, ao oferecer a denúncia à Justiça, indicar os crimes pelos quais o agressor responderá em juízo. O membro do MPF pode optar apenas pela tentativa de homicídio qualificado, ou apenas pelo crime político ou por ambos em concurso.
Há espaço jurídico para argumentar a tese de que, simultaneamente à tentativa de homicídio qualificado, ocorreu também o crime político do art. 20 da LSN, isto é, um “atentado pessoal” motivado por “inconformismo político”, para abalar o regime representativo e democrático do País. O problema está apenas em determinar se a expressão “inconformismo político” se refere a subversão política ou se basta a mera divergência ideológica, e se o crime do calçadão da Rua Halfeld atingiu de forma relevante o regime representativo e a democracia do País.
Nas atuais circunstâncias, em que a vítima sofreu lesão corporal grave, a pena para este crime seria de 6 a 20 anos de reclusão:
Art. 20 – Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único – Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.
3. Competência federal ou estadual
Qualquer que seja o rótulo que vier a ser dado à conduta de Adélio Bispo de Oliveira (se tentativa de homicídio, se crime político ou ambos), trata-se de fatos de competência federal pela ofensa a interesse ou a serviço da União (inciso IV, artigo 109, Constituição) ou por se tratar de um “crime político”, infração penal ali também listada.
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
Mesmo que, por eventuais dificuldades de enquadramento típico, seja afastada a hipótese de crime político do art. 20 da LSN, o atentado contra a vida do candidato Jair Bolsonaro terá sido um delito de motivação política, pois praticado no contexto da disputa eleitoral, como forma de influenciar o resultado da eleição presidencial.
Candidatos a presidente são protegidos pela Polícia Federal com base no Decreto 6.381/2008, que regulamenta a Lei 7.474/1976. Segundo o artigo 2º desta Lei:
Art 2º. O Ministério da Justiça responsabilizar-se-á pela segurança dos candidatos à Presidência da República, a partir da homologação em convenção partidária.
O interesse federal, exigido pelo art. 109, inciso IV, da CF, está presente e foi declarado expressamente pelo legislador. Candidatos a presidente da República são pessoas especialmente protegidas pelo poder federal, já que um(a) entre eles(as) será o(a) próximo(a) presidente da República. Na condição de potenciais Chefes de Estado, tais pessoas merecem escolta federal porque a proteção de suas vidas e de suas integridades físicas interessa à União e à regularidade do processo eleitoral.
Um atentado a uma testemunha “federal” (arrolada em ação penal federal) interfere no serviço judiciário da União. Por isso, tal crime é julgado pela Justiça Federal. Um crime contra uma pessoa que a União está por lei obrigada a proteger em função da sua condição de potencial chefe de Estado também interfere em serviço federal.
Além disso, a vítima em questão é deputado federal no exercício do mandato. É certo que Jair Bolsonaro não realizava ato típico de parlamentar no momento da agressão, mas não se despira da condição de congressista e, evidentemente, sua campanha político-partidária na candidatura à presidência liga-se a sua atual atividade parlamentar. Era um deputado federal que estava ali em meio a potenciais eleitores. E não estava em atividade particular, mas sim em ato regular e regulado de uma campanha eleitoral.
Por essa razão, um atentado contra um deputado federal, no contexto da campanha eleitoral, também faz presente a competência federal, pela condição do sujeito passivo da agressão. Crimes contra funcionários públicos federais, quando cometidos propter officium, são de competência federal.
Alagoas nos dá um exemplo: o homicídio de que foi vítima a então deputada federal Ceci Cunha em dezembro de 1998 teve por fim permitir a assunção do mandato parlamentar por seu suplente.
A vítima acabara de ser diplomada em Maceió e foi morta com outras três pessoas no crime que ficou conhecido como Chacina da Gruta. O delito contra a parlamentar federal e sua motivação foram determinantes para a fixação da competência federal para o júri de 2012, no qual o primeiro suplente, Pedro Talvane Gama de Albuquerque Neto, foi condenado a 103 anos de reclusão, após ser cassado pela Câmara dos Deputados e o caso descer do STF para a primeira instância (Inquérito 1461).
No júri federal, atuou pelo MPF o procurador Rodrigo Tenório. Outros quatro réus também foram condenados, no júri federal, pelos quatro homicídios qualificados da chacina de 1998.
No acórdão no recurso em sentido estrito interposto pela defesa, o Tribunal de Justiça de Alagoas reconheceu a incompetência da Justiça Estadual: “Homicídio praticado, em tese, para o autor intelectual assumir vaga em mandato como parlamentar federal. Competência da Justiça Federal”. No HC 238.347/AL, o STJ afirmou que o crime ocorreu por motivo político, na medida em que o réu queria ocupar o cargo da vítima.
No seu acórdão, o TRF da 5ª Região assentou que:
“O crime de homicídio cometido contra deputada federal re-eleita, justamente pelo cargo e em prol do cargo, que se pretendeu exercer, então, mercê da vacância obtida a partir do referido ato de violência, agride direta e absolutamente os mais primários interesses da União, de modo a atrair a incidência infalível da norma contida na CF, art. 109, IV, donde a competência da Justiça Federal para processar e julgar a demanda penal respectiva.” (TRF-5).
O precedente alagoano serve como norte para o caso Bolsonaro. Neste como naquele, a vítima é um deputado federal e a motivação do agente está ligada ao exercício de um mandato eletivo. No primeiro caso, a morte da vítima se deu após a eleição, para abrir-se vaga ao suplente. No segundo episódio, a tentativa de homicídio visava a eliminar o deputado federal candidato antes de concluída a disputa eleitoral para presidente, ao que parece para impedir sua eleição.
A morte de um candidato na corrida presidencial mexeria noutro interesse federal: a legitimidade da eleição para a chefia de Estado e de governo, cujo quadro seria sensivelmente alterado. A União é responsável pela organização e pela realização das eleições, e a tentativa de eliminar um candidato ao Palácio do Planalto, para retirá-lo da disputa, atinge inequivocamente esse serviço eleitoral. É também o que justifica a competência federal.
4. Concurso de crimes
Ao meu ver, a opção mais correta é a imputação em concurso formal. Mediante uma só ação, o agente cometeu dois crimes, um contra a vida e outro contra a segurança nacional.
Na aplicação da pena, seguir-se-ia a regra do art. 70 do CP, e o regime inicial resultante seguramente seria o fechado.
O crime de homicídio qualificado, ainda que tentado, é hediondo e a progressão de pena exige tempo maior de cumprimento do que os crimes comuns.
5. Assistente de acusação
Uma vez recebida a denúncia, a vítima pode constituir-se em assistente de acusação para coadjuvar o MPF na persecução penal em juízo.
6. Tudo deve terminar em voto
Em sendo confirmada ou rechaçada a competência federal, não importa, se a opção do Ministério Público for por denunciar uma tentativa de homicídio, o fato deve ser submetido ao tribunal do júri, já que se tem crime doloso (intencional) contra a vida. Os delitos deste tipo, quando consumados ou tentados, vão a júri popular (sete jurados), organizado pela Justiça Estadual, o que é mais comum, ou pela Justiça Federal, o que também pode ocorrer.
Seja no campo político-eleitoral ou no campo jurídico, essa história terminará com sufrágio: os votos dos sete jurados que, em data incerta, julgarão o autor do crime da Rua Halfeld, com cédulas “Sim” e “Não”. Ou os votos dos desembargadores e ministros que decidirão definitivamente este episódio. E os votos dos milhões de brasileiros que em 7 de de outubro julgarão o candidato vítima e seus concorrentes, nas urnas eletrônicas.