
No Chile, devido às altas temperaturas de Verão e à necessidade de economia energética, o governo central estimula que todos os engravatados trabalhem sem o (in)útil adereço no pescoço. Já no Brasil estamos prestes a implantar o fundamentalismo em termos de dress code. Em Santiago, o ministro da Energia avisou: “En verano, quítate la corbata“. Aqui, o STJ determinou que mulheres só podem ingressar no prédio do “Tribunal da Cidadania” (sic) usando burkas. Oops. Isto não é aqui, não. Deixa ver. Ah, achei! O que o STJ fez foi estabelecer uma lista de calçados femininos “recomendados” e “não recomendados”. Nada de chinelos e sandálias, por exemplo. Veja aqui o que pode e o que não pode.
Não ficou claro se tamancos barulhentos são permitidos nos vastos espaços da Corte. O toc-toc-toc pode irritar o autor do index “sapatorum” prohibitorum, que, como se vê, é estilisticamente muito sensível.
Falando em latim, lembrei-me de uma advertência muito apropriada para este tema: Ne sutor ultra crepidam. Significa “Não vá o sapateiro além das sandálias”. Segundo Plínio, o Velho, a frase teria sido dita pelo célebre Apeles a um sapateiro, a quem ele pedira uma avaliação sobre o calçado que pintara numa obra para a corte de Alexandre Magno. Em bom português: só fale do que você entende. Ministro de tribunal superior não tem de cuidar dos sapatos dos seus jurisdicionados. Isto é tema de modelistas e fashionistas. Corredor de tribunal não é passarela. E o STJ tem mais o que fazer em prol do cidadão, que já está cansado de ser chutado que nem sapato velho
E falando em sapatos, lembrei do caso do juiz do Trabalho, de Cascavel, no Paraná, que em 2007 suspendeu uma audiência porque o reclamante, Seu Joanir Pereira, não estaria com o calçado apropriado para a solenidade do ambiente. Usava chinelos. Choveram tamancadas e bicudas no juiz. A Justiça do Trabalho, ainda mais no interior, atende muita gente sem recursos para o básico. Depois do soneto mal executado, veio a emenda. E ficou pior. Para costurar uma saída honrosa, o juiz Abscôncio Zapatero resolveu presentear o obreiro com um par de sapatos. Novos? Não, usados! O trabalhador, com toda a razão, subiu nos tamancos e rejeitou o generoso presente. Leia aqui.
É, amigo, além de becas e togas, o guarda-roupas de Têmis esconde vendas que não lhe permitem enxergar coisas mais escabrosas do que um cidadão vestido fora-da-lei.
Essa outra história eu não vi, mas me contaram. Há alguns anos tentaram proibir certas vestimentas num fórum da capital. Os desavisados chegavam lá, prontos para entrar, mas eram barrados no baile do Judiciário, tão cioso da pompa e dos salamaleques. Felizmente, não estamos na Inglaterra. Lá ainda hoje usam perucas nas sessões dos tribunais. Imagine ter de usar uma wig longa durante a canícula do Verão baiano.
“Proibido entrar de chinelos, bermudas e camisetas”, avisava um cartaz na porta do tribunal. “Gravata obrigatória nas sessões”, alertava outro. O cidadão, parte no processo, voltava desconsolado. Mas, por uma dessas maravilhas da criatividade e da livre iniciativa, alguém teve a ideia de alugar roupas formais para os incautos. Numa banquinha, perto do prédio judicial, podia-se obter desde gravatas até trajes completos. Problema resolvido por alguns trocados. O caimento dos modelitos nunca era perfeito. Mas isto era um problema menor, tamanho P.

No meu caso, nem esta chance tive. Eu ainda era estudante de Direito na Católica. Primeira semana de aula, final dos anos 1980. Na companhia de alguns colegas, fomos ao Tribunal de Justiça da Bahia, onde, desde 1949, estão os restos mortais de Rui Barbosa. O mausoléu foi inaugurado naquele ano em comemoração ao primeiro centenário do seu nascimento. Na sua cripta se lê: “Estremeceu a pátria, viveu no trabalho e não perdeu o ideal”. Ali, imaginava eu, era uma casa de homens justos e sensatos. Afinal, era a corte sucessora do primeiro Tribunal das Américas, fundado em 1609, com o nome de Tribunal da Relação da Bahia.
Trezentos e oitenta anos depois da criação da Corte, entrei pela primeira vez na sala de sessões de uma das Câmaras Cíveis do Fórum Rui Barbosa, ali no Campo da Pólvora. Eu estava ávido por conhecimentos jurídicos. Contudo, minha primeira lição não foi sobre textos de lei, mas sobre os têxteis e a lei.
Assim que entrei, o “capinha” me olhou de longe. Fiquei intrigado com aquele clone do Batman me fitando. De repente, ele veio de lá, com seu manto negro esvoaçante, e foi direto na minha jugular:
— “Onde está sua gravata, rapaz?”, perguntou o morceguinho, com um sorriso entredentes. E emendou: – “Aqui não é permitido permanecer com vestimentas inapropriadas”.
—“Mas eu sou estudante!”, gaguejei, atônito.
— “Não adianta, meu jovem. Estou cumprindo ordens. O código de vestimentas tem de ser cumprido. Ou põe gravata ou te ponho fora”, sentenciou.
Fui sumariamente expulso do recinto. Sem direito a defesa, nem contraditório. E sem o devido processo legal. O procurador de Justiça presente não deu um pio. Os advogados que aguardavam suas sustentações orais nem se mexeram. O vetusto desembargador Asmodeu Tailor não gostava que maltrapilhos assistissem às sessões de sua Câmara Cível. O magistrado era grave como um túmulo. “Talvez seja um desses sepulcros caiados de que falou Jesus em Mateus 23:27“, pensei comigo.
Não importava. O certo é que, para ele, fosse quem fosse, homem só podia ficar na assistência se trajasse terno e gravata. E eu estava de calça jeans, sapatos fechados e camisa social. Quase nu.
Vlad,
eu entendi o sentido do texto, por sinal muito bem escrito.
Todavia, pondero: o uso do terno e gravata não seria um dos fatores que teria o condão de enaltecer, nos operadores do Direito e nos próprios jurisdicionados, a importância e a responsabilidade da função ali exercida?
Melhor explicando: quando as pessoas casam, usam roupas especiais, adequadas à alta significação da ocasião. Quando você deu entrevista na Record, usava terno e gravata, para demonstrar a importância do seu cargo e de sua atuação naquele caso (por qual motivo você não usava camiseta regata e bermuda na hora da entrevista?).
Em todas as culturas, nos diversos povos e em todos os períodos da humanidade, a roupa tem um valor simbólico. É assim com os índios também: a depender da cerimônia ou ritual, usam-se determinados trajes. Na sociedade atual, o que o noivo e as pessoas pensariam se vissem a noiva entrando na igreja de calça jeans e camiseta, em vez do tradicional vestido branco?
Ora, nossas roupas revelam nosso jeito de ver o mundo. A gente se comunica através das vestes. É possível falar muito de uma pessoa apenas pela simples análise de suas roupas. Por mais que queiramos negar, a roupa é uma forma de expressão.
Trazendo esse raciocínio para o mundo forense, entendo que o uso de terno e gravata pelos operadores do Direito traz à memória a relevância do ato. E, nos jurisdicionados, passa a idéia de que a Justiça é algo sério.
E, além do terno e gravata, vale lembrar ainda o uso das vestes talares, como a toga pelo juiz e a beca dos advogados.
O negro da toga, a ausência de cor, simboliza abnegação, de privação e de castidade. Ou, como disse o ministro Mário Guimarães, “A toga, pela sua tradição e seu prestígio, é mais do que um distintivo; é um símbolo que alerta, no juiz, a lembrança de seu sacerdócio, e incute no povo, pela solenidade, respeito maior aos atos judiciários”.
Quem gostaria de entrar na sala de audiência e deparar-se com um juiz vestido de modo totalmente informal, com trajes casuais, como tênis e camiseta? Acho que ninguém. Pelo menos eu iria pensar: “esse sujeito não está levando esta audiência a sério. Olha só a roupa dele”.
Assim, entendo que a roupa é um dos elementos que acarreta a seriedade da justiça. Aliás, empiricamente, é patente a diferença de respeito e tratamento quando um juiz preside audiências e júris com toga e quando o faz sem ela. As pessoas tende a levar o ato processual muito mais a sério quando as pessoas estão devidamente vestidas de acordo com a ocasião.
É claro que, como disse no início, a indumentária é apenas um dos elementos que contribui para a imagem da Justiça. Mas obviamente não é o único. Existem outros até mais importantes.
Enfim, essa é minha opinião.
Abraço.
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Concordo com tudo o que o senhor (ou senhora, já que não sei de que é o “J”!) disse. Mas acho que a questão é que o Estado não pode exigir determinada indumentária dos _jurisdicionados_. É exigível do magistrado que use a toga, pois ele não atua como pessoa física e sim como órgão do Estado. O que ele veste ou deixa de vestir, no trabalho, deixa de ser assunto pessoal, pois é ao Estado que ele vai representar. O mesmo raciocínio vale para membros do MP.
Mas para os advogados e para as partes, a escolha é deles. Se o advogado não se importa com a imagem que passa para o cliente (e para os colegas de escritório), isso é problema dele, e não dos tribunais! Quanto à parte, então, nem se fala. Se ela acha que a audiência não é ato tão solene a ponto de merecer sapato social, isso é assunto dela.
É só a minha opinião, também.
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Eu duvido que, o trabalhador no Paraná, na demanda por indenização que promoveu em face da União, porque reputou como humilhação o fato de o Juiz do Trabalho ter suspendido a audiência por se encontrar de chinelos, tenha comparecido na Justiça Federal sem os sapatos. Existe, em verdade, preconceito contra a Justiça do Trabalho, aliás, a única que funciona no Brasil. O advogado comparece sem a gravata na Justiça do Trabalhador, mas não o faz nas Justiças Federal e Estadual. Merece crítica a Justiça Criminal, que se afasta do cidadão e utiliza interpretações como o “Laxismo Penal”, para se aproximar do “rebelde primitivo”, como rotulou os bandidos o notável historiador Erick Hobsbawn.
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Belo texto, como sempre prof. Vlad,
Sempre são necessários médicos de homens e de almas, e me impressionou também a sutileza do texto.
Att..
Thiago.
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Belo texto, vlad!
Mas, mudadando de assunto, o senhor já viu isso: http://www.conjur.com.br/2011-dez-24/pec-pretende-tirar-mp-poder-investigacao-materia-penal ?
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Vi e não acreditei. Talvez escreva algo. Abs.
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Mais inacreditável ainda foram os protestos que vieram aniquilar a PEC37, mal e parcamente, quando não perece nas gavetas da corrupção e conchavos de algum promotor, é pela via do MP que surgi a luz no fim do túnel.
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Mais uma vez ressalto a importância do teu texto, quando comentas sobre a dicotomia: aparência versus essência. Que relação pode ter entre o vestir e o convívio social? De onde vem a padronização do traje para se adequar a uma situação? Parece vir do shopping Center, onde a relevância do visual é a marca da superficialidade e a cidadania , ao que parece, é medida por uma contradição de valores: mercadoria e ser humano.
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Em um país no qual prevalece a Democracia da Aparência, aplicável, de forma restrita à classe média, que pactua com o dinheiro, boa aparência e carro, e à Democracia da Sobrevivência aos descamisados, que possuí um povo, facilmente influenciável, ao contrário dos franceses, iranianos, chineses, enfim outros povos que possuem tradição milenar e que, como disse a CIA, dificilmente manipuláveis, não se pode censurar o Desembargador como fez o articulista.
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