A anistia a crimes de jurisdição de tribunais internacionais


Por estranho que possa parecer, o Estatuto de Roma (ER), de 1998, do Tribunal Penal Internacional (TPI) não veda expressamente a anistia para os crimes de jurisdição do Tribunal.

Contudo, a falta de persecução criminal pelo Estado Parte detentor da jurisdição primária pode ser considerada uma denegação de justiça capaz de acionar a jurisdição complementar da Corte. Ou seja, a concessão de anistia por um Estado Parte não seria um óbice à atuação do TPI.

Caberia à Procuradoria e às câmaras do TPI considerem se a persecução internacional deveria ter curso, apesar da anistia, tendo em conta considerações de justiça transicional e o direito das vítimas à reparação.

Segundo o art. 105 do Estatuto de Roma – promulgado no Brasil pelo Decreto 4.388/2002 –, a pena privativa de liberdade fixada pelo Tribunal “é vinculativa para os Estados Partes, não podendo estes modificá-la em caso algum.” Este dispositivo se refere a penas aplicadas pelo Tribunal, que não podem ser alcançadas por anistia, em regra.

Conforme o art. 27 da Convenção de Viena de 1969, o Estado não pode invocar disposições do seu direito interno para deixar de cumprir obrigações que resultem de tratados.[1]

O Projeto de Lei 4.038/2008 – a futura enabling legislation para a implementação do Estatuto de Roma no Brasil – prevê no seu art. 11 que os crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, graça, indulto, comutação ou liberdade provisória, com ou sem fiança.[2]

No ordenamento brasileiro, essa limitação tem fundamento no §4º do art. 5º da Constituição, que determina que o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Pode-se dizer, ademais, que uma lei de anistia brasileira não teria efeito em face do Tribunal, por força do direito internacional, que veda a impunidade de delitos de jus cogens. No Brasil, há ainda uma vedação constitucional à anistia para o crime de tortura (art. 5º, inciso XLIII) e óbice legal (Lei 8.072/1990) para a anistia ao delito de genocídio.

Embora o Estatuto de Roma, como vimos, não seja claro no tópico – com controvérsias sobre a extensão dos seus arts. 16 e 17[3] –, outra corte, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia (TPI-I) afirmou em obiter dictum que o direito internacional rejeita o reconhecimento de leis nacionais que pretendam anistiar o crime de tortura, dado o seu caráter de crime de jus cogens.[4]

A Corte Suprema de Justiça da Argentina abordou o tema em 2005:

Nos processos penais por crimes contra a humanidade, os acusados não podem se opor à investigação da verdade e ao julgamento dos responsáveis por meio de exceções peremptórias, salvo quando o julgamento for impossível de ser realizado ou tiver sido proferida uma sentença transitada em julgado, pois os instrumentos internacionais que estabelecem essa categoria de crimes não admitem que a obrigação dos Estados de julgar os acusados cesse pelo decurso do tempo, anistia ou qualquer outro tipo de medida que elimine a possibilidade de reprovação.[5]

Deste modo, conforme a Corte IDH, as penas fixadas por tribunais penais internacionais “não podem ser indultadas ou reduzidas pelos respectivos Estados”. Órgãos de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas entendem que o indulto e figuras similares são incompatíveis com crimes internacionais e graves violações de direitos humanos.[6]  

No entanto, conforme o art. 27 do Estatuto do Tribunal Criminal Internacional para Ruanda, admitia-se o indulto (pardon) e a comutação de penas impostas pelo Tribunal, “nos termos da legislação aplicável do Estado em que a pessoa condenada se encontra presa”.[7] Cabia a esse Estado notificar o Tribunal, cujo presidente, em consulta com os juízes, decidiria “com base nos interesses da justiça e nos princípios gerais do direito”. 

De acordo com o Princípio 7 dos Princípios de Princeton sobre Jurisdição Universal, “as anistias são em regra incompatíveis com a obrigação dos Estados de prestar contas por crimes graves sob o direito internacional, conforme especificado no Princípio 2(1)”. Essa norma se refere à pirataria (marítima e aérea), escravidão, crimes de guerra, crimes contra a paz (agressão), crimes contra a humanidade, genocídio e tortura.[8]

Em suma, embora não haja vedação categórica no direito internacional penal, a soft law e decisões isoladas de tribunais internacionais parecem indicar a construção de uma concepção ao menos limitativa da concessão de anistias para certos crimes de jus cogens.

Com razão, portanto, a Corte IDH, que vem rejeitando categoricamente a anistia para graves violações de direitos humanos. Em sua sentença de 2011, no caso Gelman vs. Uruguai, o Tribunal em São José lembrou:

  1. Igualmente no âmbito universal, ainda que em outro ramo do Direito Internacional
    como é o Direito Penal Internacional, as anistias ou normas análogas também foram consideradas inadmissíveis. O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, em um caso relativo à tortura, considerou que careceria de sentido, por um lado, sustentar a proibição de graves violações aos direitos humanos e, por outro, autorizar medidas estatais que as autorizam ou perdoem, ou leis de anistia que absolvam a seus perpetradores. No mesmo sentido, o Tribunal Especial para Serra Leoa considerou que as leis de anistia desse país não são aplicáveis a graves crimes internacionais. Esta tendência universal foi se consolidando mediante a incorporação do padrão mencionado na elaboração dos estatutos dos tribunais especiais de mais recente criação no âmbito das
    Nações Unidas.
    Neste sentido, tanto os Acordos das Nações Unidas com a República do Líbano e com o Reino do Camboja, como os Estatutos que criam o Tribunal Especial para o Líbano, o Tribunal Especial para Serra Leoa e as Salas Extraordinárias das Cortes do Camboja, incluíram em seus textos cláusulas que afirmam que as anistias que sejam concedidas não constituirão um impedimento para o processamento das pessoas responsáveis por delitos que se encontrem dentro da competência destes tribunais.[9]

[1] ARAS, Vladimir. Direito internacional público. 2.ed. Rio de janeiro: Método, 2023, p. 27.

[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4.038/2008. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=600460&filename=PL%204038/2008.

[3] HAN, Sang Wook Daniel. The International Criminal Court and National Amnesty. Auckland University Law Review, vol. 5, 2006, p. 97-124.

[4] TPI-I: “O fato de a tortura ser proibida por uma norma imperativa do direito internacional tem outros efeitos nos níveis interestatal e individual. No nível interestatal, serve para deslegitimar internacionalmente qualquer ato legislativo, administrativo ou judicial que autorize a tortura. Seria contraditório argumentar, por um lado, que, devido ao valor de jus cogens da proibição da tortura, os tratados ou regras consuetudinárias que preveem a tortura seriam nulos e sem efeito ab initio, e, por outro lado, ignorar um Estado que, por exemplo, tome medidas nacionais que autorizam ou toleram a tortura ou absolvam seus perpetradores por meio de uma lei de anistia. (…). Os processos poderiam ser iniciados por vítimas potenciais se elas tivessem locus standi perante um órgão judicial internacional ou nacional competente, com o objetivo de solicitar que a medida nacional fosse considerada internacionalmente ilegal; ou a vítima poderia entrar com uma ação civil por danos em um tribunal estrangeiro, que seria, portanto, exortado, entre outras coisas, a desconsiderar o valor jurídico do ato nacional de autorização. O que é ainda mais importante é que os autores de tortura que agem com base nessas medidas nacionais ou se beneficiam delas podem, no entanto, ser responsabilizados criminalmente por tortura, seja em um Estado estrangeiro, seja em seu próprio Estado sob um regime subsequente. Em suma, apesar da possível autorização nacional por órgãos legislativos ou judiciais para violar o princípio que proíbe a tortura, os indivíduos continuam obrigados a cumprir esse princípio. Como afirmou o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: “os indivíduos têm deveres internacionais que transcendem as obrigações nacionais de obediência impostas por seu Estado”. UNITED NATIONS INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR THE FORMER YUGOSLAVIA. Trial Chamber. Prosecutor v. Anto Furundzija. Judgement 10 December 1998, § 155. Disponível em:  https://www.icty.org/x/cases/furundzija/acjug/en/fur-aj000721e.pdf.

[5] ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. Simón, Julio Héctor y Otros. Causa nº 17.768. Sentencia de 14 de junio de 2005, § 35.

[6] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolución de 30 de Mayo de 2018. Caso Barrios Altos y Caso La Cantuta vs. Perú, Supervisión de cumplimiento de sentencia, obligación de investigar, juzgar y, de ser el caso, sancionar. §§42-43.

[7] INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA. Statute of the International Criminal Tribunal for Rwanda, 8 November 1994. Disponível em: https://legal.un.org/avl/pdf/ha/ictr_EF.pdf.

[8] THE PRINCETON PRINCIPLES ON UNIVERSAL JURISDICTION. New Jersey: Princeton, 2001. Disponível em: https://www.icj.org/wp-content/uploads/2001/01/Princeton-Principles-Universal-Jurisdiction-report-2001-eng.pdf.

[9] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gelman vs. Uruguay. Sentencia de 24 de febrero de 2011, § 209. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/09b4d396111fe41e886a744a9f8753e1.pdf.

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