O futuro crime de suborno


Mediante o Decreto 5.687/2006, o Brasil internalizou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Conhecida como Convenção de Mérida e também como UNCAC, na sigla em inglês, este tratado foi concluído em 2003 e se tornou um dos mais importantes textos dos regimes globais de proibição (suppression treaties).

Seu art. 21 assim dispõe:

Artigo 21

Suborno no setor privado

Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente no curso de atividades econômicas, financeiras ou comerciais:

a) A promessa, o oferecimento ou a concessão, de forma direta ou indireta, a uma pessoa que dirija uma entidade do setor privado ou cumpra qualquer função nela, de um benefício indevido que redunde em seu próprio proveito ou no de outra pessoa, com o fim de que, faltando ao dever inerente às suas funções, atue ou se abstenha de atuar;

 b) A solicitação ou aceitação, de forma direta ou indireta, por uma pessoa que dirija uma entidade do setor privado ou cumpra qualquer função nela, de um benefício indevido que redunde em seu próprio proveito ou no de outra pessoa, com o fim de que, faltando ao dever inerente às suas funções, atue ou se abstenha de atuar.

Transcrevi acima a péssima tradução brasileira do art. 21 da UNCAC. Agora registro a tradução feita em Portugal a partir das versões oficiais do mesmo tratado:

Art. 21. Corrupção no sector privado

Cada Estado Parte deverá considerar a adopção de medidas legislativas e de outras que se revelem necessárias para classificar como infracções penais, quando praticadas intencionalmente, no decurso de actividades económicas, financeiras ou comerciais:

a) A promessa, a oferta ou a entrega, directa ou indirecta, feita a qualquer pessoa que, a qualquer título, dirija uma entidade do sector privado ou nele trabalhe, de vantagens indevidas para ela ou para terceiros, a fim de que, em violação dos seus deveres, essa pessoa pratique ou se abstenha de praticar um acto; 

b) O pedido ou o recebimento, directo ou indirecto, por parte de qualquer pessoa que, a qualquer título, dirija uma entidade do sector privado ou nele trabalhe, de vantagens indevidas para si ou para terceiros, a fim de que, em violação dos seus deveres, essa pessoa pratique ou se abstenha de praticar um acto.

Para implementar o mandado expresso de criminalização contido na UNCAC, a Enccla resolveu, no âmbito da Ação 5 de 2018, elaborar uma proposta legislativa, que foi construída mediante consenso. O texto do anteprojeto de lei de autoria da Enccla é este:

Art. 1º A Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 4º-A. Constitui crime de corrupção privada exigir, solicitar ou receber vantagem indevida de qualquer natureza, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de tal vantagem, como sócio, conselheiro, dirigente, administrador, empregado, representante, colaborador ou indivíduo que, a qualquer título, exerça atividade em pessoa jurídica de direito privado, a fim de praticar, omitir ou retardar ato em violação aos seus deveres funcionais.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem oferece, promete ou entrega, direta ou indiretamente, vantagem indevida, de qualquer natureza, a sócio, conselheiro, dirigente, administrador, empregado, representante, colaborador ou indivíduo que, a qualquer título, exerça atividade em pessoa jurídica de direito privado, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato em violação aos seus deveres funcionais.”

Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

O anteprojeto ainda precisa ser validado na XVI Plenária da ENCCLA, que ocorrerá entre 19 e23 de novembro em Foz do Iguaçu/PR. Posteriormente, o texto poderá ser encaminhado pela presidência da República à Câmara dos Deputados para tramitação legislativa.

Cometerá o crime de suborno ativo (caput do art. 4º-A da Lei 8.137/1990) quem exigir, solicitar ou receber vantagem indevida de qualquer natureza, para si ou para outrem, ou aceitar promessa de tal vantagem, para praticar, omitir ou retardar ato que viole seus deveres funcionais numa pessoa jurídica de direito privado.

Já o crime de suborno passivo (parágrafo único do art. 4º-A) será cometido por quem oferecer, prometer ou entregar vantagem indevida a funcionário privado para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato em violação aos seus deveres funcionais para com uma pessoa jurídica de direito privado.

Na estrutura proposta, trata-se de infração penal grave, pois sua pena máxima supera 4 anos. Considerado o intervalo penal de 2 a 5 anos de reclusão, o novo crime não admitirá transação penal nem suspensão condicional do processo. Mas poderá ensejar a decretação de prisão preventiva.

A vítima será uma pessoa jurídica de direito privado, e o crime será cometido mediante a violação de dever funcional de sócio, dirigente, conselheiro, empregado, colaborador, representante ou preposto,

A ação penal será de natureza pública incondicionada, e a competência será da Justiça Federal ou Estadual, observadas as hipóteses do art. 109, da Constituição.

Na maior parte das vezes, este delito será investigado pelo Ministério Público dos Estados ou o do Distrito Federal e julgado por juízes de Direito, tendo em conta o art. 109, VI, da Constituição. Contudo, a competência federal se estabelecerá nos casos de transnacionalidade, à luz do art. 109, V, da Constituição, já que tal conduta está prevista em tratado de que o Brasil é parte.

Acusações como as que foram noticiadas recentemente contra dirigentes da FIFA ou da CBF poderiam ser enquadradas no futuro tipo penal de suborno passivo, que terá como bem jurídico tutelado a ordem econômica.

Além de bem jurídico preponderante, podemos divisar a intenção de proteger o patrimônio da pessoa jurídica vítima do suborno e sua própria sobrevivência no mercado, êxito que interessa ao Estado, como regulador da atividade econômica e cobrador de tributos, à empregabilidade e também ao consumidor. 

Atualmente, a corrupção privada é um fato atípico no Brasil, circunstância que repercute sobre a amplitude da cooperação internacional passiva que podemos prestar a Estados estrangeiros nos quais esta conduta já houver sido tipificada. Tal limitação cooperacional decorrerá do princípio da dupla incriminação ou dupla tipicidade, que quase sempre incide em cooperação em matéria penal.

Evidentemente, apesar do nomen iuris adotado no anteprojeto, não se trata de crime contra a Administração Pública, razão pela qual seria melhor utilizar a nomenclatura de “suborno” ativo ou passivo.

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