Decifra-me ou te devoro


Selecionar jurados para o júri é um tormento. A todo tempo, o membro do Ministerio Publico e o defensor se vêem assombrados pelo grave dilema de escolher corretamente os sete jurados que integrarão o conselho de sentença. Essa será a primeira grande batalha de plenário entre o advogado Podval e o promotor Cembranelli, no julgamento do caso Isabela Nardoni, que começará no dia 22/mar em São Paulo.

A má escolha dos jurados pode pôr a perder toda uma estratégia processual, a despeito da robustez da prova dos autos. No Brasil, o conselho de sentença decide por maioria: 4×3, 5×2, 6×1 (art. 483, §§1º e 2º do CPP). Não é necessária unanimidade (7×0). Um voto muda tudo.

O serviço do júri é obrigatório mas todo mundo quer se livrar de um “problema” que não é seu. Salvo nos casos midiáticos, pouquíssimos cidadãos querem ser jurados. A maioria não deseja se comprometer, não quer se arriscar diante do réu, ou não quer tomar responsabilidades para si. Outros simplesmente requerem dispensa porque têm (ou dizem ter) coisas mais importantes para fazer, como cuidar de negócios comerciais ou de atividades domésticas, viajar, comparecer a compromissos sociais ou passear com o cachorro. No senso comum, a função de jurado é um estorvo, uma chatice, talvez “pior” do que a função de mesário nas eleições. 

Os problemas só começam aí. Os membros do Ministério Público costumam adotar a cautela de examinar a vida pregressa dos jurados. Não é raro encontrar jurados com antecedentes criminais. Imaginem um jurado homicida selecionado para julgar outro homicida. Na formação das listas e dos sorteios sabemos muito pouco sobre as afeições e preconceitos dos juízes populares. E para ser jurado é necessário ter “notória idoneidade” (art. 436 do CPP).

O nosso método de escolha de jurados é muito ruim. A alteração introduzida no Código de Processo Penal pela Lei 11.689/2008 foi insuficiente para aperfeiçoá-lo. No júri tem-se o julgamento pelos “pares”. Mas não há sequer uma tentativa de garantir o equilíbrio sócioeconômico e étnico na composição das listas gerais de jurados. Cidadãos humildes e iletrados da zona rural podem ser julgados por cidadãos urbanos e de nível universitário, desprovidos de compreensão das vicissitudes da vida no interior. As vítimas também são “julgadas” no tribunal do júri. Não se espante! Os jurados fazem seu juízo sobre as vítimas para decidir se condenam ou absolvem o réu. Em regra, vítimas marginalizadas, a exemplo de travestis, mendigos, prostitutas e jovens negros da periferia, sofrem rigoroso escrutínio de jurados que não são seus “pares”. Mesmo júris compostos por  integrantes da classe média letrada e urbana podem proferir veredictos divorciados da prova do processo e sacramentar decisões injustas, desviadas pelos vícios do preconceito e da discriminação.

Embora o §1º do art. 436 do CPP determine que “nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução“, na prática os jurados são definidos pelas corporações profissionais, associações civis, sindicatos, instituições de ensino e órgãos públicos (art. 425, §2º do CPP), sem efetivo controle judicial. Em certos casos, um indígena poderá ser julgado por um conselho de sentença formado exclusivamente por jurados não-índios. “Será que ele é índio mesmo?”, pensarão. Evidentemente, esse método de composição das listas não representa verdadeiramente “o povo”, no sentido de “pares”, em todas as suas nuances demográficas.

Além desse problema recorrente, nosso modelo de escusas peremptórias e imotivadas beira o ridículo. A defesa e a acusação (promotor de Justiça ou procurador da República) podem recusar até três jurados (art. 468 do CPP). Tudo bem. Ocorre que o mais das vezes essas recusas baseiam-se em puro achismo ou “empatia”. O jurado é sorteado pelo juiz e se levanta entre os assistentes da sessão. Naquele brevíssimo instante, o defensor e depois o membro do Ministério Público têm de tomar uma difícil decisão: definir os julgadores da causa! Ambos consultam suas respectivas “bolas de cristal”, evocam seus oráculos, usam seus poderes extrasensoriais e, olhando pela primeira vez para o jurado ali estático, declaram solenemente a recusa ou a aceitação do nome sorteado. Tudo se passa como se as partess pudessem perceber ali naqueles tormentosos segundos todas as inclinações, idiossincrasias e preconceitos daquele cidadão ou cidadã. Diante desse “amor à primeira vista” pelo jurado, o advogado e o promotor declaram seu “sim”. Pronto! A seleção está completa e a sorte está lançada no cassino criminal, no qual se apostam os destinos do réu e da vítima.

Nos Estados Unidos, a seleção dos doze membros do conselho de sentença e dos seus suplentes (sim, lá os suplentes acompanham o júri e substituem os jurados em caso de necessidade) é feita numa audiência especial chamada voir dire (do francês arcaico, “dizer a verdade”), na qual as partes interrogam os candidatos a jurados, para eliminar aqueles que sejam tendenciosos, preconceituosos ou venais. Esse procedimento é também adotado no Canadá, na Austrália e outros países de sistema common law. Atualmente, a expressão voir dire é interpretada como sendo to see them say (“vê-los dizer”), pois os potenciais jurados são examinados em audiência, devendo responder oralmente perguntas das partes e, às vezes, do juiz.

Nessas nações, o serviço do júri é levado a sério, como uma contribuição cívica. Aqui também deveria ser assim, já que a função de jurado é a única oportunidade que o cidadão tem de decidir diretamente e por si mesmo questões criminais, numa das formas mais interessantes de soberania popular (art. 1º, parágrafo único, e art. 5º, XXXVIII, da Constituição).

Ao contrário do amadorismo do modelo brasileiro, nos países de tradição common law existem profissionais especializados na seleção dita “científica” dos julgadores populares. O filme “O júri” (The runaway jury), com Gene Hackman, baseado no romance homônimo de Grisham, aborda o lado nefasto desta forma de seleção de jurados. Nem sempre os selecionadores de jurados são bachareis em Direit; muitos são psicológos judiciários ou sociólogos. Há um livro interessante que mostra a utilidade prática da experiência desses técnicos. Chama-se “Decifrar Pessoas“, de Jo-Ellan Dimitrius e Mark Mazzarella.

Como vimos, no júri brasileiro, é diferente. Os membros do Ministério Público e os advogados nada sabem sobre a esfinge chamada jurado. Ficamos ali petrificados, premidos pela dúvida, e quase podemos captar um pensamento, revelado num olhar de soslaio: “Decifra-me, ou te devoro”.

12 comentários

  1. Boa tarde Dr. Wladimir,
    Concordo plenamente que existe uma grande dificuldade em escolher corretamente um jurado, mas entendo que o maior preconceito que possa existir é recusar um jurado por ele já ter cometido um homicídio; assustou?
    Calma,vou explicar, estou falando do homicida cuja sentença foi absolutória e esteja transitada em julgado. Observando isso, no meu modesto entendimento, não vejo absolutamente nenhum empecílio para castrar o direito mais nobre da democracia que é participar do conselho de sentença do Tribunal do Juri. Do contrário, estaria se desprestigiando a própria instituição, que reconheceu a inocência, a legítima defesa ou o estrito cumprimento do dever legal. Estaria ignorando a constitucional soberania do veredicto absolutório e condenando esse cidadão a um eterno estigma social.
    Mas veja bem, não estou falando apenas da necessidade da sentença absolutória transitada em julgando, é preciso que não possua maus antecedentes e que tenha vida social ilibada.
    Sentindo na pele, o terror de ter sofrido uma condenação, conhecendo do drama de ter sido Réu, do trauma familiar da sua família e o da vítima, do risco de uma vingança, da censura social pela qual passou e do privilégio de reerguer sua auto-estima pelo privilégio do reconhecimento de sua idoneidade moral que, é privilégio de poucos; esse homem se ariscaria a perder o que conquistou?

    Existiria um incentivo maior a uma pessoa para andar na linha e evitar situações de riscos?

    Existe uma escola mais sábia do que a do Tribunal do Juri?

    Observadas essas considerações, e se esse cidadão for bacharel em Direito, alguém poderia duvidar da sua isenção e idoneidade?

    Se achar, está absolutamente errado, o homicida deveria ser julgado por 7 (sete) ex-homicidas absolvidos.
    Não está escrito que o cidadão tem o direito de ser julgado por seus “pares”?

    Quem é o par de fato do homicida senão outro ex-homicida?

    Alguém se acha realmente mais habilitado a julgar melhor do que o ex-homicida?
    Existe alguém melhor para julgar?

    Claro que existe, mas ele não pertence ao mundo dos homens!

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  2. Prezado Vladimir,

    Parabéns pelo seu artigo. É muito bom ver uma questão jurídica analisada pelo ponto de vista de quem a conhece na prática.

    Gostei muita da indicação do livro.

    Abraços,

    Walter Capanema (@waltercapanema)

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  3. Dr. Vladimir, outros aspectos muito polêmicos da reforma do CPP que ainda estão causando muita divergência entre os Tribunais Superiores são: a) há nulidade do processo se o juiz descumprir o “cross examination” e ele mesmo iniciar as perguntas para as testemunhas? S.m.j no penúltimo informativo do STJ houve 2 acórdãos conflitantes sobre o assunto; b) qual o momento ocorre o recebimento da denúncia (art. 396 ou 399, CPP) e ocorre o marco interruptivo da prescrição? O último informativo do STJ trouxe uma luz inicial. Tourinho Filho defende que é no momento do art. 399 do CPP. No âmbito do TRF da 1ª Região que V. Exa. atua o ilustre corregedor Olindo Menezes tem admitido todas as correições parciais e afirmado que é no art. 399, do CPP. Pacelli defende que seria no art. 396. Qual o seu entendimento como professor e doutor na matéria ?

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    • Seu comentário renderia um post. A) o sistema acusatório implica um processo penal de partes. Estas devem eleger as provas, geri-las e produzi-las em juízo, após a admissão pelo juiz. O magistrado não pode substituir-se a elas, especialmente não pode assumir a função do acusador, percorrendo o rol de perguntas incriminatórias em lugar do MP. Claro que o juiz não é um criado-mudo, mas deve limitar-se a complementar as linhas de inquirição das partes, respeitando suas estratégias processuais. Então, se há violação ao art. 212 do CPP, a nulidade deve ser reconhecida, se demonstrado o prejuízo. Há decisões nesse sentido do TJ/DF, do TJ/RS, além do STJ. B) A denúncia é recebida na fase do art. 396 do CPP. O art. 399 deve ser lido assim: “já estando recebida a denúncia ou a queixa, o juiz designará….”. A repetição é tão-só aparente e deve-se ao fato de que o artigo 397 cuida da absolvição sumária; se esta for reconhecida, o recebimento da inicial seria invalidado e o acusado absolvido. Não se pode absolver quem não é réu. O despacho do art. 399 do CPP é de saneamento do feito, marcando o início da instrução criminal na audiência una. Pelo artigo 396 do CPP, o acusado já terá sido citado. Portanto, já será réu na fase do art. 399, o que implica o recebimento da denúncia em momento anterior.

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