
Introdução
A anistia é uma causa extintiva de punibilidade que apaga a infração penal. Dependendo de aprovação legislativa, sua concessão não é, contudo, ilimitada.
Enquanto se discute no Brasil o cabimento ou não de uma anistia para a tentativa de golpe de Estado de 2022-2023, volto os olhos para o campo das relações internacionais.
Destaco duas limitações ao poder de anistiar, que incidem no direito penal transnacional, em matéria de cooperação jurídica internacional, quanto à extradição e à transferência de pessoas condenadas.
1. Crimes sujeitos a jurisdição estrangeira: extradição
A regra básica é que um Estado não pode anistiar crimes sujeitos à jurisdição de outro.
Trata-se de uma limitação implícita ao poder de anistiar, que decorre do exercício eminentemente territorial da jurisdição e do princípio da não intervenção em assuntos internos.
Embora possam ser previstas em tratados internacionais voltados à cessação de hostilidades e à consagração da paz, modernamente as anistias normalmente resultam de leis internas.
Em 2016, no julgamento do HC 72.391 QO, de interesse do ex-presidente boliviano Luis García Meza Tejada (1980-1981), relativo a um pedido de extradição apresentado pela Bolívia,[1] o STF circunscreveu o poder de indultar (era esse o objeto do habeas corpus) apenas aos crimes sujeitos à jurisdição brasileira.
“O exercício da clemência soberana do Estado não se estende, em nosso direito positivo, aos processos de extradição, eis que o objeto da indulgentia principis restringe-se, exclusivamente, ao plano dos ilícitos penais sujeitos à competência jurisdicional do Estado brasileiro.[2]
A mesma lógica se aplica à anistia.
Noutra ocasião, o STF reconheceu “a impossibilidade de o Brasil impor, no plano das relações extradicionais entre Estados soberanos, a compulsória submissão da parte requerente aos institutos jurídicos peculiares ao direito penal nacional”, tendo em conta o sistema de contenciosidade limitada que rege, no Brasil, o processo de extradição.[3]
Na EXT 1270 (caso Gonzalo Sánchez), o ministro Marco Aurélio ficou vencido quando quis estender a eficácia da controvertida Lei brasileira de Anistia de 1979 a eventos cometidos na Argentina, no contexto da ditadura militar daquele país.[4] O extraditando era oficial da Marinha argentina, atuando na famigerada Escola de Mecânica da Arma (ESMA). Obviamente, não poderia ser anistiado pelo Congresso brasileiro por fatos lá ocorridos.
Isso não quer dizer que a anistia não tenha efeito algum em processos extradicionais. Caso os fatos tiverem sido objeto de anistia no Estado requerente, a extradição não poderá ser concedida pelo Brasil, por força do art. 82, inciso II, da Lei 13.445/2017 e, eventualmente, dos tratados aplicáveis. Alguns têm regra expressa. Tomo como exemplo o art. 7º do Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul, concluído no Rio de Janeiro em 1999 (Decreto 4.975/2004):
Artigo 7 – Da Coisa Julgada, Indulto, Anistia e Graça
Não se concederá a extradição de pessoa reclamada caso já tenha sido julgada, indultada, beneficiada por anistia ou obtido graça pelo Estado Parte requerido com respeito ao ato ou aos atos que fundamentam o pedido de extradição.
Na vigência da lei anterior (o Estatuto do Estrangeiro), o STF discutiu essa hipótese no caso Mario Firmenich, cuja extradição era buscada pela Argentina.[5]
Em seu voto na EXT 1362, o ministro Edson Fachin pôs a questão nos seus devidos termos:
[…] não se deve imaginar que os efeitos da lei nacional possam ter uma aplicação extraterritorial. Constitui um truísmo do direito internacional o reconhecimento da limitada eficácia do direito nacional aos limites de seu território. Seria, portanto, nitidamente atentatório ao princípio da igualdade entre os Estados e da não intervenção que os efeitos da anistia concedida no Brasil pudessem atingir as ofensas aos bens jurídicos que a lei brasileira não pode dispor, ante os estritos limites da extraterritorialidade prevista no art. 7º do Código Penal.[6]
2. Crimes sujeitos a jurisdição estrangeira: transferência de condenados
A depender do regime jurídico, conforme a regra de especialidade, o Estado tampouco pode conceder anistia ou outros benefícios penais de extinção ou comutação da pena em casos de transferência de pessoas condenadas.[7]
A transferência de condenados ou de pessoas condenadas não é uma medida de cooperação internacional em sentido estrito. Tem cunho humanitário e é focada na ideia de recuperação do interno e de promoção de sua reinserção social. Pode ser ativa ou passiva.
A Lei de Migração disciplinou este instituto nos seus arts. 103 a 105. Regras complementares estão no Decreto 9.199/2017 e na Portaria MJ 89/2018. Difere da extradição por ser voluntária. Ou seja, o condenado é quem geralmente toma a iniciativa de pedir sua remoção de um país a outro, para o seu país de nacionalidade ou para o de sua residência habitual. É muito útil para a transferência da custódia de presos estrangeiros, em nome de sua reabilitação.[8]
Diversos tratados governam a cooperação do Brasil com outros países para a transferência de pessoas condenadas. Alguns deles reservam ao Estado sentenciante – que detinha a jurisdição sobre o crime e onde foi proferida a sentença condenatória – o poder de anistiar e indultar.[9]
Tomo como exemplo o Tratado entre a República Federativa do Brasil e o Japão sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, firmado em Tóquio, em 24 de janeiro de 2014 (Decreto 8.718/2016), cujo art. 11 confere apenas ao Estado sentenciador a competência para “conceder perdão, anistia ou comutação da pena, de acordo com sua Constituição, leis e regulamentos.”[10] Esta também é a previsão do art. 10, §2º, do Acordo do Mercosul de 2004 sobre transcondenados.[11]
Em situações como estas (limitação expressa), aplica-se o princípio da especialidade (art. 1º, inciso I, do CPP), devendo a regra convencional prevalecer sobre a norma de direito interno, de modo que a anistia só poderá ser concedida pelo Estado sentenciante, isto é, a nação que originariamente detinha a jurisdição.
[1] Vide a EXT 615, Rel. Min. Paulo Brossard, j. em 19/10/1994. O ex-ditador Luis García Meza foi extraditado para a Bolívia em março de 1995.
[2] STF, HC 72.391 QO / DF, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 08/03/1995.
[3] STF, EXT 1435/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 29/11/2016.
[4] STF, Pleno, EXT 1270, Rel. Min. Marco Aurélio; Red. p/acórdão Min. Roberto Barroso, j. em 12/12/2017.
[5] STF: “Extradição. Lei de anistia do País requerente inaplicável à hipótese, não atingindo o extraditando. Prevalência dos crimes comuns sobre o político, aplicando-se os §§ 1º a 3º do artigo 77 da Lei 6.815/80, de exclusiva apreciação da Corte: fatos que caracterizam, em princípio, terrorismo, sabotagem, seqüestro de pessoas, propaganda de guerra e processos violentos de subversão da ordem. Alegação improcedente de submissão a juízos de exceção. Exclusão dos delitos relativos a: liderança de movimento político, porte de armas e explosivos, e uso de documentos falsos; bem como ressalvado que não poderão ser impostas ao extraditando penas superiores a trinta anos de prisão, o máximo, em relação a cada crime. Extradição deferida – com as ressalvas enunciadas”. (STF, EXT 417, Pleno, Rel. Min. Alfredo Buzaid, Red. p/acórdão Min. Oscar Correa, j. em 20/05/1984).
[6] STF, Pleno, EXT 1362, Rel. Min. Edson Fachin, Red. p/acórdão Min. Teori Zavascki, j. em 09/11/2016, p. 47.
[7] Vide o caso Makuchyan and Minasyan v. Azerbaijan and Hungary, julgado pelo TEDH em 2020.
[8] ARAS, Vladimir. Direito probatório e cooperação jurídica internacional. In: SALGADO, Daniel de Resende; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. A prova no enfrentamento à criminalidade. 2.ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 349.
[9] Aparentemente em sentido contrário, o art. 11.3 do Acordo entre o Brasil e a Bélgica, de 2009, promulgado pelo Decreto 9.239/2017, segundo o qual, “a execução da condenação será regida pela legislação do Estado de execução e esse Estado tem competência exclusiva para tomar quaisquer decisões apropriadas.”
[10] Vide também o art. 9º, §2º e 4º, do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a República da Polônia sobre Transferência de Pessoas Condenadas, firmado em Brasília, em 26 de novembro de 2012 (Decreto 9.749/2019).
[11] “O Estado sentenciador poderá conceder indulto, anistia, graça, ou comutar a pena conforme a sua Constituição e as disposições legais aplicáveis”. BRASIL. Decreto nº 9.566, de 16 de novembro de 2018. Promulga o Acordo sobre Transferência de Pessoas Condenadas dos Estados Partes do Mercosul com a República da Bolívia e a República do Chile, firmado pela República Federativa do Brasil em Belo Horizonte, em 16 de dezembro de 2004. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9566.htm.