A jurisdição penal brasileira para julgar “core crimes” cometidos no exterior


As bases, a competência, as lacunas e a efetivida implementação do Estado de Roma de 1998 no Brasil

Vladimir Aras

Resumo

O artigo examina a existência de jurisdição penal brasileira para processar e julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio perpetrados no exterior. Parte-se de uma análise à luz do art. 109 da Constituição, do art. 7º do Código Penal, do art. 88 do Código de Processo Penal e da legislação especial (Lei nº 2.889/1956 e Código Penal Militar). Sustenta-se que a jurisdição extraterritorial é possível em moldura condicionada e incondicionada, neste caso para o crime de genocídio, mas há lacunas relevantes quanto à tipificação de crimes contra a humanidade e ao catálogo moderno dos crimes de guerra. Aponta-se a necessidade de uma lei federal de implementação do Estatuto de Roma, com tipificação fiel, modos de responsabilidade próprios, regras claras de competência e procedimentos de cooperação internacional, a fim de conferir efetividade às obrigações convencionais do Brasil, assegurar o devido processo e garantir às vítimas tutela penal adequada.

Palavras-chave

Jurisdição penal; extraterritorialidade; genocídio; crimes de guerra; crimes contra a humanidade; Estatuto de Roma; Justiça Federal; Justiça Militar da União; Gaza; Ucrânia; Sudão.

1. Introdução

As sangrentas guerras em Gaza, no Sudão e na Ucrânia reavivaram questões basilares quanto à suficiência do direito penal e do direito processual penal interno para lidar com as violações cometidas no exterior: pode o Brasil exercer jurisdição penal sobre crimes nucleares (core crimes) cometidos no exterior por agentes estrangeiros? Quais seriam os órgãos competentes e o foro? Há, no ordenamento, tipificações suficientes para abarcar os chamados crimes de atrocidade do direito internacional penal sem diluir seu elemento contextual em figuras penais comuns? Este estudo inicial parte das chaves normativas de extraterritorialidade do art. 7º do Código Penal, da competência federal e militar definidas na Constituição e no Código Penal Militar, do foro fixado pelo art. 88 do Código de Processo Penal e do acervo legislativo especial, identificando os déficits que recomendam a aprovação de uma lei federal de implementação do Estatuto de Roma e das Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais de 1977.

A questão fundamental é: agentes estrangeiros, que cometam atrocity crimes ou core crimes fora do território brasileiro podem ser alcançados pela lei penal nacional?

2. Os deveres de investigar e o dever de cooperar

No que diz respeito aos crimes de direito internacional, os Estados têm deveres para com a comunidade internacional. Devem investigar, processar e julgar, de forma efetiva, os core crimes que caiam em sua jurisdição. Devem também cooperar com tribunais internacionais e outros Estados para a persecução desses delitos, a partir de compromissos convencionais (isto é, previstos em tratados) ou por força de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. No âmbito dos tratados, tais deveres correspondem a obrigações erga omnes, no sentido empregado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ).

Este cristalino dever jurídico (convencional e consuetudinário) exige dos Estados que investiguem de forma pronta, séria, independente e eficaz alegações de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Esse encargo nasce, entre outras fontes, das Convenções de Genebra, da Convenção do Genocídio e do direito internacional dos direitos humanos (obrigações positivas) e da lógica de complementaridade do Estatuto de Roma.

Investigar, aqui, não é cortesia política; é obrigação qualificada de meios (não de resultado), que exige tipificação adequada, asserção de jurisdição, independência funcional do órgão persecutório, salvaguardas contra interferências indevidas, atividade probatória apta e completa, adaptada a contextos complexos (conflitos armados, deslocamentos forçados, cenários digitais), proteção de vítimas, testemunhas e outros atores da justiça internacional; e ferramentas de cooperação internacional.

Anistias autoindulgentes, prescrições artificiais, sham trials e obstáculos processuais que inviabilizem a apuração séria desses crimes de atrocidade contrariam os deveres dos Estados e os expõem a responsabilidade internacional.

3. Bases legais da jurisdição extraterritorial brasileira (art. 7º do CP)

O art. 7º do Código Penal conforma dois regimes básicos de aplicação da lei penal brasileira para além de nosso território: a extraterritorialidade incondicionada (inciso I) e a condicionada (inciso II).

No plano incondicionado, o Brasil pode, em hipóteses taxativas, projetar sua jurisdição sem depender de requisitos adicionais. É disso que cuida o inciso I do art. 7º do CP.

Já o regime condicionado exige, entre outros requisitos, a presença do agente no território nacional, a dupla tipicidade, a inexistência de absolvição ou cumprimento de pena no exterior e a extraditabilidade da infração penal (art. 7º, inciso II, e §2º).

Em tese, um eventual crime de genocídio cometido por militar estrangeiro, em Gaza, ou em Mariupol em 2023-2025, ou na Srebenica dos anos 1990, pode ativar jurisdição brasileira pela via convencional (dever de persecução), de modo incondicionado.

Para os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, o Brasil teria jurisdição com base no art. 7º, inciso II, do CP, de forma condicionada, pois são infrações que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir. Os tratados em questão são as Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos de 1977 e o Estatuto de Roma, de 1998.

A resposta, pois, é afirmativa em princípio: o Brasil detém jurisdição para a persecução de crimes extraterritoriais previstos no Estatuto de Roma de 1998, a saber: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Não pode, contudo, processar e julgar o crime de agressão (art. 8º-bis), por absoluta atipicidade em nosso ordenamento jurídico.

4. Qual é a jurisdição preferente? A brasileira ou a do TPI?

O Estatuto de Roma do TPI prevê no art. 1º que a jurisdição do Tribunal é complementar. Isso significa que corresponde prioritariamente aos Estados o dever de persecução.

Por design, a jurisdição preferente é a nacional, seja a do Estado territorial, seja a de Estados que possam ou devam exercer a jurisdição extraterritorial, conforme suas leis. O TPI tem natureza complementar como court of last resort.

Assim, se o Brasil tiver base legal, capacidade operacional e vontade genuína de investigar e processar o agente pelos mesmos fatos, o caso é inadmissível no TPI. O Procurador deve postergar a atuação internacional se um Estado com jurisdição informar o início da persecução (art. 18) e a admissibilidade da causa no TPI pode ser contestada (art. 19).

Deste modo, se o Estado territorial não quis ou não pôde deflagrar sua atividade investigatória, exercendo a competência pelo critério locus delicti, a jurisdição brasileira pode ser acionada, quando houver a presença do acusado no território nacional, com vistas a evitar impunidade dos crimes de direito internacional. Os filtros do art. 7º do CP e o princípio da complementaridade, extraído do Estatuto de Roma, funcionam como parâmetros de deferência e de seleção racional de casos.

5. Competência interna: Justiça Federal ou Justiça Militar da União?

Uma vez afirmada a jurisdição brasileira, cabe buscar o juiz natural. A definição de competência decorre do art. 109 da Constituição (competência penal da Justiça Federal) e do art. 124 (crimes militares definidos em lei).

O genocídio é previsto na Lei nº 2.889/1956 e, também, no Código Penal Militar (CPM), com figuras para tempo de paz e tempo de guerra (arts. 208 e 401). Contudo, para fatos ocorridos no exterior, sem participação das Forças Armadas brasileiras, não ocorre, em regra, a subsunção à categoria de crime militar. Nessa hipótese, prevalece a competência da Justiça Federal, por envolver interesse direto da União e o cumprimento de obrigações convencionais, sem prejuízo de exame casuístico quando o tipo penal militar estiver juridicamente caracterizado. Nestes casos, a competência será da JMU.

6. Foro territorial: juízo federal de Brasília (art. 88 do CPP)

Em crimes não militares de competência federal, cometidos no estrangeiro, quando o agente for estrangeiro e nunca houver residido no Brasil, o art. 88 do Código de Processo Penal fixa a competência no juízo federal de Brasília.

Trata-se de regra funcional que concentra causas de alta complexidade e sensibilidade diplomática, facilitando alguma uniformidade interpretativa e uma articulação mais próxima com as autoridades diplomáticas e de cooperação internacional.

7. A tipificação penal disponível

A tipificação é o ponto crítico. O genocídio (art. 6º do ER/1998) conta com previsão desde 1956 na legislação comum e no CPM (arts. 208 e 401), o que, em princípio, permite persecução interna desse delito, onde quer que ocorra.

Os crimes contra a humanidade (art. 7º do ER) e os crimes de guerra (art. 8º) não estão tipificados no Brasil.

Na jurisdição militar, o CPM traz crimes militares que podem ser cometidos em tempo de guerra, concebidos para cenários castrenses brasileiros, que não abarcam todo o moderno catálogo de delitos do direito penal internacional.  Os crimes militares em tempo de guerra descritos no CPM visam à proteção de bens jurídicos militares e à disciplina castrense nacional. O elenco do art. 8º do Estatuto de Roma é mais amplo e orientado por Direito Internacional Humanitário contemporâneo. Sem lei de implementação, permanece a assimetria entre o catálogo internacional e a legislação interna, com risco de impunidade seletiva ou de desclassificação inadequada para tipos comuns.

Finalmente, o crime de agressão (art. 8º-bis) tampouco é aplicável internamente, já que falta previsão legal e as Emendas de Kampala (2010) ainda não foram aceitas pelo Brasil.

Isso significa que core crimes praticados no exterior não podem ser julgados no Brasil?

Pode-se resolver o hiato por “encaixe” das condutas em tipos comuns (homicídio, lesões, dano, tortura, escravidão, estupro etc). Porém, esta técnica enfraquece o elemento contextual que singulariza os crimes internacionais – ataque generalizado ou sistemático, nexos de política externa estatal, status das pessoas ou entidades protegidas e proporcionalidade –, com perdas para a verdade, a intensidade da responsabilização e a prevenção geral desses comportamentos ilícitos.

A falta de tipificação específica, em consonância com Genebra (1949) ou Roma (1998) não exonera um país – notadamente um Estado Parte dessas convenções – dos seus deveres de proteção e repressão com base em várias normas de jus cogens, inclusive aquelas presentes dos tratados internacionais de direitos humanos, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).

Não existe, de fato, uma situação de atipicidade no Brasil, mas sim um quadro de tipificação deficitária, de modo que um homicídio ou trezentos homicídios cometidos em contextos de crimes de atrocidades encontrarão tipificação subsidiária no art. 121 do Código Penal brasileiro. Do mesmo modo, estupros em série, cometidos por forças militares ou agentes terroristas, podem ser caracterizados como o crime do art. 213 do mesmo código. Fatos atípicos não são.

A adequação típica com figuras subsidiárias – sem analogia in malam partem – é admitida expressamente pelo STF. Em matéria extradicional, quando se cogita da entrega de pessoas acusadas do crime de conspiração (conspiracy), como se vê na EXT 761 (Rel. Sidney Sanches, j. em 03/05/2000) e na EXT 966 (Rel. Sepúlveda Pertence, j. em 29/06/2006), o STF tem permitido a transferência da custódia da pessoa procurada, utilizando o crime de quadrilha, hoje associação criminosa, prevista no art. 288 do CP, como equivalente.

O mesmo procedimento foi adotado pela Suprema Corte para o crime de desaparecimento forçado (que também é um crime de direito internacional, previsto em duas convenções das quais o Brasil é parte): “Dupla tipicidade. Desaparecimento forçado de pessoas. Análise da dupla tipicidade com base no delito de sequestro. Entendimento adotado na EXT 974/Argentina” (STF, EXT 1278, Rel. Gilmar Mendes, j. em 18/09/2012). Embora o desaparecimento forçado (vide o art. 1º da Convenção de 2006, promulgada pelo Decreto 8.767, de 11 de maio de 2016) ainda não tenha sido especificamente tipificado no Brasil, a conduta foi encaixada pelo STF no crime de sequestro, o que viabilizou as extradições em questão.

Quanto ao genocídio, o Brasil tem tipos penais específicos, embora defasados, na Lei 2.889/1956 e no CPM.  Como vimos, no plano extraterritorial, o Estado brasileiro (ou qualquer outro) pode exercer a preferência sobre o TPI para julgar o crime de genocídio. O Tribunal na Haia só atuará se o Estado territorial (especialmente este) ou nenhum outro puder cumprir seus deveres e proceder ao processo penal.

Quanto aos crimes de guerra e aos crimes contra a humanidade, o déficit legislativo brasileiro (tipificação incompleta ou faltante no direito comum) pode caracterizar a “incapacidade” no sentido do art. 17 do ER, abrindo preferência para o TPI. Não custa recordar que, quanto à Palestina e à Ucrânia, o TPI tem jurisdição territorial, já que ambos são Estados Partes do Estatuto de Roma. Ainda assim, as figuras subsidiárias, por assim dizer, seriam úteis, permitindo ao Estado brasileiro proceder à persecução criminal.

De todo modo, somente uma lei de implementação do ER/1998 e das Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos de 1977 pode conferir ao Brasil o status de jurisdição perfeitamente adequada para o processo desses crimes.

8. Proposta de lei federal de implementação do Estatuto de Roma (enabling legislation)

Para superar o déficit normativo, propõe-se uma lei de implementação com cinco eixos: (i) tipificação fiel de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, com atualização do delito genocídio, e a inclusão do crime de agressão; (ii) a positivação de modos de responsabilidade próprios do direito penal internacional, conforme o ER; (iii) regras claras de jurisdição e competência internas, com modelo de jurisdição baseada na presença e competência federal especializada, preservando a Justiça Militar apenas quando efetivamente caracterizado crime militar; (iv) ajustes processuais sobre imprescritibilidade desses crimes, recusa de imunidades, proteção de vítimas e testemunhas, produção probatória em zonas de conflito; cooperação jurídica internacional vertical (com o TPI e mecanismos de investigação das convenções pertinentes e órgãos onusianos ad hoc) e horizontal (com outros Estados) e colaboração com organismos e organizações internacionais humanitárias; e (v) mecanismos de seleção e priorização de casos, reparação e articulação interinstitucional, entre o MPF, o MPM, o MJSP, o MRE, a AGU e as Forças Armadas.

Os projetos de lei em tramitação – na verdade, paralisados – na Câmara dos Deputados desde o início do século 21 não atendem mais às modernas necessidades da jurisdição extraterritorial e da cooperação com o TPI e eventualmente com tribunais ad hoc.

9. Conclusões

A jurisdição penal brasileira pode alcançar, em condições específicas, crimes internacionais (core crimes) ocorridos em Gaza, na Ucrânia, no Sudão, ou noutros cenários de atrocidades, como a Síria, a Etiópia ou Mianmar, especialmente o genocídio, mediante os gatilhos do art. 7º do Código Penal e com competência prevalente da Justiça Federal no foro em Brasília, para os agentes estrangeiros que nunca tenham cá residido.

Entretanto, a ausência de tipificação dos crimes contra a humanidade e a assimetria quanto aos crimes de guerra minam a efetividade da persecução penal no Brasil, prejudicam a cooperação internacional vertical e horizontal e comprometem o direito das vítimas à tutela penal adequada.

A aprovação de uma lei federal de implementação do Estatuto de Roma é medida recomendada pela técnica e pelos princípios incidentes nesta temática, para alinhar o Brasil às melhores práticas, fortalecer o dever de prevenir e de punir os core crimes com garantias do devido processo, permitindo manter a credibilidade internacional do País.

O Estado que investiga de maneira efetiva essas atrocidades honra o direito internacional humanitário e o direito internacional de direitos humanos. Aquele que se omite pode contribuir para a impunidade de gravíssimas condutas, abrindo, porém, espaço para a atuação de cortes penais internacionais, que suprirão sua falta para com as vítimas e a memória coletiva da humanidade.

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