
O galerista norte-americano Brent Sikkema, de 75 anos, foi encontrado morto em sua residência na zona sul do Rio de Janeiro, em janeiro de 2024. A vítima tinha 18 perfurações de faca no rosto e no tórax. Imagens de câmeras de segurança mostraram um homem saindo da casa da vítima, removendo luvas que teriam sido utilizadas durante o assassinato. É uma oportunidade para brevemente discutirmos jurisdição, competência e cooperação internacional.
Inicialmente tratado como latrocínio, o caso Sikkema não revelava, naquele momento, nenhum elemento de estraneidade, isto é, nenhum vínculo que provocasse a incidência de regras de cooperação jurídica internacional.
Contudo, descobriu-se que, além de a vítima ser estrangeira, o autor das facadas também é. O cubano Alejandro Triana Prevez, de 30 anos, foi preso pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Sua prisão foi mantida pelo STJ ao negar o RHC 200.144. Ele teriaconfessado ter sido contratado para cometer o crime, por US$ 200 mil (aproximadamente um milhão de reais na cotação da época). Foi então que a persecução penal se transnacionalizou. O mandante do homicídio teria sido o ex-marido da vítima, Daniel Carrera Sikkema, de 54 anos, também de origem cubana e naturalizado norte-americano.
O casal estava em meio a um divórcio conturbado, marcado por disputas pela guarda do filho de 13 anos e por questões patrimoniais. Em maio de 2022, Brent, a vítima, alterou seu testamento, excluindo Daniel, o mandante, da condição de herdeiro, destinando seus bens ao filho. Essa mudança teria levadoDaniel a planejar o homicídio para reaver o controle do patrimônio.
De acordo com a procuradora federal Danielle R. Sassoon – que renunciou ao cargo em fevereiro de 2025 por se recusar a cumprir uma ordem ilegal de Trump noutro caso de grande repercussão –, Daniel enviou dinheiro ao executor material do homicídio, dos EUA ao Brasil, por meio de intermediários, utilizando identidades falsas para ocultar a origem da transferência.
Naturalmente, num cenário destes, cabe à Polícia e ao Ministério Público colher provas no exterior sobre o envolvimento do suposto mandante e, eventualmente, requerer sua extradição. Pela teoria da ubiquidade, o Brasil tem jurisdição penal territorial para julgar tanto o mandante quanto o executor do homicídio. Embora a ação do mandante tenha ocorrido fora do território nacional, o resultado criminoso ocorreu em nosso território, o que faz incidir o art. 6º do Código Penal: “Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.” Nestes casos, aplica-se a lei penal brasileira diretamente, na forma do art. 5º do CP, não sendo necessário recorrer a regras de extraterritorialidade previstas no art. 7º do mesmo código.
Fixada a jurisdição brasileira, qual seria o juízo competente? Embora o crime seja transnacional quanto à ação e ao resultado, a competência é mesmo da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, perante o tribunal do júri. Não se aplica, neste caso, o inciso V do art. 109 da Constituição porque não há tratado internacional que mande criminalizar a prática de homicídios comuns. Faltando este requisito, não se apresenta a competência da Justiça Federal.
Em fevereiro de 2025, Daniel Carrera Sikkema foi preso nos Estados Unidos e enfrenta acusações federais de conspiração para cometer homicídio por encomenda (crime de mando), homicídio por encomenda no exterior e falsificação de passaporte. Se condenado por um júri federal, o mandante pode ser sentenciado aprisão perpétua ou até mesmo a pena de morte. Estas penas não existem no Brasil, mas ainda não aplicadas por alguns Estados norte-americanos e pela Justiça Federal. Isso pode provocar solução bastante díspares, considerando que a pena máxima no Brasil para o homicídio qualificado é de 30 anos de reclusão, podendo, no caso concreto, chegar a 40 anos. Alejandro, o executor material, foi dado como incurso nos incisos I, II, III, IV do §2º do art. 121 do Código Penal, combinado com o §4º do mesmo artigo, que prevê uma causa de aumento de pena, de um terço, quando a vítima é idosa.
Como é de se esperar, as autoridades brasileiras e norte-americanas estão colaborando estreitamente na persecução criminal. Agentes do FBI fizeram uma diligência probatória na residência da vítima no Rio de Janeiro para coletar elementos informativos úteis à parte norte-americana. Por outro lado, o Brasil pediu a extradição de Daniel, o que não deve ocorrer em função da concorrência da jurisdição, também territorial, dos Estados Unidos, sobre parte dos eventos. Embora o crime não tenha se consumado naquele país, a ação foi ali desencadeada e outras condutas ilícitas, inclusive de falsidade documental, atingiram aquela jurisdição.
Existe solução para evitar que duas ou mais pessoas, acusadas de um mesmo crime, sejam submetidas a julgamentos conforme ordenamentos penais diversos, com riscos de punições distintas? Sim, em proveito da boa administração da justiça, pode haver a transferência internacional do procedimento penal. Os EUA poderiam enviar sua parte do caso ao Brasil ou vice-versa, mediante a coordenação das duas jurisdições. Entretanto, embora possível, é pouco provável que isso aconteça, porque os réus também estão em jurisdições distintas, o que exigiria concomitantemente a extradição de um deles.
Este caso mostra mais uma vez que, mesmo diante de delitos aparentemente sem qualquer relação com o exterior, podem surgir, eventualmente, elementos concretos de estraneidade que provocam a necessidade de cooperação policial internacional e de assistência jurídica internacional em matéria penal entre as autoridades de diferentes países para garantir a coleta de provas e a captura de foragidos.