A Primeira Resolução de Direito Internacional Humanitário sobre TICs


A adoção da primeira resolução humanitária sobre Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) pela 34ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, realizada em outubro de 2024, em Genebra, representa um avanço significativo para o Direito Internacional Humanitário (DIH).

Além de seu conteúdo inovador, a relevância do foro onde foi aprovada merece destaque, assim como a natureza jurídica da resolução e suas implicações para a evolução do DIH. Como explica Kubo Mačák, dado o foco da Conferência:

[…] é incomum que uma resolução multilateral importante sobre questões digitais e cibernéticas surja em Genebra.(aqui)

Contudo, o contexto internacional recente, com conflitos armados em curso na Europa e no Oriente Médio, e a Declaração de Bruxelas aprovada pela União Europeia em 2024, são fatores que explicam e reforçam a importância dessa iniciativa da Conferência Internacional.

Tradição e Inovação no Desenvolvimento do DIH

A Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho é um dos mais antigos e amplos foros multilaterais do mundo, reunindo não apenas os 196 Estados partes das Convenções de Genebra, mas também as 191 Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e a Federação Internacional. Com raízes que remontam a 1867, o evento se consolidou como um espaço único para o desenvolvimento e a interpretação do DIH, combinando atores estatais e não estatais em um formato híbrido.

A aprovação da resolução de 2024 no âmbito desse foro reflete um consenso amplo, embora não unânime, sobre os riscos das TICs em conflitos armados. É particularmente relevante que uma resolução sobre tecnologia e conflitos cibernéticos tenha emergido de Genebra, tradicionalmente associada a temas humanitários, em vez de Nova York, onde questões de segurança cibernética são frequentemente discutidas no âmbito da ONU. Essa escolha de palco é sinal da incorporação das TICs à agenda humanitária global.

A Natureza jurídica de soft law da Resolução e seu potencial evolutivo

A resolução, não vinculante, possui grande relevância como instrumento de soft law. Por meio da reafirmação de princípios do DIH, como a distinção entre alvos civis e militares e a proibição de ataques indiscriminados, ela contribui para a consolidação de padrões de comportamento que podem, com o tempo, ingressar no direito internacional por meio do costume ou de tratados.

No campo do DIH, normas de soft law frequentemente influenciam o desenvolvimento de costumes internacionais, especialmente quando refletem a opinio juris e a prática reiterada dos Estados. A resolução pode também servir de base para negociações futuras de tratados que regulamentem o uso de TICs em conflitos armados, especialmente em áreas como a proteção de infraestruturas críticas civis e a responsabilização de Estados e de empresas globais de tecnologia.

Ademais, a resolução reafirma obrigações gerais dos Estados, como a disseminação do DIH junto a atores privados, e destaca questões emergentes, como o impacto da inteligência artificial e a participação de civis em operações cibernéticas. Esses elementos demonstram seu potencial de moldar o comportamento estatal e, gradualmente, integrar-se ao corpo normativo vinculante do DIH.

O Conteúdo da Resolução

A Resolução adotada pela 34ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho sobre TICs em Conflitos Armados aborda a proteção de civis e de bens internacionalmente protegidos contra os impactos das atividades relacionadas a Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) durante conflitos armados.

Seus principais tópicos incluem:

1. Compromisso com a Proteção de Civis: o documento reafirma o compromisso dos Estados e das partes interessadas em proteger populações civis, bens culturais, infraestrutura crítica, organizações e pessoal humanitário de danos causados por atividades digitais.

2. Aplicação do Direito Internacional Humanitário (DIH):

• Reitera que o DIH rege as atividades em situações de conflito armado, incluindo os princípios de humanidade, necessidade, proporcionalidade e distinção.

• Reconhece a necessidade de mais estudos sobre como esses princípios se aplicam às TICs.

3. Regras Específicas para a Proteção de Civis:

• Destaca o dever de proteger infraestruturas críticas civis, como redes de comunicação e cabos submarinos.

• Proíbe o incentivo ou incitação a violações do DIH, mesmo por meios digitais.

4. Proteção de Atividades e Organizações Humanitárias:

• Solicita respeito e proteção às organizações humanitárias e seus dados, destacando os impactos de atividades cibernéticas maliciosas, como violações de dados e campanhas de desinformação.

• Apoia o uso de um emblema digital para identificar e proteger ativos digitais de organizações humanitárias.

5. Engajamento de Empresas de Tecnologia:

• Encoraja a disseminação do DIH entre empresas privadas, destacando os riscos de envolvimento indireto em hostilidades e a necessidade de adotar medidas de conformidade para proteger populações afetadas por conflitos.

6. Capacitação e Cooperação Internacional:

• Promove a troca de boas práticas entre Estados e componentes do Movimento, fortalecendo a cooperação internacional em segurança cibernética, proteção de dados e aplicação do DIH às TICs.

7. Papel do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV):

• Encoraja o CICV a continuar considerando a questão do emblema digital e a oferecer suporte técnico e capacitação a Estados e organizações interessadas.

A resolução busca avançar no diálogo sobre os desafios tecnológicos no campo humanitário, fornecendo diretrizes não vinculantes, mas juridicamente relevantes, para mitigar os impactos das TICs durante conflitos armados.

Conexões com a Declaração de Bruxelas

A resolução da Conferência do Comitê Internacional da Cruz Vermelha encontra eco na Declaração de Bruxelas, aprovada pela União Europeia em 2024. Este documento enfatiza a incidência do direito internacional no espaço digital. Já a resolução da Cruz Vermelha aborda diretamente os efeitos das TICs em conflitos armados, conectando o direito digital ao humanitário.

Ambos os documentos convergem em um ponto essencial: a necessidade de regular o impacto das TICs em contextos críticos, garantindo que avanços tecnológicos não ampliem vulnerabilidades humanas. Reforça-se a interseção entre os direitos humanos e o DIH no campo tecnológico.

Além disso, o alinhamento entre os dois documentos reflete uma tendência crescente de diálogo entre atores regionais, como a União Europeia, e foros humanitários globais. Essa sinergia pode facilitar a integração de normas de soft law em instrumentos mais robustos, ampliando o impacto dessas iniciativas na construção de um marco regulatório eficaz para o uso de TICs em conflitos.

Um Passo Adiante para o DIH

A primeira resolução humanitária sobre TICs não apenas reafirma a relevância do DIH no mundo digital, mas também abre caminhos para sua evolução. Ao emergir de um foro historicamente voltado para questões humanitárias, ela se estabelece como um ponto de partida para a regulamentação de atividades digitais em contextos de guerra. Sua natureza de soft law lhe confere flexibilidade e potencial de influenciar normas vinculantes, seja pela via dos costumes ou de tratados futuros.

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