
O ator norte-americano Alec Baldwin foi acusado de homicídio culposo, em função de um trágico incidente ocorrido em 21 de outubro de 2021, no set do filme “Rust“, quando uma arma que Baldwin manuseava durante um ensaio foi disparada acidentalmente, com munição verdadeira, resultando na morte da diretora de fotografia, Halyna Hutchins.
É uma acusação de homicídio não intencional, que ainda assim é submetida ao tribunal do júri, como acontece nos Estados Unidos, isto é, sempre que a causa não se resolve por acordos penais. A armeira contratada pela produção do filme, Hannah Gutierrez-Reed, foi julgada antes de Baldwin e condenada a 18 meses de prisão pelo disparo que matou Hutchins.
Pouco depois de instalada a sessão do júri de Baldwin no condado de Santa Fé, a defesa apresentou um pedido de extinção da ação penal, sem veredicto dos jurados. Após uma audiência especial determinada pela juíza presidente da sessão para colher provas, o caso Baldwin foi encerrado. A juíza Mary Marlowe Sommer entendeu que provas potencialmente úteis ao réu não foram dados ao conhecimento de sua defesa. Assim, por erro da Polícia e do Ministério Público, o pedido de trancamento da ação penal (“motion do dismiss with prejudice”) foi deferido pela juíza togada.
Isso significa que a Promotoria do Estado do Novo México não poderá propor outra ação penal contra Baldwin, por conta da proibição de “double jeopardy” (non bis in idem), prevista na Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos.
O material questionado eram munições que teriam sido usadas no set de filmagem.
A principal promotora do caso Kari Morrissey disse na audiência convocada para examinar o pedido da defesa que nunca tinha visto a tal munição até sexta-feira, 12 de julho de 2024. Além disso, ela informou à juíza e à defesa que tampouco teria visto o relatório do xerife local sobre essa prova nova, porque o documento teria sido registrado pela Polícia com um número de processo diferente…
Em entrevista ao jornalista Chris Cuomo, outra integrante da equipe de acusação, a promotora especial Erlinda Ocampo Johnson explicou que só havia tomado conhecimento da existência da referida prova na sexta-feira, 12 de julho, com o júri já iniciado, e que, ao vê-la, entendeu que a acusação contra Baldwin deveria ser retirada por iniciativa do próprio Estado, devido ao precedente Brady vs. Maryland, de 1963, da Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS).
Naquela decisão, adotada por 7 a 2, a SCOTUS determinou que a acusação tem a obrigação de entregar à defesa todas as evidências que possam ser exculpatórias ou que favoreçam o acusado de alguma forma.

John Brady fora condenado por homicídio e sentenciado à morte. Posteriormente, veio à tona que a acusação havia retido a confissão do correu de Brady, Charles Boblit, na qual ele assumia responsabilidade pelo crime de homicídio. Brady apelou de sua condenação, argumentando que a ocultação da confissão de Boblit teria violado seu direito ao devido processo.
A Suprema Corte concordou com a defesa de Brady, estabelecendo que a retenção de provas favoráveis ao acusado por parte da acusação viola a cláusula de devido processo legal que decorre da 14ª Emenda à Constituição dos EUA. Esse princípio ficou conhecido como a “regra de Brady”, que impõe três deveres à acusação:
- Revelar à defesa provas exculpatórias: a acusação deve entregar à defesa qualquer informação que possa provar a inocência do acusado, reduzir a sua pena ou servir para questionar a credibilidade de uma testemunha.
- Revelar tais informações independentemente da solicitação da defesa: a obrigação de divulgar essas informações existe mesmo que a defesa não as solicite.
- Revelar tais informações de forma oportuna: as informações devem ser fornecidas em tempo hábil para que a defesa possa fazer uso efetivo delas durante o processo.
Esse importante precedente influenciou o desenvolvimento da deontologia do Ministério Público em todo o mundo, como uma instituição de garantias, uma visão harmônica com o inciso II do art. 129 da Constituição Federal.
Ao cuidar das funções do Ministério Público no processo penal, o Princípio 13.b das Regras de Havana de 1990, estabelece que cabe aos seus membros “Proteger o interesse público, atuar com objetividade, ter devidamente em conta a posição do suspeito e da vítima, e prestar atenção a todas as circunstâncias relevantes, independentemente de as mesmas serem favoráveis ou desfavoráveis ao suspeito“.
Outro exemplo está na Carta de Roma, de 2014, cujo princípio 20 estabelece que “o Ministério Público deve apresentar ao tribunal todas as provas críveis disponíveis e revelar ao acusado todas as provas pertinentes. Pode haver situações em que a ação penal deva ser interrompida”. Este documento que funciona como soft law foi aprovado pelo Parecer n.º 9 (2014) do Conselho Consultivo dos Procuradores Europeus ao Comitê de Ministros do Conselho da Europa (COE) sobre Normas e princípios europeus relativos aos magistrados do Ministério Público.
A Declaração de Bordeaux, de 2010, já havia orientado a atuação de promotores e procuradores sobre este ponto:
55. A imparcialidade dos magistrados do Ministério Público durante o processo deve ser entendida no seguinte sentido: devem proceder de forma justa e objetiva para assegurar que o tribunal seja informado de todos os factos e argumentos jurídicos relevantes e, em especial, assegurar que sejam divulgadas as provas favoráveis ao acusado; ter devidamente em conta a posição do réu e da vítima; verificar se todas as provas foram obtidas através de meios admissíveis pelo juiz de acordo com as regras de um processo equitativo e recusar a utilização de provas obtidas através de violações dos direitos humanos, como a tortura.
O caso Baldwin serve, desta maneira, como mais uma lembrança do papel do Ministério Público no processo penal: o de atuar como promotor de Justiça.