Testemunhas sem rosto e devido processo legal: o caso Snijders vs. Países Baixos (2024)


Mantendo-se fiel à sua jurisprudência, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu ser possível o uso de testemunhas incógnitas (anonimizadas) no processo penal. Eis a ementa não oficial do caso Snijders vs. Países Baixos, decidido em 6 de fevereiro de 2024:

Incapacidade de interrogar diretamente testemunhas anônimas cujas declarações foram utilizadas como prova contra o requerente • Boas razões que justificam a proteção da identidade da testemunha • Declarações, embora não de peso insignificante, não são base única ou decisiva para a condenação do requerente • Dificuldades encontradas pela defesa em relação ao anonimato da testemunha suficientemente contrabalançado pelos procedimentos aplicados pelas autoridades judiciais • Processo penal, considerado, no seu conjunto, não tornado injusto pela admissão como prova de declarações.

A controvérsia

Johan Snijders foi acusado da prática de um homicídio cometido na Holanda em 2002. A Polícia recolheu uma ponta de cigarro na cena do crime e constatou que o DNA do fumador fora antes encontrado num par de óculos deixados num local onde ocorrera um roubo em 2001. As amostras batiam mas ainda não se sabia a quem pertenciam.

Em 2005, uma testemunha, identificada como X, foi ouvida por um juiz de instrução holandês (rechter-commissaris) e declarou que apontaria o autor do homicídio caso fosse garantida a proteção de sua identidade. O compromisso foi feito, e a testemunha X deu detalhes compatíveis com a dinâmica do crime e identificou Snijders como seu autor.

Contudo, somente em 2008, quando foi recolhida uma amostra de DNA de Snijders, a Polícia o vinculou ao homicídio ocorrido em 2002, tendo então sido ouvidas várias testemunhas, uma das quais, uma ex-namorada de Snijders, também o apontou como autor do referido homicídio.

Os advogados do réu não puderam inquirir diretamente a testemunha X na fase preliminar nem na etapa instrutória, o que limitou o contraditório e, consequentemente, a ampla defesa. Após esgotar todos os recursos internos, Snijders dirigiu-se à CEDH em Estrasburgo e alegou ter havido violação ao art. 6º, §1º e §3º, d, da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que regula o direito ao devido processo legal.  

CONVENÇÃO EUROPEIA DE DDHH

Artigo 6º Direito a um processo equitativo

1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
(…)
3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;

Em 2011, a pedido do MP holandês, um tribunal de apelação conferiu a X o status de testemunha protegida, nos termos do art. 226a do CPP local. A testemunha foi então inquirida por outro juiz investigador in camera, e as partes – que, por isonomia processual, não puderam acompanhar o depoimento – tiveram o direito de apresentar perguntas por escrito. Foi-lhes também aberta a oportunidade de aditá-las, após a coleta do testemunho de X.

Com a perícia de DNA forense, o depoimento de X e outras provas de corroboração, Snijders foi julgado e condenado pela justiça holandesa a 18 anos de prisão pelo homicídio cometido em 2002.

19. Num acórdão de 9 de julho de 2012, o Tribunal Regional condenou o requerente pelo homicídio de Y. e sentenciou-o a dezoito anos de prisão. Considerou que as declarações de X eram suficientemente credíveis, consistentes e fiáveis ​​para serem utilizadas como prova. A este respeito, o tribunal considerou que tanto em 2005 como em 2012 os juízes de instrução avaliaram as declarações de X como fiáveis, que as declarações de X eram coerentes e detalhadas e que foram corroboradas em aspectos essenciais tanto pelas conclusões da investigação criminal como pelas declarações de uma ex-namorada do requerente. Observou que X declarou sob juramento que não teve qualquer contacto com a ex-namorada do requerente sobre este caso. Observou também que as suas declarações continham informações sobre o crime das quais não poderiam ter tido conhecimento através dos meios de comunicação social (um exemplo notável foi que ambos afirmaram que Y. não era o verdadeiro alvo), que as declarações de X não eram a única ou decisiva prova em que se baseou para o veredicto de culpabilidade e que foram tomadas medidas suficientes para compensar a limitação do direito da defesa de interrogar testemunhas.

O direito holandês conhece dois tipos de testemunhas protegidas, umas com anonimização limitada e outras com anonimização completa, aquelas em razão da função e estas em razão de ameaças.

33. A distinção entre uma testemunha com “anonimato limitado” (na prática utilizado, por exemplo, para proteger dados pessoais de agentes policiais que realizaram prisões, vigilância e operações encobertas) e uma testemunha ameaçada com “anonimato total” é que uma testemunha com o anonimato limitado pode, em princípio, ser interrogado durante o interrogatório do juiz de instrução e na audiência de julgamento. Se for necessário ocultar a identidade dessa testemunha, o juiz pode ordenar a instalação de medidas como blindagem visual ou acústica, ou ordenar que o arguido abandone (temporariamente) a audiência para que o interrogatório possa ser realizado apenas na presença do Conselho de Defesa. O juiz também pode impedir uma resposta se houver boas razões para acreditar que a divulgação de informações resultará em graves problemas para a testemunha no exercício da sua profissão. Contudo, quando uma testemunha se sente ameaçada de tal forma que se deva razoavelmente presumir que existe uma razão legítima para temer pela vida, pela saúde, pela segurança ou pela estabilidade da vida familiar ou pela posição socioeconómica dessa testemunha, ela ou ela pode receber o status de “testemunha ameaçada”. A legitimidade de tal ameaça deve ser determinada pela autoridade judicial competente. Se tiver sido concedida a qualidade de testemunha ameaçada, o juiz de instrução confirmará a identidade da testemunha ameaçada, mas inquirirá essa testemunha de modo a garantir que a sua identidade permaneça totalmente oculta.

Em 1989, naquele que foi aparentemente o primeiro caso de testemunha sem rosto a ser examinado em Estrasburgo – um processo também oriundo da Holanda – , a Corte Europeia considerou ter havido ali uma violação do referido art. 6º do Tratado. De fato, em Kostovski vs. Países Baixos, o Tribunal não acolheu a solução adotada pela Justiça holandesa, com base na legislação então vigente e depois alterada. Vide particularmente os § 44 e 45 daquela sentença.

Caso Kostovski vs. Países Baixos (1989)

44. O Governo sublinhou o fato de a jurisprudência e a prática nos Países Baixos em matéria de provas anônimas resultarem de um aumento na intimidação de testemunhas e se basearem num equilíbrio entre os interesses da sociedade, dos acusados ​​e das testemunhas. Salientaram que, no caso em apreço, estava estabelecido que os autores das declarações em causa tinham boas razões para temer represálias.
Tal como em ocasiões anteriores (ver, por exemplo, o acórdão Ciulla de 22 de Fevereiro de 1989, Série A n.º 148, p. 18, § 41), o Tribunal não subestima a importância da luta contra o crime organizado. No entanto, a linha de argumentação do Governo, embora não desprovida de força, não é decisiva.
Embora o crescimento do crime organizado exija sem dúvida a introdução de medidas apropriadas, as alegações do Governo parecem ao Tribunal atribuir peso insuficiente ao que o advogado do requerente descreveu como “o interesse de todos numa sociedade civilizada num processo judicial controlável e justo”. O direito a uma administração justa da justiça ocupa um lugar tão proeminente numa sociedade democrática (ver o acórdão Delcourt de 17 de Janeiro de 1970, Série A n.º 11, p. 15, § 25) que não pode ser sacrificado pela conveniência. A Convenção não exclui a confiança, na fase de investigação dos processos penais, em fontes como informantes anônimos. Contudo, a utilização subsequente de declarações anônimas como prova suficiente para fundamentar uma condenação, como no presente caso, é uma questão diferente. Envolvia limitações aos direitos de defesa inconciliáveis ​​com as garantias contidas no artigo 6º. Com efeito, o Governo aceitou que a condenação do requerente se baseasse “em medida decisiva” nas declarações anônimas.
45. O Tribunal conclui, portanto, que, nas circunstâncias do caso, as restrições que afetam os direitos da defesa eram tais que não se pode dizer que o Sr. Kostovski tenha recebido um julgamento justo. Houve, portanto, uma violação do parágrafo 3º (d), em conjunto com o parágrafo 1º do Artigo 6º.

O julgamento do caso Snijders na CEDH

Após reafirmar que a admissibilidade e o exame de provas é “primariamente um tema sujeito ao direito interno” (§ 56 da sentença europeia) e que não atua como tribunal de quarta instância (§ 62), a Corte Europeia recordou sua jurisprudência sobre inclusão de depoimentos escritos em julgamentos orais (caso Al-Khawaja e Tahery vs. Reino Unido, de 2011; e caso Schatschaschwili vs. Alemanha, de 2015). Destes julgados extraem-se os três princípios que devem ser observados para a regularidade da utilização de depoimentos de testemunhas acusatórias ausentes, o que inclui, ainda com mais razão, o recurso a testemunhas sem rosto. É que, nesta situação mais do que naquela, há significativa redução da capacidade defensiva de aferir a honestidade, a credibilidade e a confiabilidade do depoente e de suas declarações (§ 58-59 e 65-66). Os princípios em questão para o test são:

  1. Necessity: a justificativa da necessidade da medida, notadamente para preservar a segurança do depoente, com base em dados objetivos e devidamente analisados (§ 68-71);
  2. Evidenciary weight: a existência de outras provas condenatórias, de modo que o depoimento da testemunha anonimizada não seja o único elemento ou o elemento probatório determinante, ou extremamente significativo, para a sentença. É a chamada sole and decisive rule; (§ 72-74)
  3. Counterbalancing factors: a existência de medidas processuais compensatórias, em favor da defesa, para contrabalançar a restrição do direito ao confronto, conforme o direito processual local (§ 75-82).

Tendo em conta as circunstâncias do caso, a CEDH entendeu que “não se pode dizer que o processo penal contra o requerente, quando considerado no seu conjunto, tenha-se tornado injusto pela inclusão das declarações de X como prova” (§ 83-84). Em razão disso, a Corte afastou a alegação de Snijders de que ele teria sido vítima de violação ao seu direito ao devido processo legal, nos termos do art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, ficando admitida a possibilidade de emprego de testemunhas sem rosto no processo penal, sempre que observadas as critérios dos precedentes Al-Khawaja e Tahery vs. Reino Unido e  Schatschaschwili vs. Alemanha.

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