A Corte da Haia e as obrigações positivas: o diferendo russo-ucraniano


A CIJ declara a responsabilidade internacional da Rússia por violar dois tratados

Leia a análise de Vladimir Aras
Palácio da Paz, na Haia.

Em 31 de janeiro de 2014, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), na Haia, publicou a sentença que proferiu no caso aberto em 2017 pela Ucrânia🇺🇦 contra a Rússia🇷🇺 sobre a aplicação da Convenção de 1999 para a Supressão do Financiamento do Terrorismo (ICSFT) e da Convenção de 1965 para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD).

Trata-se de uma análise de altíssima relevância sobre o conteúdo e a aplicabilidade das referidas convenções, a partir do diferendo russo-ucraniano.

Case:

Application of the Int’l Convention for the Suppression of the Financing of Terrorism and of the Int’l Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination

Essas duas convenções mereceram interpretação qualificada da CIJ, com sentidos e alcance que deverão ser levados em conta doravante quando de sua aplicação noutros contextos.

Ao examinar abstratamente algumas questões penais, conforme se vê no § 404 da sentença, a CJI concluiu por 13 votos a 2 (vencidos a juíza Xue Hanqin, da China, e o juiz ad hoc russo, Bakhtiyar Tuzmukhamedov) que a Federação Russa violou sua obrigação processual positiva (o dever de investigar) decorrente do art. 9º, §1º, da Convenção Internacional para a Supressão do Terrorismo, ao se omitir em tomar medidas apropriadas para averiguar o conteúdo de notícia-crime transnacional apresentada pela Ucrânia, que trazia indícios suficientes de crimes previstos no art. 2º da Convenção ICSFT, de financiamento do terrorismo, com consequências no leste da Ucrânia. Os supostos financiadores que deveriam ter sido submetidos a averiguação teriam enviado recursos para o cometimento de atos de terrorismo por parte da República Popular de Donetsk, da República Popular de Lugansk e da organização “Partisans de Kharkiv”. Entre os atos cuja investigação é necessária estão o suposto financiamento para a derrubada do voo MH-17, da Malaysian Airlines, ocorrido em 2014 no leste do país.

Obligations of State parties under Article 9, paragraph 1, of ICSFT – Relatively low evidentiary threshold for obligation to arise – Article 9 does not however require initiation of investigation into unsubstantiated allegations of terrorism financing – Information provided by Ukraine to Russian Federation met evidentiary threshold Respondent required to undertake investigation – Failure of Russian Federation to fulfil its obligation – Violation by Russian Federation of its obligations under Article 9, paragraph 1, of ICSFT.

A ICSFT de 1999 foi internalizada no Brasil pelo Decreto 5.640/2005. Seu artigo 9º, §1º, determina:

Artigo 9
1. Ao ser informado da presença, em seu território, de uma pessoa que tenha efetiva ou presumidamente cometido um dos delitos a que se refere o Artigo 2, o Estado Parte envolvido adotará as medidas necessárias, no âmbito de sua legislação interna, para investigar os fatos contidos na informação.

Trata-se claramente de uma obrigação processual positiva de natureza convencional, cuja aplicação pode ser exigida pelos Estados Partes conforme a doutrina das obrigações erga omnes partes, consagradas pela própria CIJ no caso Barcelona Traction, de 1970.

Deste modo, para além de seu reconhecimento pelos tribunais internacionais de direitos humanos – como o TEDH, a Corte IDH e o TADHP –, as obrigações processuais positivas são mais uma vez assinaladas pela Corte da Haia, dando densidade internacional ao dever de investigar sempre que um certo limiar indiciário (evidentiary threshold) for ultrapassado.

No que tange à CERD – que está em vigor para o Brasil desde 1969 –, após discutir o conceito convencional de discriminação racial, a CIJ entendeu que tal convenção é aplicável à situação dos tártaros e dos ucranianos étnicos na Crimeia, após a invasão russa de 2014. A discriminação racial, conforme a interpretação dada pela Corte da Haia ao art. 1º da CERD, é formada por dois elementos:

Sentença de 31 de janeiro de 2014

195. […] Em primeiro lugar, uma “distinção, exclusão, restrição ou preferência” deve ser “baseada” num dos motivos proibidos, nomeadamente, “raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica”. Em segundo lugar, tal diferenciação de tratamento deve ter o “objetivo ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício, em pé de igualdade, dos direitos humanos”.

Ademais, para a CIJ:

196. Qualquer medida cujo objetivo seja uma diferenciação de tratamento com base num motivo proibido nos termos do artigo 1.º, n.º 1, constitui um ato de discriminação racial nos termos da Convenção. Uma medida cuja finalidade declarada não esteja relacionada aos fundamentos proibidos contidos no artigo 1.º, n.º 1, não constitui, por si só, discriminação racial pelo fato de ser aplicada a um grupo ou a uma pessoa de uma determinada raça , cor, descendência ou origem nacional ou étnica. No entanto, a discriminação racial pode resultar de uma medida que é aparentemente neutra, mas cujos efeitos mostram que é “baseada” num terreno proibido. Este é o caso quando existem provas convincentes que demonstram que uma medida, apesar de ser aparentemente neutra, produz um efeito adverso díspar nos direitos de uma pessoa ou de um grupo distinto pela raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, a menos que tal efeito possa ser explicado de uma forma que não se relacione aos motivos proibidos no Artigo 1, parágrafo 1. Meros efeitos colaterais ou secundários sobre pessoas que se distinguem por um dos motivos proibidos não constituem, por si só, discriminação racial na acepção da Convenção (ver Aplicação da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Qatar v. Emirados Árabes Unidos), Objeções Preliminares, Sentença, Relatórios do C.I.J. 2021, pp. 108-109, parágrafo 112).

Apesar disso, a Corte da Haia afastou a alegação ucraniana de que a Rússia teria deixado de investigar crimes de discriminação contra integrantes dos referidos grupos da Crimeia.

221. A Corte conclui que não ficou provado que a Federação Russa tenha violado suas obrigações substantivas ou processuais com base na CERD devido a incidentes de violência física alegados pela Ucrânia.

Num ponto específico, contudo, a CIJ responsabilizou a Rússia por não ofertar educação pública em língua ucraniana para os ucranianos étnicos da Crimeia, violando assim a CERD, no que diz respeito ao dever de proteção a essa população sujeita à jurisdição de Moscou desde a invasão de 2014.

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