
Em um voto memorável no caso Brady vs. Maryland, de 1963, O juiz William O. Douglas da Suprema Corte dos Estados Unidos pontificou que “a sociedade não ganha apenas quando um culpado é condenado; ganha também quando os julgamentos criminais são justos”.
Eis a passagem completa:
We now hold that the suppression by the prosecution of evidence favorable to an accused upon request violates due process where the evidence is material either to guilt or to punishment… Society wins not only when the guilty are convicted, but when criminal trials are fair.”
Este voto me veio à memória quando li o projeto de Lei 5282/2019, apresentado em setembro de 2019 pelo senador Antônio Anastasia.

Embora não me agradem reformas atomizadas do já carcomido Código de Processo Penal de 1941 (não se põe remendo de tecido novo em pano velho), o PL 5282/2019 dá ao Ministério Público a dimensão que deve ter no processo penal, a de uma instituição de promoção da Justiça, e não a de um órgão exclusivamente focado na acusação, a qualquer preço.
De igual modo, o projeto reconhece o poder investigatório do Ministério Público, ainda consubstanciado na Resolução 181/2017 do CNMP e no RE 593.727, julgado em 2015 pelo STF.
Nesta linha, o projeto contribui para adequar nosso modelo persecutório a uma importante normativa de soft law internacional: os princípios 13 e 14, das Regras de Havana de 1990, aprovadas pelas Nações Unidas no seu VIII Congresso Criminal; e


De fato, nos Princípios Orientadores Relativos à Função dos Magistrados do Ministério Público lê-se que no exercício das suas funções tais autoridades devem dar prova de imparcialidade e agir com objetividade, tomando em consideração a posição do suspeito e da vítima, tendo em conta “todas as circunstâncias pertinentes, quer sejam favoráveis ou desfavoráveis ao suspeito”.
O Princípio 14 das Regras de Havana exorta os “magistrados do Ministério Público” a não encetar nem continuar investigações criminais ou a fazer o possível para as suspender “se um inquérito imparcial revelar que a acusação não é fundada”.
O projeto aproxima ainda mais nosso processo do modelo acusatório, no qual o prosecutor tem o dever de revelar provas incriminatórias e exculpatórias à defesa no procedimento prévio de criminal discovery, tal como decidiu a Suprema Corte americana no célebre precedente Brady vs. Maryland, da Corte de Warren, em 1963.

O projeto em tela modifica o art. 156 do CPP e no §1º diz que, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, cabe ao Ministério Público alargar ou ampliar a investigação de modo examinar todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o código e a Constituição Federal.
Para esse fim, o MP deve investigar não só as circunstâncias que interessam à acusação como também as que são úteis à defesa, com o que fortalece a tese acusatória, na medida em que lhe cabe o ônus de afastar a presunção de inocência, especialmente em torno de excludentes de ilicitude e causas extintivas de punibilidade, por exemplo.
É fácil compreender: o Ministério Público não é só um órgão de acusação; é também custos legis e defensor de outros direitos fundamentais. Mais do que isto: é uma instituição que deve velar pelos valores da Justiça e da equidade. Por isso a frase do juiz Douglas é tão adequada ao nosso ethos e à desejável ontologia do Parquet, como uma “magistratura” firme, responsável e eficiente.
Nos Estados Unidos, a American Bar Association (ABA) adota diretrizes para orientar os membros do Ministério Público (district attorneys, assistant US attorneys e prosecutors em geral). Os padrões instituídos pela Ordem nos Criminal Justice Standards for the Prosecution Function confirmam e vão além de Brady:
a) exigem a investigação e documentação plena dos fatos, sejam quais forem;
b) obrigam o Ministério Público a revelar à defesa todas as provas que possam abalar, mitigar ou eliminar a responsabilidade criminal do réu ou influenciar sua pena, independentemente do que o promotor ou procurador considere relevante;
c) deixam claro que a divulgação oportuna de provas exculpatórias à defesa é apenas um dos deveres de uma obrigação mais ampla de garantir a justiça, uma obrigação que inclui expressamente a busca de provas debilitar a acusação sustentada pelo Ministério Público.
Vide particularmente as diretrizes (standards) 3-1.2 e 3-5.4 da ABA, sobre Functions and Duties of the Prosecutor e Identification and Disclosure of Information and Evidence, respectivamente.
No plano europeu, há diretrizes semelhantes. A Recomendação REC(2000)19, adotada pelo Conselho de Ministros do Conselho da Europa (COE) em 6 de outubro de 2000 cuida da Função dos Membros do Ministério Público na Justiça Criminal.
O princípio 26 exorta os membros do Ministério Público a observar a igualdade de todos perante a lei e a levar em conta todas as circunstâncias processais relevantes, inclusive aquelas que possam afetar o suspeito, independentemente de lhe aproveitarem ou lhe prejudicarem.
O princípio 27 reforça a importância de investigações imparciais.
Já o princípio 29 conclama promotores e procuradores a revelar à defesa, salvo quando houver previsão legal diversa, qualquer informação de que disponham que seja capaz de afetar o devido processo legal.
Nos ordenamentos jurídicos que seguem a tradução da common law, o devido processo legal é marcado também pelo procedimento de “disclosure”, assim descrita pelo Crown Prosecution Service (CPS):
To help guarantee a fair trial a defendant has the right to be provided with any material which could assist them in defending themselves. They have a right to an open and honest prosecution which reveals any weakness in the case against them. Investigators must pursue all reasonable lines of enquiry and this includes investigating matters which could point towards innocence as well as guilt.
Após ver as normativas internacional e comparada, voltemos ao campo brasileiro. Há sérios problemas na redação proposta pelo PL 5282 para o §2º do art. 156 do CPP.
Diz-se ali ou sugere-se que o MP deve alargar ou ampliar o escopo da investigação em busca de provas para a defesa. Isso não faz sentido e fere a razoabilidade, e os fins da investigação criminal, que não é uma antecipação do processo penal. O que se exige do MP, no direito comparado, é a documentação ou registro das provas e informações favoráveis à defesa, das que sejam encontradas durante a investigação, das que apareçam durante o curso da apuração, no seu caminho natural de elucidação da autoria e da materialidade. Não se pode transformar o promotor ou o procurador em investigador da defesa. Ao contrário, nos modelos contemporâneos de processo, é a defesa que tem tido cada vez uma participação maior na investigação criminal. Esta é uma grave falha de redação do projeto.
O inquérito ou o PIC “alargado” seria um expediente sem foco, sem fim, vocacionado à eterna busca de teses e hipóteses investigativas, as mais diversas, muitas delas inúteis ou absurdas, que não são compatíveis com sua destinação e ofendem o princípio constitucional da eficiência.
O dever do MP circunscreve-se à exposição de suas “armas”, no que se conhece na common law como disclosure, isto é, a prática de disponibilizar à defesa tudo o que foi apurado na investigação criminal, inclusive aquilo que possa ajudar a rebater as teses da acusação ou a sua teoria do caso. Na conceituação dada pelo CPS, do Reino Unido, seria “providing the defence with copies or access to all material that is capable of undermining the prosecution case and/or assisting the defence.”. É um dever processual que encontra algumas identidade com a SV 14.
Ademais, segundo o projeto de lei, o descumprimento das providências do §1º (vide acima) implicaria “a nulidade absoluta do processo”.
Primeiro ponto: para que uma nulidade advenha, a violação do dever legal de documentação plena teria de ser intencional. Ou seja, decorreria da conduta do promotor ou procurador que deliberadamente deixasse de constar no expediente investigativo, ou sonegasse ou suprimisse dos autos do IPL ou do PIC prova de interesse da defesa, com o objetivo de prejudicar a verdade processual e dificultar o acolhimento de teses defensivas e o descobrimento do que realmente ocorreu. Uma tal conduta violaria o fair play que se exige no processo, isto é, as ideias de lealdade processual e de boa-fé. Seria uma fraude.
Segundo ponto: uma vez presente a ocultação intencional ou a supressão dolosa de prova favorável à defesa, o efeito dessa conduta ministerial ou mesmo da Polícia deveria ser a de exclusão da prova acusatória que seria infirmada pela prova exculpatória sonegada pelo Ministério Público, e não a drástica medida de anular todo o processo. Se o acusado tem direitos, as vítimas e a sociedade também os têm, e é preciso encontrar o ponto de equilíbrio entre proteção insuficiente e excesso.
A defesa deve ter acesso a todos os elementos informativos já documentados na investigação, sem ocultação ou sonegação de qualquer tipo, para que, de posse de todos os elementos colhidos, produza a resposta à acusação estatal. Garantir a ampla defesa sem supressões, aliás, é o espírito da Súmula Vinculante 14.
Evidentemente não se pode abalar todo o processo penal, com uma nulidade fulminante, a partir de uma previsão geral e cabal, porque em várias situações poderá haver provas condenatórias suficientes, para além daquele quadro viciado, para além daquela informação que dolosamente deixou de ser registrada ou foi suprimida dos autos. Ademais, a situação questionável pode estar perfeitamente encapsulada num determinado incidente processual, sendo desproporcional prever a anulação de todo o processo como regra única ou geral.
Considerada a crítica que apresento, a solução legislativa inspira-se no precedente Brady (1963) e sua progênie, assim como nos demais parâmetros internacionais, inclusive os vigentes no continente europeu desde o ano 2000, para a deontologia do Ministério Público no processo penal.
No entanto, o texto não pode ser aprovado como está, devendo ser suprimida a cláusula de nulidade absoluta aplicável a qualquer situação, pela sua desproporcionalidade, atingindo situações não intencionais.
Deve também ser corrigida a redação para que o dever do Ministério Público não seja o de investigar no PIC ou no IPL toda e qualquer tese defensiva (“ampliar” ou “alargar”), até as mais estapafúrdias. O que poderia constar é o dever de, para garantir um fair trial, também registrar no expediente investigativo as informações e provas que tenham surgido no natural esforço investigativo e que possam beneficiar a defesa; e as obrigações de não sonegá-las do defensor nem suprimi-las dos autos do PIC ou do inquérito.
Esta seria a correta leitura da soft law e do direito comparado relacionados à matéria. O texto atual está muito longe disso.