Lamentos de carpideiras 


Não conheci Eusélio Oliveira. Mas sei como se sente sua família. Eusélio foi morto em 1991 no Ceará, num crime que continua impune (aquipor obra e graça das centopeias recursais tão comuns na Justiça brasileira. Recursos sem fim. Instâncias a perder de vista. Prescrição. Esquecimento. Impunidade. 

Naquela época, já se matava muito no País. A regra hoje é a mesma. O Brasil assiste a mais de 50 mil mortes intencionais a cada ano. Não há modelo de justiça criminal que dê conta disto. Não há sistema penitenciário que chegue para tantos candidatos, alguns tão insistentes. Fazem questão de uma vaga atrás das grades, mas nossa crônica ineficiência não consegue atendê-los. E seguem soltos praticando outras traquinagens violentas. Por outro lado, a superlotação carcerária é um dura realidade na maioria dos estabelecimentos prisionais. Algo há de ser feito para soltar quem não deva ali estar e fazer com que milhares de homicidas e outros criminosos violentos cumpram suas penas, devidamente.

Não se pretende condenação sem provas ou julgamentos sem defesa. Isso seria abjeto. O que se quer é o tempo adequado (e humano) da justiça, e não uma saga, quase sempre em vão, de vinte ou trinta anos à espera do cumprimento de um dever básico dos Estados democráticos de Direito: o de prover justiça, e livrar o homem de bem do intolerável ônus de buscá-la pelos seus próprios meios, seja por vindita ou nos justiçamentos públicos. 

Ainda que a contragosto de juristas pseudogarantistas, haveremos de ver mudanças definitivas, no campo do processo penal e da jurisprudência, para diminuir esses números de guerra: 58 mil mortos em 2014, um banho de sangue, um Ypiranga, um rio vermelho às margens (plácidas?) do qual milhares de brasileiros choram suas perdas. Agora. Neste instante. Uma vez a cada nove minutos. Todos os dias.

Alguns pseudogarantistas mais espalhafatosos bradam e dizem se incomodar com supostas violações de direitos humanos. Alegam não ter interesse ideológico ou pecuniário algum. Que Deus nos livre da bondade dos que se acham “bons”. 

Nem todo mundo é cego ou míope. Depois do mau passo que deu em 2009, no HC 84.078/MG, o STF refez a leitura da Constituição e voltou a permitir a execução penal de sentenças penais condenatórias após o exercício do direito ao duplo grau, que deve ser efetivo, acrescento. 

No julgamento do HC 126.292/SP, em fevereiro de 2016, a maioria dos ministros da Suprema Corte acordou. Parte da academia também abriu os olhos. Os dois olhos. Mas algumas vozes lamuriosas da doutrina continuam semeando falácias, a principal delas a de que tal precedente ignoraria a presunção de inocência. Valha-nos, Santo Ivo. Que o STF não arrede o pé. 

Esse punhado de teóricos “reacionários“, contrários a qualquer avanço, não têm soluções para estes problemas, nem podem ter, porque não os enxergam. Não conseguem perceber que um modelo recursal e jurisprudencial que coonesta, chancela e perpetua tamanha calamidade social não é legítimo nem “constitucional”, porque a Constituição tutela a vida, como bem jurídico primordial, institui as bases da responsabilidade individual por ilícitos e dá a qualquer cidadão o direito à sua hora diante da Justiça. 

Não é o espírito de Euselio que está no purgatório. Nós é que estamos. Da investigação à execução, nossa Justiça criminal ingressou no umbral do mais completo caos. Há muita crítica vã e às vezes pouco honesta ao notável avanço promovido pelo STF nos últimos anos, nos seus vários “pontos fora da Curva” desde o julgamento da AP 396. Soluções? A escola dos Acadêmicos da Impunidade nunca aponta caminho algum. Sempre que algo funciona em alguma parte ou quando se vislumbra um lampejo de justiça num fórum qualquer do País, daqui podemos ouvir seus maus agouros e imprecações. Rangem os dentes porque gostam mesmo é que tudo dê em nada. E, ao som dos falsos lamentos dessas carpideiras, seguimos os brasileiros lamentando, não pelos que se foram, mas por aqueles milhares que vão morrer. 

Portanto, descanse em paz, prezado Eusélio Oliveira. Porém, como diria Dante, abandone sua esperança. Nada se passará aqui, porque a Justiça humana para você e para outros milhares de brasileiros já está morta. 

5 comentários

  1. REBELDES PRIMITIVOS

    Com a Constituição de 1988 foram enaltecidos os direitos em detrimento das obrigações.

    Os “rebeldes primitivos”, expressão emprestada do historiador marxista Erick Hobsbawm e adaptada ao contexto brasileiro, sufragados por intelectuais que abraçaram o pensamento do italiano “Luigi Ferrajoli, expresso na obra “Direito e Razão”, passaram a atuar em “terrae brasilis” em agressão à ordem estabelecida, ofendendo os membros da comunidade.

    Aqueles despossuídos de prata, ouro, títulos e educação especial, agredidos pelos rebeldes, passaram a preconizar a aplicação draconiana das normas penais, com sustentação no pensamento do germânico Gunther Jabobs, resumido no livro “Direito Penal do Inimigo”. Acrescente-se, ainda, a aplicação das Teorias Econômicas Neoliberais no Brasil, sem qualquer meditação crítica, formando uma massa instável e violenta de perdedores, fato previsto pelo economista norte-americano, Edward Luttwak no livro denominado “Turbocapitalismo”.

    Diante desse “inferno social” o Estado punitivo se enfraqueceu. A situação atingiu nível tão elevado de instabilidade, que obrigou o STF em sua missão de interpretação da Constituição e de pacificação social, lançar às masmorras, de forma mais expedita, os criminosos. Diante do atrito entre o pensamento do intelectual, preocupado com questões abstratas, e a dura realidade enfrentada pelo povo, principal vítima dos rebeldes, a Democracia soçobra.

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  2. Inteligente e bem escrito. Concordo inteiramente! PR

    Como retribuiremos pois ao Senhor tudo o que Ele nos deu? Ele é tão bom, que nada pede em compensação por suas graças; contenta-Se em ser amado. São Basílio

    Tudo está nas mãos de Deus! Não poderia estar em melhores mãos! Santa Teresinha

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