Perdão pelas lágrimas


Acho que foi o poeta maranhense Coelho Neto quem escreveu que “ser mãe é padecer no Paraíso”. Reproduzo alguns de seus versos:

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Algumas mães, porém, despencam abruptamente do paraíso para o abismo da dor e do sofrimento. E padecem ainda mais. Há alguns dias, os jornais noticiaram que uma mãe atropelou e matou a filha dentro de uma garagem em Campos do Jordão, no interior de São Paulo. A motorista não percebeu que a garotinha de 4 anos e sua própria mãe (avó materna da criança) estavam atrás do carro, quando deu marcha a ré, acabando por esmagá-las contra a parede. A menina morreu. Para piorar as coisas, a atropeladora estava grávida e não tinha carteira de habilitação. Um desconsolo sem tamanho.

O Direito Penal não é insensível a isto.

Esta é uma daquelas tragédias que provocam horror e piedade. Uma mãe matou a própria filha por acidente. Trata-se de um homicidio culposo, aquele cometido sem intenção, mas por imprudência, negligência ou imperícia. São acidentes que acontecem por desatenção, excesso de confiança, ou inabilidade técnica. Como não há intenção de matar (dolo), as penas são mais baixas. No caso do homicidio culposo, a sanção fica entre 1 e 3 anos de detenção (art. 121, §3º, do Código Penal). Quando praticado ao volante de veículo automotor, a pena é de 2 a 4 anos (art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro).

Matar o próprio filho no carro ou com o carro são ocorrências que tenebrosamente têm-se repetido nestes nossos dias apressados e estressantes. Em 1991, a atriz Christiane Torloni passou pelo grande pesar de matar seu filho de 12 anos ao dar ré em seu veículo na garagem de casa e colhê-lo fatalmente. Nos útimos anos, a imprensa noticiou vários casos de pais que esqueceram seus filhos bebês em cadeirinhas dentro de veiculos e foram trabalhar. As criancas morreram por asfixia ou desidratação.

A pena para estes crimes já é a própria perda. Não se perde apenas o filho querido; perde-se também a paz; perde-se a harmonia do lar. Como suportar algo assim?

Diante de dores tão atrozes e de feridas tão profundas, sabiamente a lei penal se retira. Embora haja crime, o juiz pode deixar de aplicar a pena e conceder perdão judicial ao pai ou mãe causador da morte, após o devido processo legal. Haverá um inquérito policial, e o Ministério Público fará acusação criminal (a chamada denúncia). Só então, poderá vir o perdão judicial.

Diz o art. 121, §5º, do CP, que, “na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária“. O perdão é concedido por ocasião da sentença final (art. 120 do CP). Após a reforma processual de 2008, o instituto é admissível na fase da absolvição sumária (art. 397, IV, CPP, c/c o art. 107, IX, do CP), portanto, logo no início do processo penal.

Há quem discuta se o perdão judicial se aplicaria aos crimes de homicídio culposo no trânsito. Para mim, não há dúvida que sim. Embora o perdão judicial esteja situado na Parte Especial do Código Penal, a regra é de cunho geral, aplicando-se, por motivos de política criminal, a todo e qualquer homicídio culposo, previsto no CP ou em leis especiais. Afinal, o perdão, como causa extintitva da punibilidade, está listado no art. 107, inciso IX, do CP.

Ademais, o art. 300 do CTB, que foi vetado pelo presidente da República, também previa o perdão para o homicídio culposo no trânsito. Porém, o artigo foi rejeitado porque era menos abrangente que a regra do art. 121, §5º, do CP. Eis as razões do veto:O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo 129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente.”

Mesmo cabível, a solução desses dramas pela concessão do perdão judicial é uma saída ainda muito sofrida e morosa. Em tais situações, em que claramente se vê apenas a culpa (e não o dolo) do pai ou da mãe e sendo a perda uma sanção mais tenebrosa do que a pior das cadeias (como uma prisão perpétua no cárcere mental do remorso), o ideal é que o Ministério Público sequer denuncie o genitor(a). Presentes provas seguras do ocorrido, o arquivamento puro e simples do caso é a saída mais justa e humana. Não é preciso o direito criminal aqui. Quando clara a prova, uma ação penal é indesejável e pode ser uma empreitada cruel, esta sim violadora da dignidade da pessoa humana. Para o pai ou mãe, que é vítima e autor, basta o seu próprio luto; já é demais a sua própria dor.

8 comentários

  1. Matar o próprio filho sem intenção, só sabe a pessoa que passar por essa situação.

    O pai e a mãe são capazes de entrar na jaula de um urso, tigre para salvar a vida do filho, pular no mar arriscando ser devorado por um tubarão.

    Imagina o pai e a mãe que é capaz de dar a própria vida para salvar a vida de um filho, por infelicidade do destino. EX.: abrir uma janela sem atenção devida e matar o próprio filho. Ex.: dar um ré no carro e atingir o próprio filho.

    Deve ser uma dor insupotável.

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  2. Parabéns Vladimir pela brilhante análise, e também pelas opiniões de seus visitantes, que foram bastante esclarecedoras.

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  3. Amigo Vlad,

    Quem ama mata? As vezes mata. Intencionalmente ou não, querendo ou não alguém perdeu a vida e vida só se tem uma, quando acaba não é igual a um carro por exemplo que sempre virá outro para ocupar seu lugar.
    Terrível, muito terrível. Parece que volante de carro tem tambor, agulha, cano ou pente e gatilho e mata mais que peixeira de baiano.
    Os veículos sempre dão um jeitinho de tirar a vida de alguém, seja por quaisquer motivos, imperícia ou não, ele sempre mata. O homem cria na sua inocente cabeça a sensação de poder quando encima de rodas está e aí vêm as consequências.
    O nosso país parece que esqueceu do que fizera no passado e do que fazem nossos vizinhos norte americanos, os europeus e asiáticos. Eles investiram e investem maciçamente em trilhos enquanto que aqui haja carro nas ruas, garagens etc…, aqui na minha cidade tenho a impressão de que tem mais carro que gente e o pior é que muitos parece que pensam que dirigir é só acelerar e virar o volante vez por outra ou pisar no freio bruscamente.Eu por exemplo nunca pisei num trem nem mesmo para ver como funciona. porém, meu pai sempre falava das suas viagens nestas máquinas. Agora mesmo minha filha mais nova perdeu dois amigos num terrível acidente no nosso tão famoso anel da morte (Avenida Contorno), todos universitários, com idades entre 19 e 24 anos e que vez por outra frequentavam a nossa humilde casa. Muita dor, muito pesar, más são tragédias anunciadas.
    Hoje tira-se habilitação com a maior facilidade, sem falar naqueles que esquecem que mesmo tendo habilitação tem que saber dirigir, hoje muito difícil é a casa que não tem o seu ou os seus veículos de estimação que muitas vezes só servem para tomar espaço e causar tragédias.
    O país precisa investir em transporte de massa como fazem amerivanos, europeus e o resto do mundo, temos que tirar da mão das pessoas sem pericia os volantes assassinos, temos que tirar das ruas os carros assassinos para que não precisemos ocupar tanto a justiça com coisas que terminam por atrapalhar aquelas situações onde é mesmo indispensável sua crava forte, para que a saúde pública respire aliviada e o erário público descance um pouco e para que abram-se bem menos covas onde sepultam-se sonhos daqueles que como eu um dia via em tudo felicidade ou mesmo aqueles que mesmo tendo certa idade ainda sonham com flores que não são aquelas que levamos para os mortos no Adeus Final.
    Abaixo poluidores assassinos e viva as bikes.

    Do amigo,

    Jorge Silva

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  4. Incrível , mestre, como tu trabalhaste a intertextualidade neste texto, trazendo o poema de Coelho Neto, para aludir e sensibilizar o teu público leitor sobre o tema, preparando-o para uma reflexão acerca de um acontecimento tão sinistro: uma mãe cometer homicídio contra os próprios entes queridos.
    As considerações trazidas no contexto de tal julgamento são bem pertinentes, quando dizes que a pior pena já está paga pela própria dor da mãe que causou , sem querer, a perda do próprio filho (a). É bom saber que ,na Justiça , há situações em que o perdão judicial pode ser aplicado.
    Que bom saber… Gostei da memorável lembrança a Coelho Neto, poeta muito rebatido por alguns escritores do modernismo, após semana de Arte Moderna.
    Parabéns

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  5. Caro Vladimir,
    Concordo com você sobre a possibilidade de arquivar o inquérito policial, quando estiver patente se tratar de caso em que o perdão será fatalmente aplicado ao final do processo. Já tive alguns casos desses, requeri o arquivamento, que foi homologado pelo juiz. Realmente, não faz sentido fazer o autor passar por todo o processo, revivendo a tragédia que, por si, já é mais do que a pena. Quanto mais porque a jurisprudência dominante entende que a decisão que concede o perdão judicial tem natureza meramente declaratória de extinção da punibilidade. Em outras palavras, não produz os efeitos da sentença condenatória; não traz nenhum resultado útil juridicamente. Por isso, entendo que, nesses casos, o arquivamento é possível, por carência de ação (falta de interesse processual). Além de ser juridicamente defensável, a solução é, sem dúvida, mais humana.
    Um abraço.
    José Mário

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  6. Vlad, embora vc não tenha abordado diretamente a questão, pareceu-me que vc considerou o fato de Campos do Jordão como tipificado no art. 302 do CTB. Porém, com a devida vênia, tal posicionamento não se mostra correto, pois o fato tipifica-se mesmo é no homicídio culposo do CP, haja vista que “garagem” não se inclui no conceito de “via terrestre”. Dê uma conferida nos artigos 1º, caput e 2º do CTB. Abraços, Jeca Tatu.

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    • Não entrei no tema da tipificação, por falta de mais detalhes sobre o caso. O foco era só o perdão judicial, que considero cabível em qualquer homicídio culposo, no trânsito ou não.
      Mas sua observação é correta.

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