A abusividade das técnicas “avançadas” de interrogatório: o caso Zubaydah


investigação criminal deve começar com um esforço criativo: diante de fatos ainda confusos, o investigador formula hipóteses abdutivas — “a melhor explicação possível”, nas palavras de Charles Peirce. Essa etapa criativa é vital: sem ela não há descoberta. O problema surge quando a mente do investigador, ávida por soluções eficientes e pressionada por tempo, imprensa e estatísticas, transforma a primeira hipótese em verdade incontestável. Entra em cena o viés de confirmação, provavelmente um dos mais insidiosos dos vícios cognitivos: passamos a buscar apenas as peças que encaixam no quebra-cabeça já desenhado e a descartar silenciosamente tudo o que não combina com a figura imaginada.

A lição de Ivar Fahsing mostra que até detetives veteranos — justamente aqueles em quem mais confiamos — tropeçam no mesmo ponto de virada: basta prender ou indiciar alguém para que a mentalidade mude de “quem pode ter cometido o crime?” para “como provo que foi este o autor?”. A investigação passa a ser centrada no suspeito, não no crime, e o leque de hipóteses se fecha antes de a prova estar completa. Outros autores reforçam o diagnóstico: confirmamos, ancoramos, enquadramos e nos agarramos à primeira narrativa convincente. Resultado? “Visão em túnel”, com seus riscos de erro judiciário, de impunidade para quem realmente cometeu o delito, e de frustração para as vítimas.

No afã de resolver o quebra-cabeças processual, especialmente em crimes graves, o Estado pode ver-se tentado a lançar mão de ferramentas abusivas. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos aprovaram o emprego de “harsh interrogation techniques” ou “enhanced interrogation techniques“. Essas técnicas de interrogatório de suspeitos foram largamente aplicadas por autoridades norte-americanas na “guerra global contra o terror”. Nada de novo: o nome sofisticado ecoa o método Verschärfte Vernehmung da Gestapo a partir de 1937. Em linguagem jurídica clara, trata-se de tortura, vedada pela Convenção da ONU de 1984 e proibida de modo absoluto como norma de jus cogens. O art. 15 da Convenção é cristalino: qualquer confissão extraída sob tortura deve ser excluída; seu único destino processual legítimo é servir de prova contra o torturador.

A Corte Europeia de Direitos Humanos reafirmou esse princípio no caso Usayn (Abu Zubaydah) v. Polônia (2014). A operação de um centro de detenção clandestino da Central Intelligence Agency (CIA) na base de Stare Kiejkuty, na Polônia, violou a proibição absoluta da tortura. As “provas” dali oriundas não poderiam sustentar nenhuma acusação séria. Além da ilicitude per se, confissões arrancadas pelo medo nunca são confiáveis — tortura não produz verdade, mas apenas aquilo que o torturador quer ouvir.

Entre 2002 e 2003, o palestino Abu Zubaydah foi mantido em tal centro, um dos chamados “black sites” dos EUA no exterior, violando várias garantias da Convenção Europeia. Suspeita de pertencer à Al Qaeda, a vítima foi mantida incomunicável, submetida a técnicas que a Corte considerou tortura (confinamento em caixa, posições de estresse, simulação de afogamento, privação de sono, ruído extremo) antes de ser transferido para outros locais secretos e, por fim, para Guantánamo. Em função disso, a Corte declarou que a Polônia:

  • Violou o artigo 3º da Convenção Europeia (proibição absoluta de tortura e tratamento desumano), tanto no aspecto material — por permitir e participar dos maus-tratos — quanto no processual, por não investigar efetivamente os fatos.
  • Violou o artigo 5º (direito à liberdade) ao cooperar na detenção indefinida e secreta da vítima.
  • Violou o artigo 8º (vida privada e familiar), pois o regime de incomunicabilidade impediu qualquer contato com familiares ou advogado.
  • Violou o artigo 13, porque não ofereceu à vítima uma via interna eficaz para denunciar as violações por ela sofridas.

Quanto à baixa fiabilidade de provas obtidas mediante tortura, o TEDH asseverou:

554. (…) Statements obtained in violation of Article 3 are intrinsically unreliable. Indeed, experience has all too often shown that the victim of torture will say anything – true or not – as the shortest method of freeing himself from the torment of torture (see Söylemez v. Turkey, no. 46661/99, § 122, 21 September 2006) and Othman (Abu Qatada), cited above, § 264). The admission of torture evidence is manifestly contrary, not just to the provisions of Article 6, but to the most basic international standards of a fair trial. It would make the whole trial not only immoral and illegal, but also entirely unreliable in its outcome. It would, therefore, be a flagrant denial of justice if such evidence were admitted in a criminal trial.

É preciso, pois, repudiar métodos coercitivos: se a prova nasce contaminada, nada a purifica — nem a gravidade do crime, nem a ansiedade coletiva por justiça rápida.

O Tribunal determinou ainda que a Polônica conduzisse uma investigação criminal séria e transparente, visando a apurar responsabilidade criminal de agentes poloneses e norte-americanos.

480.  The investigation into serious allegations of ill-treatment must be both prompt and thorough. That means that the authorities must act of their own motion once the matter has come to their attention and must always make a serious attempt to find out what happened and should not rely on hasty or ill-founded conclusions to close their investigation or to use as the basis of their decisions. They must take all reasonable steps available to them to secure the evidence concerning the incident, including, inter alia, eyewitness testimony and forensic evidence. Any deficiency in the investigation which undermines its ability to establish the cause of injuries or the identity of the persons responsible will risk falling foul of this standard. The investigation should be independent of the executive. Independence of the investigation implies not only the absence of a hierarchical or institutional connection, but also independence in practical terms. Furthermore, the victim should be able to participate effectively in the investigation in one form or another.

No entanto, a persecução criminal iniciada na Polônia não foi bem-sucedida no quesito probatório, por falta de cooperação internacional dos Estados Unidos, por alegações de segredo de Estado (§§ 143 e 147 da sentença). Duas pessoas envolvidas na prática de tortura residentes nos EUA não puderam ser inquiridas. Num procedimento paralelo, iniciado pela vítima, United States v. Zubaydah, 595 U.S. ___ (2022), por 7 votos a 2, a Suprema Corte dos Estados Unidos assegurou ao governo do país o direito de impedir que esses dois empregados terceirizados prestassem informações que poderiam esclarecer os fatos ocorridos no território polonês. Prevaleceu o argumento da Casa Branca de que as informações relacionadas à existência e operação de um black site na Polônia estavam cobertas por segredo de Estado (State-secrets privilege).

2 comentários

  1. Como sempre, textos relevantes e absolutamente gostosos de ler, dr. Vladmir.
    Tendo em vista que no caso Irlandês, que tratou das five techniques, métodos aparentemente bastante semelhantes aos narrados aqui, o TEDH entendeu que não teria havido tortura, mas tratamento desumano ou degradante, fiquei na dúvida se decisão do caso Zubaydah teria significado um novo entendimento do TEDH sobre o assunto.
    Obrigado!

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário