O acesso a dados de celulares após apreensões policiais


A expansão das tecnologias digitais transformou a forma como o Estado obtém e maneja a prova para fins penais.

O celular, em particular, tornou-se uma verdadeira extensão da personalidade e do domicílio do indivíduo, contendo não apenas comunicações ordinárias, mas também rastros de comportamento, dados bancários, registros de localização, informações de saúde e arquivos íntimos.

Diante do volume e da variedade de dados pessoais em jogo, os tribunais tiveram de lidar com um evento recorrente na prática policial: o acesso ilícito a uma prova licitamente torna essa prova contaminada? E, nesse caso, seria possível um novo acesso autorizado judicialmente, desde que preservada a fonte da prova?

No dia-a-dia da atividade policial, ocorrem a) apreensões de celulares quando seu portador está em flagrante; b) apreensões de aparelhos abandonados em cenas de crimes; e c) apreensões de smartphones em cumprimento de mandados de busca e apreensão.

A última hipótese (c) não oferece dificuldade, porque presente prévia autorização judicial, que permitirá à Polícia apreender o aparelho e, na sequência, acessar seu conteúdo. É o que de regra acontece quando um juiz emite um mandado de busca e apreensão, cuja execução terá por fim permitir o exame pericial dos dados contidos no celular.

Já as hipóteses (a) e (b) oferecem alguma dificuldade interpretativa.

O ponto de partida é o reconhecimento de que o conteúdo armazenado em dispositivos eletrônicos goza da mesma proteção constitucional conferida às comunicações privadas e à intimidade, nos termos do artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal, quanto ao requisito primário: o controle judicial ex ante.

A apreensão do aparelho, ainda que em situação de flagrante, não autoriza por si só a devassa de seu conteúdo. Em função da transformação tecnológica e do advento do Marco Civil da Internet (MCI), da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da Emenda 115, de 2022, no julgamento do ARE 1.042.075/SE (Tema 977 da repercussão geral), o Supremo Tribunal Federal superou o entendimento firmado no HC 91.867/PA e passou a compreender que o acesso a dados contidos em celulares ou dispositivos eletrônicos apreendidos, ainda que em flagrante, exige autorização judicial específica.

O STF entendeu que, quando:

(…) Examinados em conjunto, dados e metadados revelam um espectro enorme de dados pessoais, o que torna possível uma investigação completa e – diga-se de passagem – muito eficiente acerca das preferências pessoais, das relações familiares e interpessoais, dos hábitos de vida, de trabalho e de consumo e, em última análise, da forma de pensar, de agir e de decidir de determinado indivíduo. Isso sem falar, obviamente, das facilidades que o acesso proporciona para a intrusão indevida e “para o futuro”, a partir da instalação de softwares “espiões”.

Deste modo, para o STF:

(…) A possibilidade de se acessar, por meio de aparelhos celulares, bem mais que metadados relativos à comunicação telefônica desloca a discussão travada nos autos para a questão da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (CF/88, art. 5º, inciso X), do direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais (CF/88, art. 5º, inciso LXXIX, introduzido pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022), e do direito à autodeterminação informacional, os quais conferem proteção jurídica especial e diferenciada aos dados pessoais armazenados e justificam a superação do entendimento firmado no HC nº 91.867/PA para se construir uma solução mais condizente com a nova realidade.

Em função dessa reconfiguração normativa, decorrente das mudanças tecnológicas e da difusão das tecnologias da comunicação, fixou-se uma tese de repercussão geral que divide o tema em duas dimensões: a) as apreensões em situações fortuitas; b) as apreensões em flagrante.

A premissa básica é a de que, em tais hipóteses, a Polícia pode apreender os aparelhos ou dispositivos, nos termos do art. 6º do CPP, não havendo cláusula de reserva de jurisdição a observar para a coleta da fonte da prova e sua preservação.

Para ter acesso ao conteúdo de celular encontrado fortuitamente, também não há necessidade de autorização judicial prévia, desde que a incursão nos dados seja limitada à necessidade de elucidar a autoria do fato ou a propriedade do aparelho. Disse o STF no Tema 977:

Nas hipóteses de encontro fortuito de aparelho celular, o acesso aos respectivos dados para o fim exclusivo de se esclarecer a autoria do fato supostamente criminoso, ou quem seja o proprietário do aparelho, não depende de consentimento ou de prévia decisão judicial, desde que justificada posteriormente a adoção da medida.(STF, ARE 1.042.075, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 25-06-2025).

Porém, para acessar o aparelho apreendido em situação de flagrante, “o acesso aos respectivos dados está condicionado ao consentimento expresso e livre do titular dos dados ou de prévia decisão judicial (cf. art. 7º, inciso III, e art. 10, § 2º, da Lei nº 12.965/14) que justifique, com base em elementos concretos, a proporcionalidade da medida e delimite sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, à proteção dos dados pessoais e à autodeterminação informacional, inclusive nos meios digitais (art. 5º, incisos X e LXXIX, da CRFB/88)”(STF, ARE 1.042.075, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 25-06-2025).

Seja num caso ou no outro, cabe à autoridade policial adotar as providências necessárias, nos termos do CPP, “para a preservação dos dados e metadados contidos no aparelho celular apreendido antes da autorização judicial, justificando posteriormente a adoção da medida”. (STF, ARE 1.042.075, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 25-06-2025).

Desse modo, ainda que a prova seja originariamente lícita, como, por exemplo, oriunda de um aparelho celular regularmente apreendido, o acesso não autorizado ao seu conteúdo viola direitos fundamentais e transforma o resultado obtido em prova ilícita por derivação.

Trata-se da aplicação da “teoria dos frutos da árvore envenenada”, segundo a qual a contaminação de um meio de prova atinge todos os elementos dele extraídos e os derivados. Essa vedação impede que o Estado se beneficie de atos que violem garantias constitucionais, mesmo quando o objeto material da prova tenha origem legítima.

Contudo, essa ilicitude não é necessariamente definitiva. Uma prova eventualmente maculada pode ser novamente produzida, desde que a nova colheita não dependa do ato ilícito pretérito e seja conduzida dentro da legalidade. Nessa hipótese, a autoridade policial ou o Ministério Público podem requerer judicialmente novo acesso ao conteúdo do aparelho, para nova perícia, desde que se tenha garantido a preservação da fonte original da prova e o registro detalhado de sua cadeia de custódia.

Essa sistematização demonstra que a licitude da prova digital não depende apenas da origem do objeto (o aparelho apreendido), mas também da forma como seu conteúdo é acessado e tratado pelas autoridades de persecução.

Em termos principiológicos, a exigência de autorização judicial reforça o papel do Judiciário no controle das investigações criminais e na garantia de direitos, prevenindo abusos e garantindo que o Estado, no exercício legítimo do poder punitivo, atue dentro das fronteiras do direito. A proteção da intimidade e da autodeterminação informativa não é obstáculo à persecução penal, mas condição de legitimidade da própria prova.

O STJ também tem discutido o assunto. No AgRg no HC 903505/SP, julgado em 19/08/2025, pela 5ª Turma, na relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, a Corte definiu que é lícito o acesso a conteúdo de celular desbloqueado encontrado em cena de crime:

Não se constata nulidade no acesso pelos investigadores a dados do aparelho celular encontrado desbloqueado na agência bancária objeto de furto por funcionários no dia seguinte ao crime, notadamente quando foram posteriormente autorizadas judicialmente interceptações telefônicas com base nos dados cadastrais do aparelho, a fim de elucidar a autoria delitiva. A situação retratada distingue-se do acesso direto por policiais a celular pertencente a autor de um crime em flagrante delito, por não haver expectativa de proteção à privacidade do celular deixado desbloqueado na cena do crime, em local de acesso público, afastando a nulidade arguida.

No particular, também o STF entende que o acesso a dados de celular abandonado pode ser feito sem prévia autorização judicial. Foi esta a posição da Corte no já mencionado Tema 977.

Obviamente, se o dono do aparelho ou seu usuário autorizado permitir, voluntariamente, o acesso da Polícia ao conteúdo do dispositivo apreendido, também será válida a prova digital assim obtida, sendo desnecessária a autorização judicial.

A distinção prática entre o acesso ilícito e o acesso ilícito pode ser sintetizada no seguinte quadro:

SituaçãoForma de obtenção da provaConsequência
Acesso ao conteúdo com autorização judicialLícitaProva válida
Acesso ao conteúdo com autorização pessoalLícitaProva válida
Acesso ao conteúdo sem autorização judicial nem pessoalIlícitaProva ilícita por derivação
Novo acesso com autorização judicial ou pessoal, se preservada a fonteLícita Prova válida

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