A centralidade da investigação criminal no processo penal contemporâneo


Do ponto de vista da acumulação do acervo probatório, qual a principal etapa da persecução criminal? O começo, o fim ou o meio?

Chega a ser um senso comum entre investigadores e membros do Ministério Público – uma percepção decorrente da experiência em casos concretos – que houve um deslocamento do centro da persecução criminal da fase da instrução judicial para a etapa da investigação criminal. Vimos nos últimos anos a consolidação de um fenômeno de judicialização precoce da atividade de persecução penal, em que a fase investigatória pré-processual passou a assumir um protagonismo que antes era reservado à instrução em juízo.

A realocação da atividade probatória do processo para a investigação é resultado de múltiplos fatores, sendo o mais relevante a necessidade de antecipar a colheita de provas perecíveis e irrepetíveis e a crescente complexidade dos delitos (notadamente os crimes econômicos, a corrupção, a cibercriminalidade e a criminalidade organizada), que exigem diligências técnicas, mediante o intenso emprego de meios especiais de obtenção de provas, e medidas de cooperação jurídica internacional.

Quanto mais complexa a criminalidade sob apuração, maiores serão as iniciativas de consolidação de um conjunto probatório robusto na fase da investigação criminal, de modo a antecipar a capacidade do Estado de obter uma condenação, quando deflagrada a ação penal. Embora essa estratégia muitas vezes não seja conscientemente delineada, há um esforço precoce para alcançar um standard probatório de elevada suficiência antes mesmo da deflagração da ação penal.

Esse fenômeno tem como consequência o realce do papel do juiz criminal – sobretudo do juiz das garantias – na supervisão da persecução anteprocessual. Grande parte das provas e dos elementos informativos úteis à tese da acusação serão colhidos já ali na fase do inquérito policial ou do procedimento de investigação criminal (PIC). De fato, o juiz não estará alijado da atividade probatória; esta é apenas antecipada, com impacto também no direito ao contraditório.

Entre os fundamentos dessa assertiva, destaca-se o papel cada vez mais ativo do Ministério Público e da polícia judiciária na produção de provas e elementos informativos durante o inquérito policial ou investigações preliminares equivalentes. Isso se intensifica com o uso de meios especiais de obtenção de prova, como escutas ambientais, interceptações telefônicas, acordos de colaboração premiada, infiltrações e quebras de sigilo bancário, fiscal, telemático e de dados. Muitas dessas medidas exigirão autorização judicial, num contexto de contraditório diferido ou postergado.

A intervenção judicial precoce – notadamente nas matérias clausuladas como de reserva jurisdicional – traz à lume a questão do robustecimento de um pré-contraditório ainda na fase da investigação criminal, sempre que as medidas decretadas não forem veladas, ou seja, de execução sigilosa. É que, concluída a diligência, em regra, a defesa terá acesso aos elementos informativos já documentados, nos termos da Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal. Tais questões deslocam o eixo nuclear do processo para esta etapa, viabilizando desde então o questionamento de provas, quanto à legalidade e sua admissibilidade, levando a um aumento exponencial do emprego de habeas corpus para questionar a atividade probatória do Estado. A infraestrutura recursal da legislação processual penal dos anos 1940 não está preparada para esses desafios de eficiência e accountability.

Além disso, decisões judiciais de grande impacto, como a homologação de acordos de colaboração premiada, adotadas na fase anterior à propositura da ação penal, e a possibilidade de compartilhamento de provas colhidas em acordos de leniência e em situações de colaboração com autoridades administrativas (como o CADE, a CVM, a Receita Federal, a CGU e seus homólogos estaduais), reforçam a centralidade da fase pré-processual.

No geral, esse fenômeno impacta diretamente a dinâmica da persecução penal ao impor à Polícia e ao MP a busca de maior eficiência nas investigações, antecipando a formação de um conjunto probatório robusto, muitas vezes apto a subsidiar o oferecimento da denúncia com chances muito reais de condenação. Em contrapartida, acarreta sérios desafios às garantias fundamentais do investigado.

Há uma espécie de inversão das etapas processuais, com a produção de provas antes da formalização da acusação pelo Ministério Público, pondo em questão o direito ao contraditório efetivo. Como regra, esta garantia não incide na fase investigatória (art. 5º, LV, CF) e seu exercício torna-se complexo porque ainda não delimitada a acusação criminal. A denúncia é ainda um evento futuro.

Ademais, na perspectiva defensiva, esse novo formato da persecução penal torna ainda mais importante a figura do juiz das garantias, como elemento de filtragem e controle das provas produzidas mediante contraditório antecipado. Há o risco de superfetação de competências do magistrado das garantias, o que pode transformá-lo num juiz de instrução – figura rechaçada pelo STF em 2004 no julgamento da ADI 1570.

Fenômeno correspondente também marca o surgimento de investigações patrimoniais autônomas, que serão determinantes para decisões judiciais cautelares e, eventualmente, para o confisco patrimonial. Quando temos em conta a perda alargada, introduzida no Brasil em 2019, o deslocamento nuclear passou a ter força de lei, pois o art. 91-A, §3º, do Código Penal exige que o Ministério Público, desde a denúncia, indique expressamente a diferença patrimonial “apurada”. Como não poderia deixar de ser, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) captou esse câmbio de centralidade e regulou o procedimento de investigação patrimonial (PIP), nos arts. 14 e 14-A da Resolução 181/2017, regulando o esforço probatório do Parquet para o rastreamento de ativos, como atividade prévia à instauração da ação penal. Pari passu, seu regulamento começa a aparecer em atos do Poder Executivo, como a Portaria 870/2025, do Ministério da Justiça, que instituiu a Política Nacional de Recuperação de Ativos.

O fenômeno de deslocação procedimental quanto à recuperação de ativos acarreta a antecipação das medidas de constrição patrimonial. Como a investigação patrimonial ganhou autonomia instrumental (relativa) diante da investigação criminal (autoria/materialidade), aumenta a possibilidade de que medidas cautelares reais se prolonguem no tempo desde a etapa anterior à denúncia, com efeitos negativos sobre o direito de propriedade.

Em suma, embora esse deslocamento fásico possa favorecer – e realmente favoreça – a eficiência da persecução penal, exige a construção de mecanismos eficazes de controle judicial pré-processual, a regulamentação legislativa dos procedimentos para aquisição da prova pré-constituída e a valorização da paridade de armas, inclusive com a delimitação precisa e por lei dos procedimentos de investigação defensiva.

O fato é que, cada vez mais, pouco se agrega aos autos em termos de conjunto probatório acusatório na etapa da instrução criminal. Os documentos que apoiam a tese do Ministério Público já estarão juntados e conferidos desde a investigação criminal. Em juízo, serão impugnados pela defesa. Poderão resistir como prova ou minados em sua credibilidade.

A prova testemunhal já estará sedimentada desde o momento inicial da formulação da acusação, correndo-se grande risco de que seja debilitada na fase judicial por esquecimento, por arrefecimento emocional ou por outros fenômenos da mente humana, quando os depoentes finalmente forem chamados a falar diante do juiz da instrução e julgamento. Isso sem falar no desaparecimento real ou meramente jurídico de testemunhas, que não comparecerão em juízo para depor, especialmente em casos de criminalidade organizada, o que deve exigir do legislador um tratamento especial para este tipo de depoimento, quem sabe com a antecipação do contraditório, tal como se prevê no parágrafo único do art. 19-A da Lei 9.807/1999.

De igual modo, a prova pericial não trará surpresas em juízo, na ótica do acusado. Esclarecimentos periciais podem ser úteis, em alguma medida, principalmente quanto a provas digitais, por exemplo. Em regra, nada ou quase nada se adicionará neste instante que já não se saiba de antemão, o que é consequência óbvia do dever de disclosure pleno do órgão de acusação.

Enfim, muito dificilmente algo novo, em termos probatórios pró-acusação, resultará da audiência de instrução. Como sempre, essa etapa tem-se mostrado promissora para a defesa, para a erosão do conjunto probatório da acusação, como consequência do contraditório, daquilo que, na visão de Hungria, era o “atrito do fuzil com a pederneira”. A atuação defensiva eficiente na instrução em juízo é que pode prover o plot twist, a reviravolta probatória, que desfaz a tese acusatória e, sem evitáveis acrobacias processuais, livra o réu da acusação criminal.

O Ministério Público terá grande êxito no processo se mantiver o acervo probatório amealhado na etapa anterior. Resistir ao túnel de vento do contraditório ou ao confronto do corredor polonês defensivo terá sido uma vitória, indicativa do cumprimento do dever de provar a acusação. Por isso, torna-se importante, para o MP, dar partida à persecução criminal com um standard de prova mais robusto, que seja capaz de passar, desde as etapas iniciais, por esse crivo de coerência, suficiência e densidade, garantindo-se o devido processo legal, o fair trial e decisões justas, para condenar ou para absolver.

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