Crimes no exterior são da Justiça Federal


Em mais uma decisão importante em tempos de intensas relações jurídicas internacionais, o STJ consolida sua interpretação do art. 109, incisos III, IV e X, da Constituição de 1988.

É da Justiça Federal a competência para julgar crime praticado por brasileiro inteiramente no exterior (crime extraterritorial). Esta hipótese não se confunde com a do inciso V do art. 109 da CF, que diz respeito aos crimes a distância (transnacionais), quando previstos em tratados.

O julgamento no Brasil de um crime cometido fora do País ocorre quando a persecução penal é transferida pelo Estado estrangeiro a nossa jurisdição, mediante pedido de cooperação internacional passiva, especialmente quando se trata de brasileiro inextraditável. A este tipo de pedido se dá o nome de transferência de procedimento criminal ou transferência de jurisdição.

A razão de ser da assunção de jurisdição sobre fato praticado no estrangeiro está no princípio aut dedere aut iudicare. Se não extradita, julga. Essa solução é viabilizada pela extraterritorialidade da lei penal brasileira nesta e noutras hipóteses previstas no art. 7º do Código Penal e em tratados de que o Brasil é parte.

Desde o caso do “Mago de Milão”, transferido da Itália a Salvador em 2013, venho defendendo doutrinariamente e em casos concretos que em tais situações a competência é federal.

Veja aqui as razões num post de fevereiro de 2018 sobre o caso Manoelzinho, brasileiro acusado de dois homicídios em território francês.

A decisão mais recente do STJ foi proferida pela 5ª Turma num caso da Austrália. Trata-se do RHC 110.733/RJ, min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/08/2020.

Este julgado confirma a posição inaugurada pelo STJ em 2018. Naquela ocasião, em votação unânime, num caso de Portugal, a 3ª Seção do STJ, sob a relatoria do Min. Ribeiro Dantas, assim decidiu:

CRIME PRATICADO NO EXTERIOR – COOPERAÇÃO INTERNACIONAL – INTERESSE DA UNIÃO – COMPETÊNCIA FEDERAL.

No conflito negativo de competência julgado em abril de 2018, divergiam o juiz federal de Governador Valadares (suscitado) e o juiz de Direito de Belo Horizonte (suscitante).

Firmou-se a competência do primeiro juízo, o suscitado. A decisão transitou em julgado:

“4. Compete à Justiça Federal o processamento e o julgamento da ação penal que versa sobre crime praticado no exterior, o qual tenha sido transferida para a jurisdição brasileira, por negativa de extradição, aplicável o art. 109, IV, da CF.”

(STJ, 3ª Seção, CC 154656 / MG, rel. min. Ribeiro Dantas, j. 25/04/2018)

Até o julgamento do CC 154.656/MG, vinha prevalecendo no STJ a tese da competência da Justiça Estadual.

Trata-se, portanto, de uma virada jurisprudencial, que deve observar o art. 88 do CPP, que tem regra de competência puramente territorial.

Em suma, em relação a crimes cometidos no todo ou em parte no exterior, ainda que tentados:

1. Crimes extraterritoriais (no exterior): competência federal;

2. Crimes transnacionais (a distância):

a) previsto em tratado do qual o Brasil é parte: competência federal;

b) não previsto em tratado: competência estadual;

c) previsto em tratado do qual o Brasil não é parte: competência estadual.

O STJ decidiu no mesmo sentido, pela competência federal, no RHC 88.432/AP, 6ª Turma, Min. Néfi Cordeiro, em 19/2/2019; no CC 167.770/ES, 3ª Seção, Min. Reynaldo Soares da Fonseca, em 27/11/2019; e no AgRg nos EDcl no RESP 1.821.912/MG, 6ª Turma, Min. Sebastião Reis, em 02/03/2020.

No julgado de 18 de agosto de 2020, o STJ assim ementou seu acórdão:

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO E OCULTAÇÃO DE CADÁVER PRATICADOS POR BRASILEIRO NATO NA AUSTRÁLIA. PRISÃO PREVENTIVA. MATÉ-RIA NÃO ANALISADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL X JUSTIÇA FEDERAL. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. RELAÇÕES COM ESTADOS ESTRANGEIROS E CUMPRIMENTO DE TRATADOS FIRMADOS (ARTS. 21, I E 84, VII E VIII, DA CF). INTERESSE DA UNIÃO. ART. 109, IV, DA CF. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. TRATADO DE EXTRADIÇÃO ENTRE O BRASIL E A AUSTRÁLIA. IMPOSSIBILIDADE DE EXTRADIÇÃO – ART. 5º, LI, DA CF. OBRIGAÇÃO DE SUBMETER O ACUSADO A JULGAMENTO. PRINCÍPIO DO AUT DEDERE AUT IUDICARE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. RECOMENDAÇÃO AO JUÍZO COMPETENTE DE PRIORIDADE NO REEXAME DO ALEGADO CONSTRANGIMENTO ILEGAL DA PRISÃO PREVENTIVA.

1. Em relação ao pleito de aguardar o julgamento em liberdade, da análise dos autos, verifica-se que a irresignação da defesa não foi obje-to de cognição pela Corte de origem, o que torna inviável a sua análise nesta sede, sob pena de incidir em indevida supressão de instância. Pre-cedentes.

2. Cabe à União, segundo dispõem os arts. 21, I, e 84, VII e VIII, da Carta da República, manter relações com estados estrangeiros e cumprir os tratados firmados, fixando-se a sua respon-sabilidade na persecutio criminis nas hipóteses de crimes praticados por brasileiros no exterior, na qual haja incidência da norma interna, no caso, o Direito Penal interno e não seja possível a extradição (art. 5º, LI, da CF).

3. No plano interno, em decorrência da repercussão das relações da União com estados estrangeiros e o cumprimento dos tratados internacionais firmados, surgem algumas regras de cooperação jurídica internacional passiva, como por exemplo, a competência desta Corte Superior para a homologação de sentenças estrangeiras e para a concessão de exequatur e a competência da Justiça Federal para a execução de rogatórias, a teor dos arts. 105 e 109, X, da CF. O procedi-mento de transferência de procedimento criminal deve ser considerado uma forma de cooperação passiva, equiparando-se às rogatórias quanto à atribuição e competência.

4. Aplicável, ao caso específico, o Decreto n. 2.010/1996, que incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro o Tratado de Extradição entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da Austrália, o qual estabelece que, na impossibilidade de extradição de nacional, há obrigação da parte requerida em submeter o acusado a julgamento perante a autoridade competente.

5. Tem-se a consagração do princípio do direito internacional aut dedere aut iudicare ou extraditare vel iudicare, o qual busca evitar a ausência de punição às pessoas que cometem crimes fora do país de sua nacionalidade.

6. Dessa forma, compete à Justiça Federal o julgamento da ação penal que versa sobre crime praticado no exterior por brasileiro que reingressa em território nacional, o qual tenha sido transferido para a jurisdição brasileira, pela impossibilidade de ex-tradição, aplicável, assim, o art. 109, IV, da CF.

7. Recurso em habeas corpus provido para declarar a competência do Juízo Federal da capital do Estado do Rio de Janeiro para o julgamento da ação penal. Recomenda-se ao Juízo competente prioridade no reexame do alegado constrangimento ilegal da prisão preventiva. (STJ, Recurso em Habeas Corpus 110.733/RJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18.8.2020).

Note-se porém que o STF tinha posição diversa. Nos dois únicos casos julgados pelo Supremo até 2019, o relator foi o min. Marco Aurélio.

A primeira decisão do STF veio no HC 105.461/SP, caso do Uruguai, de 29/03/2016; e a segunda deu-se no AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.175.638/PR, caso do Paraguai, julgado em 2/4/2019. Ambos os processos foram apreciados pela 1ª Turma. Neste último ficou vencido o min. Alexandre de Moraes, que também entendia pela competência federal.

As razões desse desse dissenso remontam à Era Vargas, como contei aqui.

No entanto, como vimos, no STJ, a 3ª Seção já consolidou seu entendimento pela competência federal. Ali, o tema foi pacificado no CC 154.656/MG (3ª Seção, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 25/04/2018) e também no CC 167.770/ES (3ª Seção, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 27/11/2019), entre outros julgados.

E o STF também seguiu a mesma trilha. Em 10 de junho de 2020, o ministro Alexandre de Moraes negou seguimento ao RE 1.270.585/MG, tendo a DPU como recorrente em favor de D.A.G.

O recorrente questionava a competência da Justiça Federal para julgá-lo por três homicídios e três ocultações de cadáver cometidos na região de Cascais, em Portugal, em 2016.

Após o crime, o suspeito, que é brasileiro nato, fugiu para o Brasil.

A DPU ingressou com agravo regimental e no dia 31/08/2020, no AgR no RE 1.270.585/MG, a 1ª Turma do STF manteve a competência federal para o julgamento dos delitos extraterritoriais, vencido o ministro Marco Aurélio. Os terríveis homicídios cometidos em Cascais, tendo como vítimas três cidadãs brasileiras emigrantes deverão ser submetidos ao tribunal do júri federal de Belo Horizonte. O MPF denunciou o réu em 2017 e a 11ª Vara Federal da capital mineira pronunciou-o no mesmo ano.

Com esta decisão, a 1ª Turma modificou sua posição anterior e se alinhou ao entendimento do STJ e do TRF, assim como do MPF, de que a competência para julgar crimes cometidos por brasileiros no exterior é da Justiça Federal.

Como visto, a posição anterior da 1ª Turma do STF, ora superada, foi inaugurada no HC 105.461/SP (rel. min. Marco Aurélio, j. em 29/03/2016), que passou à condição de vencido em 2020 e deixa a Corte em julho de 2021.

2 comentários

  1. Recentemente o Ministro Marco Aurélio Melo, no RE 1175638, em decisão monocrática de 22 de novembro de 2018, afastou o entendimento do STJ que, seguindo a linha do CC 154.656/MG), entendia ser competente a Justiça Federal para processar julgar homicídio praticado por brasileiro no exterior (Paraguai).
    A Procuradoria-Geral da República apresentou Agravo Regimental e caso foi incluído na pauta da 1ª Turma do STF para julgamento em 02/04/2019. Espero que seja dada atenção devida a esse tema pelos ministros.

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