Caso Manoelzinho: homicídios na França devem ir a júri federal em Macapá


Pouca gente se dá conta de que o Brasil faz fronteira com a Europa. Geografia complicada, eu sei, mas é verdade. Compartilhando mais de 700 km de linha fronteiriça com a Guiana Francesa, um departamento ultramarino (département d’outre-merda França, o Estado do Amapá mantém com a nação vizinha relações cada vez mais intensas, agora facilitadas pela inauguração da Ponte Binacional, aberta a circulação em março de 2017, para ligar o Oiapoque à cidade francesa de Saint-Georges-de-l’Oyapock.

Como não poderia ser diferente numa região coberta por densa floresta e cortada por rios inóspitos, a cooperação criminosa dos dois lados da fronteira também é promissora, o que faz surgir a necessidade de lançar mão de instrumentos de cooperação jurídica internacional para a luta contra associações ilícitas que operam naquela região.

Ainda deficiente, o marco jurídico-penal bilateral franco-brasileiro é formado por cinco textos principais:

Ainda não temos com a França um tratado de transferência de condenados nem um acordo de cooperação jurídica transfronteiriça.

No plano multilateral, Brasil e França estão unidos por uma série de acordos internacionais, como a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Palermo, 2000), a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Mérida, 2003), a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Viena, 1988), a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Paris, 1997) e uma dezena de tratados antiterrorismo e outros documentos pluripartites.

Os temas mais preocupantes da criminalidade naquela região, que se situa no Hemisfério Norte, ligam-se à extração ilegal de minérios, pesca marítima não autorizada, desmatamento, poluição ambiental e exploração de outros recursos naturais. Como consequência do negócio, os garimpos clandestinos, enfronhados na mata, movimentam outras indústrias criminosas, como o  contrabando, o tráfico de drogas, o tráfico internacional de armas e o tráfico de pessoas, notadamente para exploração sexual.

É essencial, assim, que as Polícias e os Ministérios Públicos dos dois lados da fronteira franco-brasileira busquem integrar-se, de modo a facilitar a circulação de dados de inteligência e provas, a captura de foragidos e a repatriação de pessoas condenadas e de vítimas de tráfico humano.


Manoel

A invasão da Guiana

Em entrevista ao saudoso jornalista Geneton Moraes Neto, o político pernambucano José Francisco de Moura Cavalcanti, que governou o antigo Território Federal do Amapá mais de cinquenta anos atrás, contou-lhe que em 1961 o presidente Jânio Quadros o convocou para uma missão alucinada: anexar a Guiana Francesa ao Brasil:

Jânio Quadros me disse : ‘Um país que dominar do Prata ao Caribe falará para o mundo!’

Nas pretensões de Jânio, deixaríamos de ser o País que vai do Oiapoque ao Chuí, para sermos um colosso continental que se estenderia da Colônia Sacramento – na antiga província Cisplatina, hoje República Oriental do Uruguai – até as praias esquecidas de Les Hattes, na foz do Rio Maroni, corpo fluvial que separa a Guiana Francesa do Suriname.

Como sabemos, Jânio Quadro renunciou em agosto de 1961, poucos dias depois desse delírio expansionista, e nunca invadiu a Guiana Francesa. Mas outro brasileiro invadiu o país vizinho e atacou suas forças militares. E isto se deu em 2012.

Manoel Moura Ferreira, conhecido por Manoelzinho, é um bandoleiro moderno. Se vivesse no sertão nordestino nas primeiras décadas do século XX, seria chamado de cangaceiro. Dizem que Manoelzinho formou um bando que aterrorizou as matas guianenses, coalhadas de garimpeiros que para lá acorrem em busca do sonho do ouro amarelo, extraído do inferno verde da Amazônia, muitas vezes ao custo do sangue vermelho de não poucas pessoas.

Com perplexidade e revolta as autoridades francesas reagiram aos ataques perpetrados por Manoelzinho e seu bando a forças militares e de segurança pública francesas, deslocadas à região de Dorlin, no meio da Guiana. Os militares e gendarmes emboscados haviam sido destacados para combater a mineração ilegal, que traz consigo uma fieira de outros crimes violentos e crueis contra pessoas e deixa um rastro de destruição nas matas derrubadas, no chão escavado a esmo e nos rios contaminados por mercúrio.

A série de atentados do grupo de Manoelzinho no Planalto das Guianas foi vista como uma declaração de “guerra”. Assim a descreveu o jornal Le Monde, em editorial de 10 de julho de 2012, intitulado “Garimpo de ouro na Guaina? declaração de guerra dos garimpeiros à França” (Orpaillage en Guyane: déclaration de guerre des Garimpeiros à la France). Transcrevo um trecho que bem retrata as tensões entre os dois países em função deste crime e da reiteração de condutas ilícitas praticadas por cidadãos brasileiros na floresta guianense:

Ce n’est donc pas simplement un problème d’ordre public, de lutte contre une immigration clandestine ou contre une certaine criminalité. C’est la défense des intérêts fondamentaux de la nation qui est remise en cause lorsque des groupes organisés traversent la frontière d’un Etat pour piller les ressources de son sous-sol de cette façon systématique et récurrente, avec une violence préméditée et dans le mépris le plus abject des forces de sécurité en place. Sur le terrain, les garimpeiros ont déclaré la guerre à l’Etat français. […].

Car à ce niveau d’enjeux, l’Etat brésilien doit être interpellé sur sa propre responsabilité dans l’évolution de la situation. La diplomatie n’empêche pas une mise en demeure faite au Brésil de contraindre ses ressortissants au respect de la force publique souveraine d’un Etat dans la défense de son territoire, de participer à cette lutte, comme de compenser ou réparer les pertes. La pauvreté du territoire de l’Amapa, voisin de la Guyane, ne justifie pas ce genre d’agression. Les sanctions doivent être revues et l’agression considérée comme un acte de guerre au regard de l’escalade observée au niveau de ces bandes armées incontrôlées, dotées désormais d’équipements militaires et déterminer à attaquer les forces de sécurité de l’Etat français en charge de la protection contre le pillage des ressources naturelles.

Os crimes do garimpo de Dorlin aceleraram a promulgação pelo Brasil do Acordo contra a Exploração Ilegal do Ouro em Zonas Protegidas ou de Interesse Patrimonial,  que fora firmado no Rio de Janeiro em 2008. Em 2014, finalmente o governo baixou o decreto presidencial que o pôs em vigor (Decreto 8.337/2014). Seu art. 4º obriga as Partes a implementar as medidas necessárias para a prevenção e repressão das seguintes atividades:

  • toda atividade de extração ilegal nas zonas protegidas ou de interesse patrimonial;
  • toda atividade de transporte, detenção, venda ou cessão de mercúrio efetuada sem autorização ou em violação das condições impostas pela legislação nacional;
  • toda atividade de comércio de ouro não transformado sem autorização, especialmente as atividades de venda e revenda.

Pelo tratado, os Estados Partes se comprometem a punir tais infrações com fundamento em suas leis e no contexto da cooperação judiciária bilateral em matéria penal, o que por si reclama a incidência do art. 109, incisos V e X, da Constituição, no que se refere à competência federal para a assistência internacional passiva:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

X – os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o “exequatur”, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização;


Os crimes do garimpo de Dorlin ou l’affaire Manoelzinho

Além de atentarem contra a vida de vários policiais (gendarmes) e militares do país vizinho, Manoelzinho, seu companheiro Ronaldo Silva Lima, o “Brabo”, e outros indivíduos são acusados das mortes de dois militares francesesSébastien Pissot e Stéphane Moralia. Os crimes ocorreram em junho de 2012, e esses dois réus brasileiros foram presos em Macapá em 2014, graças à cooperação entre os dois países.

Alega-se que Manoelzinho chefiava um bando de criminosos muito conhecido nos garimpos ilegais na região de Dorlin, município de Maripasoula, na Guiana Francesa. 

Assim o MPF descreveu a conduta dos réus na denúncia ofertada pelo procurador André Estima perante a Justiça Federal de Macapá:

“(…) No dia 27 de junho de 2012, por volta das 9h55min, na localidade de Dorlin, Município de Maripasoula, na Guiana Francesa (território ultramarino da República Francesa), os denunciados MANOEL e RONALDO, com vontade livre e consciente, tentaram matar Jacques HEIN, Michel JOLLY, Jean-Philippe GUILLET, Laurent CHAUVET, Vincent COROUGE, Ludovic ADEUX, com desígnios autônomos em relação a cada uma das vítimas e em concurso de agentes, sob a direção do denunciado MANOEL, cometendo esses crimes em circunstância de emboscada e de forma a dificultar a defesa dos ofendidos e para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade e a vantagem de outros crimes.

Mais tarde, no mesmo dia, por volta das 13h40min , os denunciados, com vontade livre e consciente, mataram Stéphane MORALIA e Sébastien PISSOT, com desígnios autônomos em relação a cada uma das vítimas e em concurso de agentes, sob a direção do denunciado MANOEL, cometendo esses crimes em circunstância de emboscada e de forma a dificultar a defesa dos ofendidos e para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade e a vantagem de outros crimes.

Nesse mesmo contexto de espaço e tempo, os denunciados tentaram matar Fletcher ROSENBERG, Vincent COROUGE, Raphael PERRIRAZ, Cyril MAZET, Fabrice CRUNCHANT, Alexis DER SARKISSIAN, Stéphane SICLAY, Laurent CHAUVET, Sébastien LEXCELLENT, Maxime AHAMADA, Bérengére BRUNETTI, Hervé FLAMAND, Licinio PINHEIRO, Ludovic ADEUX, Guillaume CUNY, Sébastien LANSON, com desígnios autônomos em relação a cada uma das vítimas e em concurso de agentes sob a direção do denunciado MANOEL, cometendo esses crimes em circunstância de emboscada e de forma a dificultar a defesa dos ofendidos e para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade e a vantagem de outros crimes.

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Cerimônia em homenagem aos militares mortos em Dorlin, na Guiana, em 2012. (AFP)

Diante da morte de dois militares, o caso teve grande repercussão na França, que passou a exigir providências do Brasil. Enquanto o pedido de cooperação passiva tramitava por aqui, pelo menos dois processos criminais tiveram lugar na França. Assim, em outubro de 2016, Manoelzinho e seus cúmplices foram julgados pelo tribunal (cour d’assises) da Martinica, no Caribe, pelas mortes de Sébastien Pissot e Stéphane Moralia. 

Por se tratar de crimes praticados por uma organização criminosa, o caso foi confiado à Juridiction Inter-Régionale Spécialisée (JIRS) en matière de crime organisé, com sede em Fort de France, que tem jurisdição sobre as Antilhas e a Guiana. Há na França outros sete juízos especializados em matéria de criminalidade organizada deste tipo, sediados em Paris, Lyon, Marseille, Lille, Rennes, Bordeaux e Nancy.

As JIRS foram criadas em 2004, pela Lei de 9 de março (Loi n° 2004-204 du 9 mars 2004 portant adaptation de la justice aux évolutions de la criminalité), que alterou o Código de Processo Penal francês, para prever uma competência territorial expandida em função da matéria e regular uma série de meios especiais de obtenção de provas:

Art. 706-75. – La compétence territoriale d’un tribunal de grande instance et d’une cour d’assises peut être étendue au ressort d’une ou plusieurs cours d’appel pour l’enquête, la poursuite, l’instruction et le jugement des crimes et délits entrant dans le champ d’application des articles 706-73, à l’exception du 11°, ou 706-74, dans les affaires qui sont ou apparaîtraient d’une grande complexité.
« Cette compétence s’étend aux infractions connexes.
« Un décret fixe la liste et le ressort de ces juridictions, qui comprennent une section du parquet et des formations d’instruction et de jugement spécialisées pour connaître de ces infractions.

O julgamento de Manoelzinho em Fort de France resultou em sua condenação a prisão perpétua. Foi a segunda condenação de nosso personagem a prisão por toda a vida, já que Manoelzinho foi julgado por outros crimes, em janeiro de 2016, no tribunal de Caiena.

As condenações são, todavia, praticamente ineficazes. Como Manoelzinho é brasileiro nato, não pode ser extraditado à França. Por outro lado, em cooperação internacional, a França pode pedir a execução dessas condenações no Brasil, com base no art. 100 da Lei 13.445/2016. O reconhecimento da condenação francesa dependeria de homologação do STJ (art. 105, inciso I, da CF) e a pena seria executada sob competência da Justiça Federal (art. 109, inciso X, da CF c/c o art. 102, parágrafo único, da Lei), obviamente com adequação ao limite máximo de cumprimento previsto no art. 75 do Código Penal. Diz o art. 100 da Lei de Migração:

Art. 100.  Nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a autoridade competente poderá solicitar ou autorizar a transferência de execução da pena, desde que observado o princípio do non bis in idem.

Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a transferência de execução da pena será possível quando preenchidos os seguintes requisitos:

I – o condenado em território estrangeiro for nacional ou tiver residência habitual ou vínculo pessoal no Brasil;

II – a sentença tiver transitado em julgado;

III – a duração da condenação a cumprir ou que restar para cumprir for de, pelo menos, 1 (um) ano, na data de apresentação do pedido ao Estado da condenação;

IV – o fato que originou a condenação constituir infração penal perante a lei de ambas as partes; e

V – houver tratado ou promessa de reciprocidade.

Portanto, as alternativas para impedir a impunidade de Manoelzinho são a conclusão da persecução criminal no Brasil, a partir da ação penal proposta pelo MPF na Justiça Federal amapaense, processo que resultou de pedido francês (em competência criminal federal), ou a homologação das duas sentenças penais estrangeiras (condenações proferidas na Martinica e na Guiana), uma vez que tenham transitado em julgado, para execução penal federal (art. 102, único, da Lei de Migração).


A decisão do TRF da 1ª Região no caso Manoelzinho

Nos artigos Jurisdição extraterritorial e competência criminal federal (aqui) e Competência federal em crimes extraterritoriais (aqui) discuti longamente as várias razões constitucionais, legais e históricas que determinam a competência da Justiça Federal para julgar cidadãos brasileiros inextraditáveis (natos) que cometam crimes fora do território brasileiro. 

Seguindo o entendimento fixado pela Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da PGR e pela Câmara Criminal do Ministério Público Federal, a competência para julgar Manoelzinho foi firmada na Justiça Federal do Amapá, em Macapá, com base na regra de competência puramente territorial do art. 88 do CPP.

Não se deixe enganar. Este dispositivo não distribui competências entre a Justiça dos Estados e a Justiça Federal, nem se refere aos juízes de Direito. A razão é simples: a Justiça Federal fora extinta nos anos 1930, pelo Decreto-lei n. 6, de 16 de novembro de 1937, que deu efeito aos arts. 90 e 185 dda Constituição de 1937. Ao entrar em vigor em 1º de janeiro de 1942, o CPP hoje ainda em vigor (Decreto-lei 3.689/1941) não precisava ter qualquer regra sobre competência federal, simplesmente porque não havia juízes federais em primeira instância, só reinstituídos pelo Ato Institucional n. 02/1965 e pela Lei 5.010/1966.

Depois que a Justiça Federal recebeu a denúncia contra Manoelzinho, a Defensoria Pública da União (DPU) questionou em habeas corpus a competência federal perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região em Brasília. Normalmente, quem se opõe à tese da competência federal aferra-se a um julgado do STF (HC 105.461/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 29.03.2016) e a uma decisão do STJ em conflito de competência (CC 104.342/SP, 3ª Seção, rel. Min. Laurita Vaz, j. em 12/08/2009). 

Duas coisas precisam ser ditas para que não se incorra no risco tantas vezes denunciado do ementismo, ou seja, a prática de guiar-se unicamente pelas ementas dos acórdãos:

a) esses dois julgados são na verdade um, pois dizem respeito ao mesmo caso, um duplo homicídio cometido por um brasileiro e por uruguaios em Rivera, na República Oriental do Uruguai, tendo como vítimas os policiais civis Ronaldo Almeida Silva e Leonel Jesus Ilha da Silva. O brasileiro Ricardo José Guimarães, suposto executor dos crimes, foi o paciente no HC 105.461/SP do STF, impetrado por sua defesa contra a decisão do STJ no CC 104.342/SP, com o objetivo de firmar a competência federal.

b) de modo algum, as razões de decidir das Cortes retrataram a controvérsia em toda a sua extensão, já que o STF e o STJ não examinaram nenhuma das novas questões históricas, legais e constitucionais acolhidas pelo órgão revisional do MPF e apontadas nestes textos (aqui e aqui). A motivação dos votos foi absolutamente sucinta (aqui), não tendo os ministros enfrentado nenhuma das novas proposições aventadas doutrinariamente e na atual posição institucional do MPF. O relator no STF limitou-se a dizer que “O simples fato de o delito ter sido cometido por brasileiro no exterior é, por si só, neutro para estabelecer a competência da Justiça Federal, porquanto não ofende bens, serviço ou interesse da União – artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal.”. E só.

Por isso mesmo, considerando que se trata de um só caso no STF e já que não houve pronunciamento das cortes superiores sobre a tese nova, que é consistente e fundada em razões constitucionais, legais e históricas, não há como dizer que haja “jurisprudência” e que tal posição seja “pacífica”, jargões repetidos sem maior reflexão por profissionais do Direito aqui e alhures.

Louve-se, portanto, a evolução jurisprudencial preconizada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região no caso Manoelzinho, que percebeu que os precedentes, como os dos conflitos de competência CC 104.342/SPCC 115.375/SP do STJ, não se amoldam à hipótese fática e à essência do tema.

Assim, acolhendo o posicionamento do MPF nas duas instâncias ordinárias (Macapá e Brasília), a decisão unânime do Tribunal Regional foi pela competência federal, assentando pela primeira vez neste debate o vetor do inciso III do art. 109 da Constituição:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIOS, CONSUMADOS E TENTADOS, COMETIDOS POR BRASILEIROS NO EXTERIOR. PRINCÍPIO DA EXTRATERRITORIALIDADE. ACORDO DE COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA EM MATÉRIA PENAL ENTRE O BRASIL E A FRANÇA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. CPP, ART. 88. DOMICÍLIO DE PRESOS. ORDEM DENEGADA.

1. A competência da Justiça Federal vem estabelecida no art. 109 da Constituição da República e, diante de todas as informações trazidas aos presentes autos, é certo que a presente hipótese está enquadrada no inciso III, que dispõe, in verbis: “as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional“.

2. No Capítulo VIII do Título V do Livro I do Código de Processo Penal, sob a rubrica “disposições especiais”, vem disciplinada a questão relativa à competência territorial que, na hipótese de processo por crimes praticados fora do território brasileiro, é o Juízo da Capital do Estado onde por último houver residido o acusado (art. 88).

3. Na hipótese, embora alegado pela Impetrante que os Pacientes teriam residido em São Luiz do Maranhão antes da consumação dos fatos aqui tratados, não há prova que referende tal afirmação, razão pela qual há de se concluir pela competência do MM. Juiz da Seção Judiciária do Amapá para o processamento da Ação Penal 0004449-23.2015.4.01.3100.

4. Ordem denegada. (TRF-1, 3ª Turma, HC 0023021-78.2016.4.01.0000/AP, Rel. Juiz Fed. Convocada Rogéria Maria Castro Debelli, j. 02/05/2017).

Insatisfeita com esse desfecho, a DPU levou a questão ao STJ por meio do RHC nº 88432/AP, distribuído ao ministro Néfi Cordeiro, recurso este que mereceu parecer contrário da Subprocuradora-Geral da República Luiza Cristina Frischeisen (Caso Manoelzinho – Parecer do MPF – RHC 88432). 

Além das obrigações pertinentes ao tratado bilateral de assistência jurídica mútua em matéria penal (Decreto 3.324/1999), que faz surgir o dever de persecução do Estado brasileiro, e ainda tendo em conta o art. 4º do Acordo contra a Exploração Ilegal do Ouro em Zonas Protegidas ou de Interesse Patrimonial (Decreto 8.337/2014) – aplicável ao Planalto das Guianas (local dos crimes) –, há de se considerar, para aferição da presença do interesse e da competência federais (art. 109, III e IV, CF) no caso dos crimes do garimpo de Dorlin, a regra do art. 2º do Acordo de Parceria e de Cooperação entre o Brasil e a República Francesa em Matéria de Segurança Pública, celebrado em Brasília em 1997. Segundo tal dispositivo, as partes devem cooperar para a prevenção e repressão de todas as formas de criminalidade internacional e, na execução desta cooperação:

a) as Partes Contratantes trocarão informações relativas a pessoas suspeitas de atos delituosos de natureza internacional, ao relacionamento e aos vínculos entre essas pessoas, à estrutura, ao funcionamento e aos métodos de organização criminais, às circunstâncias dos crimes cometidos nesse contexto, assim como às disposições legais infringidas e às medidas tomadas, enquanto necessário para a prevenção e a repressão daquelas infrações;

Por onde quer que observe a questão, não há como fugir da constatação de que há um dever convencional (resultante de tratados) da República Federativa do Brasil de prestar cooperação à França ou de assumir a jurisdição por crimes praticados no território francês por brasileiros inextraditáveis. Esta é precisamente a situação de Manoelzinho e de Ronaldo “Brabo”, ambos hoje presos na Penitenciária Federal de Porto Velho/RO.

Se se trata de cumprir os tratados firmados com a República Francesa (pacta sunt servanda), a obrigação de fazê-lo é do Estado federal, isto é, da pessoa jurídica de direito internacional público, a União, jamais de um Estado membro. Se foi o Estado nacional quem se obrigou no plano internacional, deve cumprir por seus órgãos os compromissos firmados nos tratados. Assim, tem-se situação que se enquadra tanto no inciso III do art. 109 (causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro), quanto no inciso IV do mesmo artigo (interesse da União), a definir a competência federal.

Não se pode afastar também a incidência do inciso II do art. 109 da Constituição porque, na essência, um pedido estrangeiro de cooperação internacional (passiva) para persecução criminal no Brasil corresponde a uma causa entre Estado estrangeiro e pessoa domiciliada ou residente no País.

Ademais, a existência do interesse federal e das repercussões que um crime pode ter nas relações bilaterais entre Estados soberanos foram muito claramente enunciadas no editorial do Le Monde, acima transcrito.

É preciso que os tribunais superiores, em se debruçando sobre esta e outras novas razões já alinhadas neste artigo e neste outro texto, apontem a solução que seja conforme a Constituição e que seja capaz de corresponder à tradição republicana brasileira iniciada pelo Decreto 3.084/1898 (art. 7º, §1º e 9º) e à necessidade de promover as relações internacionais do Estado nacional brasileiro com seus pares. 

No diploma legal publicado há 120 anos, no alvorecer da federação brasileira, estipulou-se a competência federal para crimes praticados no exterior:

Art. 7º Poderão ser processados pela Justiça federal, ainda quando ausentes da Republica, e julgados quando forem presentes, ou por terem regressado espontaneamente ou por extradição conseguida para esse fim, os brazileiros que perpetrarem alguns dos crimes previstos nos capitulos I e II do Tit. I, L. 2, e no Cap. I do Tit. VI do Cod. Penal, bem como os crimes de falsificação de actos das autoridades federaes, de titulos de divida publica, de papeis de credito e valores da nação ou de banco autorisado pelo Governo Federal e os de homicidio e roubo em fronteira, não tendo sido o delinquente punido no logar onde delinquiu.

§ 1º A disposição do artigo antecedente poderá ter execução no que for applicavel em relação aos estrangeiros que perpetrarem fóra da Republica quaesquer dos referidos crimes, quando venham ao territorio brazileiro espontaneamente ou por extradicção obtida para esse fim.

Para crimes cometidos nos países fronteiriços, o Decreto-lei 3.084/1898 tinha regra específica, atribuindo a competência aos juízes federais, então chamados de juízes seccionais:

Art. 9º É exclusivamente da competencia do juiz seccional do Estado fronteiro, quando o delinquente for ahi domiciliado ou teve o seu ultimo domicilio na Republica e commetteu o crime no paiz confinante. 

Por que tais dispositivos da República Velha deixaram de ser aplicados? Porque, como já expliquei, a Justiça Federal foi extinta em 1937, só sendo recriada em 1966, quando já estava em vigor o CPP de 1941 que, obviamente, nada previa e nada podia prever sobre competência federal dos juízes federais de primeira instância.

Com o incremento das relações jurídicas na sociedade global somado ao fator da proibição da extradição de nacionais, o tema da extraterritorialidade da lei penal tende a se tornar mais frequente. Na ação penal 0014740-63.2016.403.6181, em curso na 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo, decorrente de pedido de cooperação passiva oriundo do Japão, também foi admitida a competência federal. Os cidadãos brasileiros natos (inextraditáveis) Marcelo Yokoyama e Alexandre Hideaki Miura foram denunciados pelo MPF pelo crime de extorsão mediante sequestro com resultado morte, cometido em Nagoya, em 2001, tendo como vítima o empresário japonês Harumi Inagaki.

O tema da competência é objeto de HC 04372-74.2017.4.03.0000/SP, também impetrado pela DPU perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, distribuído ao desembargador José Lunardelli. Em 20/12/2017, o relator indeferiu a liminar porque a questão da competência não fora discutida em primeira instância.

A ação penal 003821-95.2013.4.01.3300, proposta na 2ª Vara da Justiça Federal em Salvador contra Mário Pacheco do Nascimento, também se vale dessas premissas para fins de competência. Pacheco, cidadão brasileiro conhecido como o “Mago de Milão”, foi denunciado pelo MPF por estelionatos cometidos na Itália, país com o qual o Brasil também mantém tratados de cooperação internacional e de extradição, que impõem a persecução no País, como dever convencional, em caso de não entrega. Mário Pacheco foi condenado na Itália, mas em 2014, quando se executou o pedido italiano, a pena criminal estrangeira ainda não podia ser executada no Brasil.

Noutra ação penal em curso na Justiça Federal, a tese de base para a afirmação da competência foi a mesma. Flavio Acosta Riveros teve sua extradição ao Paraguai negada pelo STF, porque é cidadão brasileiro, embora haja dúvidas sobre sua nacionalidade. Acosta é acusado de ser um dos responsáveis pelas mortes do jornalista paraguaio Pablo Medina e de sua assistente, em outubro de 2014, no Departamento de Canindeyu.

Após o indeferimento da extradição, o Paraguai requereu ao Brasil que nosso País assumisse a persecução criminal. Em 2017, o MPF propôs a ação penal 5053685-38.2017.4.04.700 que está em curso na 13ª Vara Federal de Curitiba. Na decisão que recebeu a denúncia contra Flávio Acosta Riveros, a juíza Gabriela Hardt acertadamente registrou:

O pedido de transferência do processo e julgamento de FLAVIO ACOSTA RIVEIROS para a jurisdição brasileira foi formulado pela autoridade competente no Paraguai em razão da negativa do pedido de extradição deste pelo Supremo Tribunal Federal e consta do evento 1, a partir das fls. 146. Reconheço também a competência da Justiça Federal conforme previsto nos inciso III, IV e X do art. 109 da Constituição, sendo este um tema de cooperação internacional, que sempre é tratada por juízes federais, a partir da lógica do art. 105, inciso I, alínea “i”, da CF. Também nítido o interesse da União na persecução, já que envolve relação do Estado brasileiro com o paraguaio.

Na 1ª Região, a competência federal também é objeto do RESE nº 0012346-66.2015.4.01.3500/GO, interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do Juízo da 5ª Vara Federal de Goiânia, que se deu por incompetente para julgar a ação penal proposta pela Procuradoria da República contra Geane Araújo Pereira. Atualmente, o recurso em sentido estrito está na relatoria do Des. Mário César Ribeiro, da 3ª Turma do TRF-1 aguardando decisão. A ré é acusada da autoria do homicídio de que foi vítima Maria José dos Santos Milheiro, crime ocorrido em 26 de outubro de 2009, na cidade de Fundão de Castelo Branco, em Portugal.

Há ainda um outro caso vinculado ao TRF-1, que julgará o recurso em sentido estrito (rel. des. Monica Sifuentes) interposto pela DPU contra decisão de pronúncia proferida pelo Juízo Federal de Belo Horizonte, na ação penal 0005495-12.2017.4.01.3800 proposta contra Dinai Alves Gomes, acusado das mortes de Michele Santana Ferreira, Lidiana Neves Santana e Thayane Milla Mendes, ocorridas em 2016 em Cascais, Portugal. O réu Dinai foi pronunciado pelo juiz federal Jorge Gustavo Serra de Macedo Costa em julho de 2017 (Caso Dinai – Portugal – decisão de pronúncia). Um HC anterior, n. 0056258-06.2016.4.01.0000/MG, que também atacava a competência federal, teve liminar indeferida pelo juiz convocado Klaus Kuschel em 2016 e não foi conhecido, no julgamento de mérito pela 3ª Turma, em 2017.

 

ponte
Aberta a circulação em 2017, a ponte binacional franco-brasileira sobre o Rio Oiapoque une o Amapá à Guiana Francesa. Atos judiciais não passam por aí.

A competência federal em cooperação internacional na nova Lei Migratória

A nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017) trouxe mais luz ao tema, na medida que, ao tratar de dois institutos de cooperação jurídica internacional em modo passivo, estabeleceu a competência federal, em linha com o art. 109, incisos IV e X, da Constituição de 1988.

O primeiro dos dispositivos é o art. 102, parágrafo único, da Lei Migratória, que trata da transferência de execução penal, isto é, do enforcement no Brasil de decisões condenatórias estrangeiras, para além do que dispõe o art. 9º do CP.

Graças aos arts. 100 a 102 da Lei 13.445/2017, sentenças penais condenatórias proferidas no exterior podem ser homologadas no Brasil para todos os fins:

Art. 102. A forma do pedido de transferência de execução da pena e seu processamento serão definidos em regulamento.

Parágrafo único. Nos casos previstos nesta Seção, a execução penal será de competência da Justiça Federal.

O reconhecimento de sentença penal estrangeira é instituto de cunho processual e se aplica de imediato (tempus regit actum), pois a Lei 13.445/2017 trouxe apenas alteração do procedimento de cooperação internacional para a persecução de crimes praticados no exterior. Deixa-se de depender da propositura de ação penal no Brasil para crimes já julgados no exterior e passa-se diretamente à execução da sentença proferida no exterior em relação a esse mesmo crime. Tem-se portanto uma mera troca de rito para se chegar à resposta penal.

Tal alteração, longe de ser prejudicial ao réu, contribui para evitar a ocorrência de dupla persecução criminal pelo mesmo fato (bis in idem internacional), exatamente o que aconteceu noss casos Manoelzinho e do “Mago de Milão”, ambos condenados na França e na Itália e atualmente respondendo a ações penais no Brasil (Amapá e Bahia) pelos mesmos fatos.

Por outro lado, o art. 100 da Lei de Migração não incrementa a resposta penal pelo crime que se praticou no exterior. Não há qualquer inovação quanto à lei penal incriminadora, seja nos seus elementos típicos ou no preceito sancionador. Não há lex gravior, na medida em que a pena estrangeira será obrigatoriamente harmonizada ao preceito secundário da norma incriminadora brasileira, que deve existir antes da prática do fato no exterior. Este é o sentido da anterioridade que se deve observar no procedimento de cooperação internacional. A lei penal aplicável é a brasileira, que deverá estar vigente antes do fato praticado no exterior, e não meramente antes da entrada do pedido de cooperação no Brasil.

Com ou sem a Lei 13.445/2017, a resposta penal ao autor do crime extraterritorial viria. Antes, dar-se-ia por persecução penal no Brasil para aplicação da lei penal brasileira a crime cometido no exterior. Agora, continua a ocorrer a reação persecutória por este mesmo modo ou pelo outro novo, que faculta ao Ministério Público Federal promover a execução da sentença proferida no Estado estrangeiro, já amoldada à lei penal brasileira, sempre respeitados o art. 5º, III e XLVII, da Constituição e o art. 75 do CP.

Tal instituto de enforcement de sentenças estrangeiras, que se baseia no princípio da confiança mútua, aplica-se a crimes cometidos inteiramente no exterior e aí julgados. Note que, independentemente do bem jurídico protegido e da qualidade das vítimas ou mesmo não existindo transnacionalidade do iter criminis, a competência para a execução da sentença penal estrangeira no Brasil será da Justiça Federal (incisos IV e X do art. 109, CF), e não da Justiça dos Estados, como erroneamente poderiam sugerir os precedentes do STF e do STJ.

Com base na nova regra legal, após o trânsito em julgado da decisão condenatória estrangeira, o Estado sentenciante pode pedir ao Brasil (e vice-versa) o reconhecimento da sentença, para execução nesta jurisdição. Tal medida de cooperação é muito útil nos casos de inextraditabilidade de nacionais. Agora, o Estado onde ocorreu o crime não precisa demandar ao Brasil o início da persecução criminal contra o brasileiro nato; pode julgá-lo em seu próprio foro e depois remeter a decisão condenatória a que chegar para que seja cumprida no Brasil. 

O outro instituto de interesse para a presente discussão está regulado nos arts. 103 a 105 da Lei de Migração. Para os casos de transferência de condenados ao Brasil, medida que tem cunho precipuamente humanitário, a competência também será federal:

 Art. 105. A forma do pedido de transferência de pessoa condenada e seu processamento serão definidos em regulamento.

§ 1o  Nos casos previstos nesta Seção, a execução penal será de competência da Justiça Federal.

A aplicação do §1º do art. 105 se fará sem prejuízo da Súmula 192 do STJ, quando se der o início da execução penal (em concreto) em estabelecimento prisional estadual:

Súmula 192. Compete ao Juízo das Execuções Penais do Estado a execução das penas impostas a sentenciados pela Justiça Federal, Militar ou Eleitoral, quando recolhidos a estabelecimentos sujeitos à administração estadual.

Vale dizer: o cumprimento no Brasil das condenações proferidas no exterior, seja por transferência de execução (do título prisional) ou por transferência do condenado (da própria pessoa e do título prisional), são de competência federal, sendo, por meras razões administrativas e do controle da disciplina carcerária, transferidas à Justiça dos Estados, após a adequação da pena estrangeira e a expedição da guia de recolhimento, quando a pena deva ser cumrpida em estabelecimento estadual.

Se não houver inclusão do sentenciado em unidade prisional estadual, todo o procedimento de execução penal ficará a cargo de juízes federais.

O art. 102 e o art. 105 da Lei de Migração reforçam a existência de interesse da União, no sentido do inciso IV do art. 109 da Constituição, quando se tratar de medida de cooperação internacional passiva, seja qual for sua natureza.

De fato, o fator “internacionalidade” é um vetor de federalização da competência para julgamento de crimes extraterritoriais, no contexto da cooperação jurídica internacional passiva, isto é, naqueles casos em que o Brasil é o Estado requerido. Este vetor está presente expressamente no texto constitucional, como se vê no inciso X, do art. 109, da CF, que determina que nas rogatórias e na execução de sentenças estrangeiras a competência é da Justiça Federal.

O próprio caso Manoelzinho serve de novo de exemplo. Após os crimes do garimpo de Dorlin, o Brasil recebeu uma rogatória do Tribunal de Grande Instance de Caiena, para o interrogatório de Manoel Moura Ferreira e Ronaldo Silva Lima. O exequatur foi concedido pelo presidente do STJ, e o depoimento no Brasil, destinado a instruir procedimento criminal estrangeiro, foi tomado pela Justiça Federal do Amapá (STJ, CR 8024 FR, Rel. Min. Félix Fischer, j. em 15/05/2013).

Por que a Justiça Federal cumpriu essa rogatória? Por força do inciso X do art. 109 da Constituição, que institui um desses vetores de federalização da competência. Esses vetores se manifestam sempre que presente alguma questão internacional que diga respeito a interesse da União, a relacionamento com Estado estrangeiro, ao cumprimento de tratados, à nacionalidade (como fator de proibição de extradição), à navegação aérea e marítima internacionais ou a cooperação em matéria penal. 

A pergunta é: se para um simples ato do processo penal por crime cometido no exterior (uma oitiva, um interrogatório, qualquer coleta probatória ou uma singela citação) a competência para a cooperação passiva no Brasil é da Justiça Federal (interrogar os acusados dos crimes do garimpo de Dorlin, por exemplo), por que, então, para realizar toda a instrução criminal, sobre o mesmo fato (crimes cometidos no garimpo de Dorlin, por exemplo), a competência seria da Justiça Estadual? Não faz sentido algum a solução dada ao tema pelo STF no HC 105.461/SP e pelo STJ no CC 104.342/SP.

É lição secular de hermenêutica jurídica que onde há a mesma razão (o interesse federal decorrente das relações internacionais) deve haver a mesma solução (competência da Justiça do Estado federal para as medidas de cooperação). Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. Tendo em mira o Decreto 3.084/1898, a Lei Federal 2.416/1911 e o Decreto-lei 6/1937, aspectos legais e históricos reforçam a exatidão do raciocínio que acolhe a competência federal em tais casos.

Deste modo, se o juiz federal é o competente para colher certas provas para auxiliar na instrução criminal em curso no Estado rogante, será também o competente para realizar ele mesmo a instrução criminal por inteiro, que terá curso no Estado rogado, nas hipóteses de transferência da persecução criminal ou da execução penal.

Note-se que o constituinte não distingue, para a fixação da competência na Justiça Federal no marco do inciso X do art. 109 da CF, o bem jurídico lesado ou o tipo de crime objeto do pedido de cooperação passiva (por rogatória ou auxílio direto), ou a qualidade da vítima, ou o crime afirmado na sentença penal condenatória.

Não importa se o crime no exterior é um furto contra particular, um homicídio na fronteira, um estupro na rua ou um estelionato contra um comerciante numa grande cidade. A competência para as rogatórias passivas e os pedidos de mutual legal assistance (auxílio direto) no Brasil é sempre federal (inciso X), devido ao interesse federal intrínseco e inafastável que tais eventos carregam, em função dos vínculos convencionais entre o Brasil e outros Estados soberanos e do dever de persecução que resulta de tratados ou da convivência na comunidade das nações.

Dizendo de outro modo, na cooperação internacional passiva, não importa qual é o crime praticado no exterior nem quem é a vítima. A competência para prestar a assistência internacional a órgãos de persecução e julgamento supranacionais ou pertencentes a outros países é sempre da Justiça Federal.

Do mesmo modo, quando o pedido estrangeiro tiver por fim o cumprimento da pena no Brasil (art. 102 da Lei de Migração) ou pretender provocar o início da persecução criminal no Brasil contra brasileiro inextraditável, autor de crime no exterior, a competência será sempre federal, porque estão presentes o vetor de internacionalidade, o dever convencional e o interesse da União.

Todos esses inúmeros argumentos podem ser substituídos por um só. Quando um crime é cometido no exterior, o Estado estrangeiro pode pedir ao Brasil que auxilie na coleta probatória para julgamento no exterior; ou, se quiser, pode pedir ao Brasil que todo o julgamento tenha curso aqui. Ambos os pedidos aqui tramitarão como cartas rogatórias ou pedidos de auxílio direto. Logo, ambos são de competência federal, com base no inciso X do art. 109 da Constituição.

De forma sucinta, a coleta probatória e a execução penal estrangeiras requeridas ao Brasil são de competência federal. Assim também deve ser quando a persecução criminal por inteiro é transferida ao Brasil. Uma simples relação de parte e todo.

Por tais motivos é que, com a devida vênia, estão equivocadas, por ofensa ao art. 109 da Constituição, as decisões do STF e do STJ que reconhecem a competência da Justiça dos Estados para o julgamento de crimes extraterritoriais.


Competência do tribunal do júri

Uma vez definida nos trinunais superiores a competência federal ou estadual, Manoelzinho e Brabo serão julgados pelo tribunal do júri da comarca de Macapá ou, como entendo, pelo tribunal do júri da seção judiciária federal da mesma cidade.       

Art. 88.  No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República.

Embora haja nos recursos da DPU discussão sobre a competência territorial (art. 88 do CPP), se de Macapá/AP ou de São Luís/MA, a esta altura já se sedimentou a competência no foro criminal amapaense, podendo ser aplicada a regra do art. 91 do CPP, de prevenção, dada a dúvida sobre a cidade onde residiam os réus antes do crime:

Art. 91. Quando incerta e não se determinar de acordo com as normas  estabelecidas  nos arts. 89 e 90, a competência se firmará pela prevenção.  

A competência é do júri porque Manoelzinho e Brabo foram acusados pelo MPF da prática de crimes dolosos contra a vida, consumados e tentados, o que faz incidir o art. 5º, inciso XXXVIII, alínea ‘d’, da Constituição. Para eles, é bom lembrar, vale a presunção de inocência.

Tendo como jurados os cidadãos de Macapá, a questão que permanece em aberto nos autos, não na minha cabeça, é sobre quem presidirá o júri de Manoelzinho e Brabo (um juiz federal ou um juiz de Direito), quem representará a sociedade no plenário (um procurador da República ou um promotor de Justiça) e quem estará na defesa dos réus (um defensor público da União ou um defensor público estadual). En garde.

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