O racismo de McCarthy


Ruby Bridges sai sob escolta da escola fundamental William Frantz, Nova Orleans, 1960

Uma dessas subcelebridades que se multiplicam sabe-se lá como apareceu repetidas vezes na tela do meu celular em novembro de 2017. Um vídeoracista por ela gravado viralizou na internet.

Há 57 anos, em 14 de novembro de 1960, Ruby Bridges foi à escola pela primeira vez. Não foi um dia qualquer. Ruby tornou-se a primeira criança negra a frequentar uma escola pública não segregada nos Estados Unidos. O evento que marcou a história da luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos aconteceu em Nova Orleans, no Estado da Louisiana. Quase sessenta anos depois, dali de perto, mais ao norte, uma tal de “Day McCarthy” escolheu Titi, uma criança negra brasileira de 4 anos, como alvo de seu ódio racial, dirigindo-lhe, num vídeo infame, preconceito semelhante ao que a menina americana sofrera.

A conduta racista de “Day McCarthy”, o nome artístico de Dayane Andrade, pode ser enquadrada no crime de injúria racial (art. 140, §3º, do Código Penal) ou no crime mais grave de racismo previsto no art. 20, §2º, da Lei 7.716/1989. Este delito tem pena de até 5 anos de prisão. Aquele tem pena de até 3 anos de reclusão. Ambos são imprescritíveis, como decidiu o STJ no AREsp 686.965/DF, em 2015 (Paulo Henrique Amorim vs. Heraldo Pereira).

A solução processual do caso criminal “Day McCarthy” não é fácil.

Imaginemos duas interpretações variantes.


Se o crime for considerado extraterritorial (art. 7º do CP)

Se a autora do crime realmente reside no exterior, como parece, é preciso determinar a jurisdição extraterritorial do Brasil, o que pode ser feito com base no art. 7º, inciso II, letras “a” e “b”, do Código Penal (CP). Tais alíneas especificam duas das hipóteses de extraterritorialidade condicionada. Sendo assim, haverá condições a cumprir, para o processo penal seguir.

A agressora é brasileira (inciso II, alínea “b”) e há um tratado aplicável à conduta em tela (alínea “a”), que é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada no Brasil pelo Decreto 65.810/1969, que atualmente tem 178 Estados Partes. Logo, há jurisdição extraterritorial do Brasil, ou seja, a lei penal brasileira pode ser aplicada ao crime cometido no exterior por “Day McCarthy”.

Porém, para isto ocorrer, as condições do §2º do art. 7º do CP devem ser cumpridas. As mais importantes para o caso em exame são:

a) a entrada da autora do crime no território nacional; e

b) o fato a ela atribuído ser punível também no país em que praticada a conduta.

Ou seja, a injúria racial que “Ms. Mcarthy” praticou também deve ser considerada crime no país onde ela estava quando consumou a ofensa. Este é o requisito da dupla incriminação ou dupla tipicidade. Se tal elemento não estiver presente, a lei penal brasileira não lhe será aplicável. É o que resulta do art. 7º, §2º, alínea “b”, do CP.

Esta é a primeira dificuldade de ordem processual para a persecução criminal no Brasil. Mas há outra: para sujeitar-se à lei penal brasileira, a agressora deve entrar no território nacional, voluntariamente ou de forma compulsória (isto é, por extradição). Esta condição está prevista na alínea “a” do §2º do art. 7º do CP. “Day McCarthy” tem de estar no Brasil ou ser trazida ao País compulsoriamente.

A persecução penal pode ser iniciada desde que haja pedido de extradição ativa, isto é, pedido do Brasil a outro país para a captura e entrega da agressora, na forma dos arts. 81 e 88 da Lei 13.445/2017. Mas o curso da ação penal e o seu julgamento dependerão da efetiva entrada da agressora em território nacional, como exige a lei brasileira, vigente, nesta parte, desde 1984.


Se o crime for considerado territorial (art. 6º do CP)

Podemos imaginar interpretação diversa, mais simples. O art. 7º do CP, que regula a jurisdição extraterritorial do Brasil, só se aplicaria a crimes praticados inteiramente no exterior. Como o crime de injúria racial em questão foi praticado no exterior (ação) e atingiu uma vítima no Brasil (resultado), o País tem jurisdição territorial, com base no art. 6º do CP, porque a sua consumação se deu em território nacional, onde foram sentidos os seus efeitos diretos.

Considera-se praticado o crime, segundo o art. 6º do CP “no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.”. Logo, o local do crime “juridicamente” é também o território brasileiro.

Sendo assim, as condições de eficácia extraterritorial da lei penal brasileira, listadas no art. 7º do CP, não seriam exigíveis. O Brasil teria jurisdição territorial em casos de crimes a distância (transnacionais), os que se iniciam no exterior e têm resultado aqui e vice-versa. É razoável dizer que foi isto o que ocorreu no caso McCarthy.

O art. 7º do CP, regulando a jurisdição extraterritorial do Brasil, só incidiria quando o crime fosse consumado ou tentado integralmente fora do País, sem tocá-lo. Tal interpretação é muito útil em casos de cibercrimes e de crimes transfronteiriços tradicionais, servindo para firmar a jurisdição territorial brasileira, que é sempre incondicionada.

Em se adotando esta solução, pelo art. 6º do CP,  pode-se dar início à persecução penal, de imediato, sem as condições exigidas pelo art. 7º do mesmo Código.


Qual o juiz competente?

Quanto ao juízo competente para julgar “Day McCarthy”, temos de encontrá-lo a partir do art. 109, inciso V, da Constituição de 1988. Neste caso, a competência é da Justiça Federal porque a conduta é transnacional (se “Day McCarthy” reside mesmo no exterior) e também porque o crime está previsto em tratados qual o Brasil é parte. A criminalização do racismo é objeto do art. IV.a da Convenção Internacional de 1966:

Artigo IV

Os Estados partes condenam toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em idéias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem étnica ou que pretendem justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e de discriminação raciais e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos de discriminação com este objetivo tendo em vista os princípios formulados na Declaração universal dos direitos do homem e os direitos expressamente enunciados no artigo 5 da presente convenção, eles se comprometem principalmente:

a) a declarar delitos puníveis por lei, qualquer difusão de idéias baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer incitamento à discriminação racial, assim como quaisquer atos de violência ou provocação a tais atos, dirigidos contra qualquer raça ou qualquer grupo de pessoas de outra cor ou de outra origem técnica, como também qualquer assistência prestada a atividades racistas, inclusive seu financiamento;

Mas qual dos juízos federais será o competente no Brasil? A resposta está no art. 88 do Código de Processo Penal (CPP). A agressora deve ser julgada na capital do Estado onde por último houver residido no Brasil. Se tiver morado em Pernambuco, o juízo competente é o da Justiça Federal no Recife. Se partiu do Estado de Goiás, a Justiça Federal de Goiânia terá tal incumbência. Postagens em redes sociais indicam que a agressora teria residido em Rio das Ostras, interior fluminense. Logo, a competência para o julgamento no Brasil seria de uma das Varas Criminais Federais do Rio de Janeiro, capital, com atribuição do Ministério Público Federal (MPF) para a ação penal e da Polícia Federal para a investigação.

A regra de competência (em razão do território) para crimes praticados no exterior está no CPP de 1941: “Art. 88. No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República.

Se o crime for considerado territorial (art. 6º do CP), a regra de competência é outra. Está no art. 70 do CPP:

Art. 70.  A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.

§1º. Se, iniciada a execução no território nacional, a infração se consumar fora dele, a competência será determinada pelo lugar em que tiver sido praticado, no Brasil, o último ato de execução.

§2º. Quando o último ato de execução for praticado fora do território nacional, será competente o juiz do lugar em que o crime, embora parcialmente, tenha produzido ou devia produzir seu resultado.

Como a vítima reside no Rio de Janeiro e ali se produziu o resultado do crime, o juízo competente é o daquela cidade, mas ainda assim o da Justiça Federal (art. 109, V, CF).

Em se tratando de violação de direitos humanos (racismo), a atribuição para investigar é da Polícia Federal, à luz do art. 1º, inciso III, da Lei 10.446/2002:

Art. 1º. Na forma do inciso I do § 1o do art. 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais:

III – relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte;”


Como se resolve a questão da extradição?

Se a agressora residir no Canadá, como se imagina, há maior dificuldade para o encaminhamento do processo penal. A confirmar-se que a agressora está naquele país, seriam dois os óbices à persecução transnacional:

a) o Brasil não é um extradition partnerdo Canadá, o que torna a extradição da acusada muito difícil. Nosso País não consta do anexo (schedule) da Lei de Extradição de 1999.

b) Brasil e Canadá não têm tratado vigente de extradição. Devido à sua tradição jurídica centrada na common Law, o Canadá é um treaty-needed country; não opera só com base em promessa de reciprocidade, como faz o Brasil, em matéria de cooperação internacional. Diferentemente do que parece, o tratado bilateral celebrado em Brasília em 1995 e aprovado pelo Decreto Legislativo 360/2007não está em vigor.

Referido ato internacional nunca entrou em vigor porque falta o decreto federal de promulgação. Sem isto, o tratado não tem eficácia no Brasil. Por que não houve essa publicação passados dez anos da sua aprovação pelo Congresso Nacional? É que, durante a tramitação da proposta de tratado perante as duas Casas do Poder Legislativo brasileiro, houve alteração do texto negociado pelos dois governos. Ao publicar o decreto legislativo em 2007, o Senado Federal fez constar no art. 2º do Decreto que “o Brasil não concederá a extradição cujo pedido seja fundado nos crimes definidos no artigo 2, item 5, in fine, do Tratado”.

Uma tal reserva ou ressalva não é possível em tratados bilaterais e corresponde a recusa do texto combinado. Além disso, no procedimento bifásico de integração de atos internacionais bilaterais, o Poder Legislativo só tem as opções de aprovar inteiramente o texto proposto ou de rejeitá-lo por inteiro, para que outro seja ajustado.

Muito provavelmente, os dois países terão de celebrar um novo tratado de extradição, devido à alteração das leis extradicionais dos dois países em 1999 e em 2017, posteriormente à negociação do texto de 1995.

Partindo da premissa que a agressora está realmente no Canadá, uma solução paliativa pode ser divisada. A Lei Extradicional canadense de 1999 permite a formalização de acordos ad hoc para a entrega de pessoas procuradas. Vide o art. 10(1) da Extradition Act, que trata dos acordos específicos (specific agreements):

10 (1) The Minister of Foreign Affairs may, with the agreement of the Minister, enter into a specific agreement with a State or entity for the purpose of giving effect to a request for extradition in a particular case.

Esta alternativa se encaixa no conceito de promessa de reciprocidade, tradicional no modelo extradicional brasileiro e permitido expressamente pelo art. 84, §2º da Lei 13.445/2017.


Investigação transnacional a partir do Brasil

Do ponto de vista da cooperação internacional extradicional, é muito limitada a capacidade da jurisdição brasileira de alcançar o abjeto crime cometido por “Day McCarthy” em solo canadense. Não estamos na lista de parceiros do Canadá nem temos com o país um tratado bilateral de extradição válido. Temos é um tratado bilateral de cooperação em matéria penal (mutual legal assistance), também de 1995, para diligências diversas da extradição (Decreto 6.747/2009).

Este segundo acordo internacional pode viabilizar as providências descritas em seu art. 1.5, inclusive um pedido de deflagração de persecução criminal perante a Justiça competente no Canadá.

Depoimentos e outras provas do fato podem ser obtidos por meio desse tratado de assistência penal internacional, que tem na Procuradoria-Geral da República (PGR) sua autoridade central. Isto significa que a tramitação dos pedidos de cooperação probatória é de atribuição da Secretaria de Cooperação Internacional da PGR, em Brasília (art. 11 do Tratado).

Adicionalmente, como os pais da criança vítima têm meios econômicos de fazê-lo, abrir um processo penal ou civil diretamente no Canadá pode ser um bom caminho para que este crime não fique impune. A única questão é saber se a conduta em questão é classificada como crime naquele país, o que parece ser certo, à luz do art. 319 do Código Penal canadense.

O tema da tipificação de tais condutas é relevante porque em países como os Estados Unidos a injúria racial e o hate speechem geral, salvo exceções delimitas pela Suprema Corte, não são punidos criminalmente, em função da liberdade de expressão, protegida pela 1ª Emenda à Constituição americana.


Conclusão

A título de conclusão,

  • A conduta atribuída à subcelebridade Day McCarthy pode ser enquadrada como injúria racial (art. 140, §3º, CP), com a agravante do art. 61, inciso II, alínea “h”, do CP, pois cometida contra criança.
  • A persecução criminal contra a agressora pode ocorrer já agora no Brasil desde que cumpridos os requisitos e condições do art. 7º do CP, para a eficácia extraterritorial da Lei penal brasileira.
  • A conduta em questão se encaixa na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada no Brasil pelo Decreto 65.810/1969.
  • A competência para o julgamento é da Justiça Federal, aparentemente da capital fluminense (art. 109, V, CF c/c o art. 88 do CP), por se tratar de crime transnacional previsto em tratado
  • A investigação criminal deve ser feita pela Polícia Federal e/ou pelo Ministério Público Federal.
  • Se a acusada estiver no Canadá, será muito difícil obter sua extradição ao Brasil porque nosso País não é um extradition partner do Canadá, e os dois países não têm um tratado de extradição válido e em vigor que se aplique a este tipo de crime.
  • É possível, com base na Lei canadense de 1999, formalizar um acordo ad hoc de extradição para a entrega da agressora ao Brasil, desde que a conduta seja também crime no Canadá.
  • Se a conduta racista for crime no Canadá, a agressora poderá ser processada naquele país por autoridades locais ou pela a família da vítima, neste caso, inclusive civilmente.
  • Se prevalecer a interpretação de que o crime em questão é territorial (art. 6º do CP), porque no Brasil se consumou o resultado (local do crime), nenhuma condição deverá ser satisfeita para o início da ação penal até o julgamento.
  • No caso de jurisdição territorial (art. 6º do CP), tendo em conta o lugar do resultado, a competência será do juízo federal do Rio de Janeiro (art. 109, V, CF c/c o art. 70, §2º do CPP).
  • Apesar de Brasil e Canadá não terem um tratado bilateral de extradição válido, há entre os Estados um tratado de assistência penal em vigor, que serve à cooperação internacional probatória e que tem na PGR a sua autoridade central.
  • Como o crime de injúria racial é imprescritível, essa senhora poderá ser processada e submetida a execução penal no Brasil a qualquer tempo no futuro, desde que retorne ao País.

10 comentários

  1. Prezado Dr. Vladmir, seria interessante também uma abordagem do crime à luz do Direito Penal Internacional (Tribunal Penal Internacional), já que sem sombra de dúvida trata-se também de crime contra a humanidade (art. 5º, I, “b”, do Estatuto de Roma). Talvez seja a forma mais eficaz de se evitar impunidade no presente caso. Grande abraço. Eduardo.

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  2. Parabéns Dr. VLADIMIR ARAS!

    É pela luta contra a impunidade (e pelo Direito!) que desejo um dia integrar os quadros do MPF. Estou estudando (e lutando) pra(por) isso.

    A indignação do senhor foi canalizada para nos mostrar os meios para combater este tipo de crime. Espero pela punição da subcelebridade. Que o Estado brasileiro, e a família da vítima, se possível, hajam.

    Sempre acompanho o seu blog. Recebo o push e leio os textos diretamente em meu e-mail. Um forte abraço.

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  3. Professor, estou fazendo um artigo científicio sobre Delação premiada. Teria alguns dados para me fornecer?

    Atenciosamente,

    Renan William Rocha David Graduando em Direito – Faculdade Guanambi Estagiário – Ministério Público do Estado da Bahia

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