Nas Águas Claras 


images-2Hoje faz 20 anos que deixei minha primeira comarca, onde comecei minha carreira como promotor de Justiça. Chama-se Utinga, palavra que significa “águas claras”, na língua dos índios. A comarca, que fica no piemonte da Chapada Diamantina, tem três municípios: Utinga, a sede; Wagner, fundada por presbíteros norte-americanos; e Bonito, no alto da serra que leva a Morro do Chapéu.

A comarca não tinha juiz. Dependia do substituto que vinha de Rui Barbosa, na estrada de chão. Não tinha defensor. Não tinha também delegado de verdade. Tinha três calças curtas não concursados, nomeados pelos políticos locais. Tinha três prefeitos, com todos os vícios da política do interior.

Não tinha muita coisa a cidade, mas tinha gente de bem, e um juiz de paz aposentado, Seu Landualdo, que me deu boas lições com os seus bem escritos “termo de bem viver”, que serviam para resolver pequenas questões e evitar grandes problemas.

Com 22 anos, fui o primeiro membro do Ministério Público lotado lá naquela lonjura. Mais de 400 km de buracos entre Salvador, minha terra, e Utinga, a nova morada. Na falta de um verdadeiro curso de formação, tive ali minha primeira escola de Justiça. Investigações de improbidade, ações civis de defesa do meio ambiente, rusgas com prefeitos, parcerias com o padre Vitório, debates com os drs. João Raimundo Belas e Genivaldo Mascarenhas, dois bons advogados da cidade. E tinha a Cabeceira do Rio, cachaça boa para quem conhece; a Semana de Arte e Cultura; seresta para quem gosta; os cafezais do Bonito; e os prédios deixados pelos americanos em Wagner, especialmente o Instituto Ponte Nova, de 1906.

Lembro bem o dia que ali cheguei: 4 de outubro de 1993. Dia de feira livre, ruas cheias, gente de todo o canto. Me ajeitei no único hotel decente que havia àquele tempo, o Hotel Farias. Na verdade todos o conheciam por Pensão da Dona Roxa. Era isso mesmo: uma pensão. Fiquei morando ali por uns meses. Já contei isto aqui.

Magrelo, andava na rua de terno e gravata, com livros de Direito nas mãos. Populares me perguntavam: – “Tu é o novo pastor”. Sorria e seguia meu rumo para o Fórum.

Na comarca de Utinga, permanecei por ano e meio. Lembro com saudade de quando a deixei. Era 5 de junho de 1995, Dia Mundial do Meio Ambiente. Quando retirava minhas coisas da sala da Promotoria um beija-flor entrou ali. Logo foi embora. Eu também.

13 comentários

  1. Onde tive o prazer e o privilegio de conhece-lo, prezado amigo. Desde entao, tenho acompanhado seu caminho de sucesso, realizando um trabalho arduo, arriscado e com muitos resultados de destaque; sempre com ETICA, COMPETENCIA E BOM SENSO.
    Grande abraço e que o Grande Arquiteto do Universo, te proteja sempre.

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  2. Dr. Vladimir Aras é personagem marcante na História de Utinga. Tive o privilégio de, como advogado, militar na Comarca de Utinga no período a que se refere o ilustre Mestre. Utinga foi a primeira Comarca de Dr. Vladimir e Dr. Vladimir o primeiro promotor da Comarca.
    Sou testemunha dessa história!

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  3. Vladimir, não só a sua expertise reconforta os que te conhecem, assim também o lirismo de suas palavras. Parabéns pela brilhante carreira, saúde e paz de espírito, sempre.

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  4. Essa é uma história rara e bonita de alguém que olha para o próprio passado e se orgulha dele . Parabéns ! Sigamos ainda mais um pouco , como ensinou o beija flor ! Abs

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  5. Histórias desse tipo nos faz acreditar que a justiça ainda um futuro promissor nesse país.
    Parabéns Professor, o STF lhe espera.

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