Dupla persecução criminal, “dual sovereignty” e “non bis in idem”


Os Estados Unidos são uma sociedade armada até os dentes. As armas de fogo fazem parte do cotidiano de muitas famílias. Tanto que, em abril/2013, no Estado de Kentucky, um menino de 5 anos ganhou um rifle calibre .22 de presente de aniversário (aqui). Poucos meses depois, o “brinquedo” não seria motivo de festa, mas instrumento de uma tragédia. Com ele, o garoto matou Caroline Starks, sua irmã de 2 anos.

De fato, armas de fogo são uma instituição americana. O vigilantismo também. Muitas cidades dos Estados Unidos convivem, mal ou bem, com a presença dos vigilantes, cidadãos voluntários, não remunerados, que agem isoladamente ou formam milícias para prover segurança pública diretamente ou para colaborar com a Polícia na prevenção e na repressão de crimes.

George Zimmerman era um desses “vigilantes” armados. Em fevereiro de 2012, Zimmerman matou a tiros o adolescente negro Travyon Martin e isto gerou uma grande onda de protestos na Flórida.

Tais manifestações “racialmente” motivadas tornaram-se mais intensas em julho de 2013, depois que um júri formado por 6 mulheres, absolveu Zimmerman da acusação de homicídio. Na Flórida, julgamentos nos quais não está em jogo a pena de morte podem ser feitos por menos de 12 jurados. Enquanto no Brasil o conselho de sentença tem sempre 7 membros, nos Estados Unidos este número varia nas várias unidades federadas.

Pois bem, mesmo absolvido pela Justiça do Estado da Florida, Zimmerman poderá enfrentar outra ação penal pelo mesmo fato, desta feita na jurisdição federal. Dizendo de outro modo, diante da dualidade de jurisdições nos EUA (50 judiciários estaduais e o judiciário federal), este réu poderá ser julgado na Justiça Federal por violação dos direitos civis de Travyon Martin, a vítima do homicídio.

Um civil rights suit deste tipo não é um processo civil; é uma ação penal que pode ser proposta pelo Ministério Público Federal americano (Department of Justice US Attorney General – Criminal Division) contra quem ofenda direitos fundamentais (civil rights) protegidos pela legislação federal. Assim, teoricamente, um mesmo fato pode ser apreciado pela Justiça de um Estado e também pela Justiça Federal.

No caso Rodney King, de 1991, os quatro policiais de Los Angeles que o espancaram foram absolvidos na Justiça Estadual da Califórnia em júri realizado em 1992. No ano seguinte, dois desses policiais foram condenados pela Justiça Federal, no mesmo Estado. Fora um caso marcante de violência policial contra negros. King sobreviveu, mas Los Angeles foi varrida por violentos protestos depois que seus agressores foram absolvidos pelo júri estadual. Diante dos graves distúrbios nas ruas, havia evidente interesse em mover a jurisdição da União para reapreciar o caso, o que levou a Procuradoria dos Estados Unidos, com base na seção 242 do Título 18 do US Code, a acusar os policiais de violação dos direitos civis de King (ofensa à integridade física), mediante uso desproporcional de força durante sua prisão.

Vídeo amador do espancamento de King

A possibilidade de duplo julgamento por uma mesma infração penal deriva do princípio da dual sovereignty, ou dualidade de jurisdições, realidade existente nos Estados Unidos. Segundo a doutrina da dupla soberania ou da concorrência de jurisdições, cada Estado norte-americano tem suas próprias leis penais e processuais penais, constituindo uma entidade “soberana” diante das demais unidades federadas e da própria União.

Em casos de dual sovereignty é inaplicável nos EUA o princípio non bis in idem, lá chamado de protection against double jeopardy. Este princípio garantista deriva da 5ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, segundo a qual ninguém está sujeito “for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb”.

A Suprema Corte dos EUA admitiu tal exceção ao non bis in idem nos precedentes United States v. Lanza (1922) e Heath v. Alabama (1985)
. No leading case de 1922, o Supremo Tribunal norte-americano afirmou quean act denounced as a crime by both national and state sovereignties is an offense against the peace and dignity of both and may be punished by each”. De acordo com tais precedentes, o julgamento de Tício pelo fato xis pode ser repetido noutro foro.
 Assim, teoricamente, uma pessoa pode ser julgada pelo mesmo fato em duas Justiças estaduais (se competentes), ou na Justiça Federal e depois na estadual, ou vice-versa.

Embora juridicamente possível o duplo julgamento nos casos de concorrência de jurisdições (rectius: concorrência de competências de distintas Justiças de um mesmo país), nem sempre o MPF americano abre a ação penal sucessiva após toda e qualquer absolvição estadual. O procurador da República (Assistant United States Attorney) seguirá diretrizes governamentais baixadas pelo Departamento de Justiça e confirmadas pela Suprema Corte no caso Petite v. United States (1960), com vistas a aferir se há real interesse federal na nova persecução. A chamada Petite policy é uma política criminal estabelecida pela Procuradoria-Geral dos Estados Unidos para orientar procuradores acerca da conveniência, utilidade ou necessidade de nova persecução criminal (federal) logo após julgamentos estaduais pelo mesmo fato. Esta política interna guia a atuação do Ministério Público federal norte-americano no manejo desta exceção ao princípio non bis in idem, de acordo com a regra da oportunidade da ação penal.

No caso United States v. Barrett, a desembargadora Mary Briscoe, da US Court of Appeals, afirmou que as diretrizes da Petite policy adotadas pelo MPF dos EUA, para autorregramento de sua discricionariedade, não conferem ao acusado o direito subjetivo de questionar em juízo sua não observância pelos procuradores em casos de dupla persecução criminal baseada na doutrina da dual sovereignty:

“The Justice Department’s Petite policy, so named after the decision in Petite v. United States (recognizing the policy), provides that following a state prosecution there should be no federal prosecution for the same transaction in the absence of compelling federal interests. It was adopted by the Department of Justice following the Supreme Court’s decision in Bartkus, in which the Court held that the Double Jeopardy Clause does not bar a state from prosecuting and convicting a defendant who previously has been tried for the same acts in federal court. The policy has regularly appeared in the United States Attorneys’ Manual since its adoption by the Department….

“[T]he Petite policy is merely a housekeeping provision of the Department that, at most, serves as a guide for the use of the Attorney General and the United States Attorneys in the field, and thus does not confer any enforceable rights upon criminal defendants. That the Department of Justice has developed an internal protocol for exercising discretion and channelling prosecutorial resources does not provide license for courts to police compliance with that protocol, and it is well established that the Petite policy and other internal prosecutorial protocols do not vest defendants with any personal rights. Thus, it is clear that the district court did not err in refusing to dismiss the superseding indictment on the basis of an alleged violation of the Petite policy.”

800px-Mt._Zion_Methodist_Church_state_history_marker_in_Neshoba_CountyO caso MIBURN

Apelidado pelo FBI de caso MIBURN, este trágico evento é mundialmente conhecido graças ao espetacular filme Mississippi Burning (Mississippi em Chamas, 1988), com Gene Hackman e William Dafoe. Em junho de 1964, três jovens defensores de direitos humanos foram mortos por membros da Ku Klux Klan (KKK), no condado de Neshoba, Estado do Mississippi. James Earl Chaney, Andrew Goodman e Michael Schwerner foram linchados por supremacistas brancos, insatisfeitos com as ações dos três ativistas, que promoviam o alistamento de cidadãos negros como eleitores numa das regiões mais racistas de Dixie, o sul dos Estados Unidos.

O caso ganhou enorme repercussão na época, tendo mobilizado o diretor do FBI, o famigerado J. Edgar Hoover, o procurador-Geral dos Estados Unidos Robert Kennedy, o presidente Lyndon Johnson e mais de uma centena de agentes federais. Mesmo após a localização dos corpos das três vítimas, não houve acusações perante a Justiça do Estado do Mississippi. Então, a procuradoria da República denunciou vários integrantes da KKK, incluindo o xerife do condado. Sete dos acusados foram condenados pela Justiça Federal, por crimes previstos no Título 18 do US Code, seções 242 (violação de direitos civis) e 371 (conspiração para a prática de crimes):

18 USC §242 – Deprivation of rights under color of law

Whoever, under color of any law, statute, ordinance, regulation, or custom, willfully subjects any person in any State, Territory, Commonwealth, Possession, or District to the deprivation of any rights, privileges, or immunities secured or protected by the Constitution or laws of the United States, or to different punishments, pains, or penalties, on account of such person being an alien, or by reason of his color, or race, than are prescribed for the punishment of citizens, shall be fined under this title or imprisoned not more than one year, or both; and if bodily injury results from the acts committed in violation of this section or if such acts include the use, attempted use, or threatened use of a dangerous weapon, explosives, or fire, shall be fined under this title or imprisoned not more than ten years, or both; and if death results from the acts committed in violation of this section or if such acts include kidnapping or an attempt to kidnap, aggravated sexual abuse, or an attempt to commit aggravated sexual abuse, or an attempt to kill, shall be fined under this title, or imprisoned for any term of years or for life, or both, or may be sentenced to death.

Como seria no Brasil?

No Brasil, salvo nas hipóteses recursais previstas na legislação processual – em especial o art. 593 do CPP – não é possível a repetição de julgamentos pelo mesmo fato. A proibição vem em nome da segurança jurídica e da necessidade de limitar o poder punitivo estatal. Uma vez transitada em julgado uma decisão absolutória, o Ministério Público não pode repetir a acusação. Não há bis.

Por outro lado, o rejulgamento de um mesmo fato em justiças diversas do País tampouco é permitido por qualquer lei brasileira. Assim, quem tiver sido definitivamente julgado pela Justiça Estadual não pode ser submetido a novo julgamento, pelo mesmo fato, na Justiça Federal ou na Justiça Eleitoral e vice-versa, pois as regras de adequação típica e de definição de competência comum ou especializada, quando coordenadas, impedem o concurso de “jurisdições” internas. Cada Justiça brasileira só julga o que é seu, ressalvada a Súmula 122 do STJ, que reconhece a vis atractiva do foro federal nos crimes conexos.

Porém, quanto ao non bis in idem, o art. 8º do Código Penal diz que a “pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas”, o que indica que o Estado brasileiro não considera bis in idem o julgamento de uma pessoa no Brasil e no exterior, pelo mesmo fato, pois terá havido o pronunciamento de jurisdições distintas, em sentido estrito, o que relativiza o ne bis in idem transnacional horizontal.

Tal princípio universal também está previsto no art. 4º do 7º Protocolo Opcional à Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Contudo, os Estados membros do Conselho da Europa podem reabrir um caso criminal se surgirem novas provas ou se tiver ocorrido nulidade absoluta no primeiro julgamento.

Artigo 4.º

(Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez)

1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.

2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento.

Por sua vez, o art. 14, §7º, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em vigor para o Brasil (Decreto 592/1992), estabelece que: “7. Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”.

O princípio em tela também está no art. 8º, §4º, do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), promulgada pelo Decreto 678/1992: “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

Neste sentido, o art. 593 do CPP não fere a garantia, pois permite apelação criminal da acusação obviamente antes do trânsito em julgado de decisão absolutória. Mesmo assim, conforme o §3º, aplicável aos casos do júri, “Se a apelação se fundar no nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.” Esta parte final é uma proibição de rejulgamentos pelo mérito, após o provimento da primeira apelação da acusação ou da defesa.

O art. 7º da Convenção Interamericana sobre o Cumprimento de Sentenças Penais no Exterior – Convenção de Manágua de 1993 (Decreto 5.919/2006) também afirma o princípio non bis in idem ao estatuir que “a pessoa sentenciada que for transferida conforme previsto nesta Convenção não poderá ser detida, processada ou condenada novamente no Estado receptor pelo mesmo delito que motivou a sentença imposta pelo Estado sentenciador.”

O princípio igualmente vem no art. 9º da Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal – Convenção de Nassau de 1992 (Decreto 6.340/2008). Os Estados partes podem recusar a assistência, quando o pedido de assistência for usado com o objetivo de julgar uma pessoa por um delito pelo qual essa pessoa já tiver sido previamente condenada ou absolvida num processo no Estado requerente ou requerido.

Já o art. 20 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado pelo Decreto n. 4.388/2002 reconhece a garantia contra dupla persecução criminal, mas estabelece exceções em prol da justiça penal universal e do dever internacional de persecução criminal:

Art. 20. Ne bis in idem.

1. Salvo disposição contrária do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por atos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido.

2. Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no art. 5º, relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.

3. O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos arts. 6º, 7º ou 8º, a menos que o processo nesse outro tribunal:

a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou

b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.

Finalmente, no plano interno, o art. 77, inciso V, da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro) reconhece o princípio non bis in idem e estabelece que não se concederá a extradição quando “o extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido”.

Como a federação brasileira é bastante diferente da americana, embora dela copiada, não vivenciamos o fenômeno da concorrência de jurisdições internas. Há, sim, conflitos interfederativos de competência criminal, que são resolvidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos termos do art. 105 da Constituição. A existência de um só Código Penal e de uma só legislação processual penal, códigos uniformes para todo o Brasil, simplifica o modelo nacional de partilha de jurisdição, que aqui é una. A divisão de tarefas judiciais é feita a partir do critério fundamental do interesse federal, inerente ao art. 109 da CF.

O modelo de Justiça penal dos EUA e as consequências processuais que daí derivam são fruto da formatação de sua federação, com autonomia mais pronunciada de seus Estados-membros. Na República Velha, quando a Terra de Santa Cruz chamava-se Estados Unidos do Brazil, nossas unidades federadas podiam legislar em matéria processual. Era o tempo da estadualização do processo. Tínhamos um CP nacional, o de 1890, e vários códigos processuais estaduais e uma legislação processual federal. O CPP único só foi instituído por um governo forte e centralizador, que chegou ao poder em 1937. Primeiro unificou-se o procedimento do júri, mediante o Decreto-lei 167/1938, já na ditadura do Estado Novo. Em seguida, foi outorgado o CPP de 1941, ainda hoje em vigor.

Assim, no quadro constitucional e no cenário processual penal brasileiros, é impossível um fenômeno semelhante ao que se viu no caso Rodney King (1991-1993) ou que pode vir a ocorrer no caso George Zimmerman (2012-2013), de dupla persecução criminal estadual e federal, por um mesmo evento.

E o IDC?

Já vimos que, diferentemente dos Estados Unidos, não há possibilidade de dupla persecução criminal estadual/federal, pelo mesmo fato, na jurisdição brasileira. O mais próximo disto que pode ocorrer no Brasil é a federalização de uma causa relativa a direitos humanos. Trata-se do incidente de deslocamento de competência – IDC, previsto no art. 109, V-A, da Constituição, fruto da Emenda Constitucional 45/2004.

Mediante o IDC, o procurador-Geral da República (PGR) pode provocar, perante o Superior Tribunal de Justiça, a transferência horizontal de uma causa de competência primária da Justiça estadual ou do Distrito Federal para julgamento pela Justiça Federal. Desde 2004 – quando o instituto foi introduzido na legislação brasileira – somente dois IDC foram julgados pelo STF e um terceiro está em andamento:

a) caso Dorothy Stang (IDC n. 01/PA), improcedente (aqui).

b) caso Manoel Mattos (IDC n. 02/DF), procedente (aqui)

c) caso dos moradores de rua de Goiânia (IDC n. 03/GO), pendente (aqui).

Transcrevo o acórdão do IDC 02/DF (rel. min. Laurita Vaz), no qual o STJ, a pedido da PGR, autorizou a transferência do julgamento do homicídio do advogado e ativista de direitos humanos Manoel Mattos para a Justiça Federal de João Pessoa/PB:

INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇAS ESTADUAIS DOS ESTADOS DA PARAÍBA E DE PERNAMBUCO. HOMICÍDIO DE VEREADOR, NOTÓRIO DEFENSOR DOS DIREITOS HUMANOS, AUTOR DE DIVERSAS DENÚNCIAS CONTRA A ATUAÇÃO DE GRUPOS DE EXTERMÍNIO NA FRONTEIRA DOS DOIS ESTADOS. AMEAÇAS, ATENTADOS E ASSASSINATOS CONTRA TESTEMUNHAS E DENUNCIANTES. ATENDIDOS OS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS PARA A EXCEPCIONAL MEDIDA.

1. A teor do § 5º do art. 109 da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional n.o 45/2004, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal fundamenta-se, essencialmente, em três pressupostos: a existência de grave violação a direitos humanos; o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.

2. Fatos que motivaram o pedido de deslocamento deduzido pelo Procurador-Geral da República: o advogado e vereador pernambucano MANOEL BEZERRA DE MATTOS NETO foi assassinado em 24/01/2009, no Município de Pitimbu/PB, depois de sofrer diversas ameaças e vários atentados, em decorrência, ao que tudo leva a crer, de sua persistente e conhecida atuação contra grupos de extermínio que agem impunes há mais de uma década na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, entre os Municípios de Pedras de Fogo e Itambé.

3. A existência de grave violação a direitos humanos, primeiro pressuposto, está sobejamente demonstrado: esse tipo de assassinato, pelas circunstâncias e motivação até aqui reveladas, sem dúvida, expõe uma lesão que extrapola os limites de um crime de homicídio ordinário, na medida em que fere, além do precioso bem da vida, a própria base do Estado, que é desafiado por grupos de criminosos que chamam para si as prerrogativas exclusivas dos órgãos e entes públicos, abalando sobremaneira a ordem social.

4. O risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais aos quais o Brasil anuiu (dentre eles, vale destacar, a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecido como “Pacto de San Jose da Costa Rica”) é bastante considerável, mormente pelo fato de já ter havido pronunciamentos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com expressa recomendação ao Brasil para adoção de medidas cautelares de proteção a pessoas ameaçadas pelo tão propalado grupo de extermínio atuante na divisa dos Estados da Paraíba e Pernambuco, as quais, no entanto, ou deixaram de ser cumpridas ou não foram efetivas. Além do homicídio de MANOEL MATTOS, outras três testemunhas da CPI da Câmara dos Deputados foram mortos, dentre eles LUIZ TOMÉ DA SILVA FILHO, ex-pistoleiro, que decidiu denunciar e testemunhar contra os outros delinquentes. Também FLÁVIO MANOEL DA SILVA, testemunha da CPI da Pistolagem e do Narcotráfico da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, foi assassinado a tiros em Pedra de Fogo, Paraíba, quatro dias após ter prestado depoimento à Relatora Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais. E, mais recentemente, uma das testemunhas do caso Manoel Mattos, o Maximiano Rodrigues Alves, sofreu um atentado a bala no município de Itambé, Pernambuco, e escapou por pouco. Há conhecidas ameaças de morte contra Promotores e Juízes do Estado da Paraíba, que exercem suas funções no local do crime, bem assim contra a família da vítima Manoel Mattos e contra dois Deputados Federais.

5. É notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias. Há quase um pronunciamento uníssono em favor do deslocamento da competência para a Justiça Federal, dentre eles, com especial relevo: o Ministro da Justiça; o Governador do Estado da Paraíba; o Governador de Pernambuco; a Secretaria Executiva de Justiça de Direitos Humanos; a Ordem dos Advogados do Brasil; a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Paraíba.

6. As circunstâncias apontam para a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados. Mostra-se, portanto, oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais.

Pedido ministerial parcialmente acolhido para deferir o deslocamento de competência para a Justiça Federal no Estado da Paraíba da ação penal n. 022.2009.000.127-8, a ser distribuída para o Juízo Federal Criminal com jurisdição no local do fato principal; bem como da investigação de fatos diretamente relacionados ao crime em tela. Outras medidas determinadas, nos termos do voto da Relatora (STJ, 3ª Seção, IDC 2/DF, rel. min. Laurita Vaz, j. em 27/out/2010).

Na prática, o IDC deve funcionar em situações semelhantes à que se deu no Mississippi em 1964, quando a Justiça estadual permaneceu inerte diante do homicídio dos três defensores de direitos fundamentais.

A pergunta que fica é: se os réus do caso Manuel Mattos – ou de outro qualquer similar – tivessem sido julgados pela Justiça Estadual e absolvidos (em decisão recorrível ou já transitada em julgado), seria viável, mediante o IDC, submetê-los a novo julgamento, agora perante a Justiça Federal? A causa poderia ser federalizada após o julgamento de mérito na Justiça Estadual?

Tenho um palpite, mas não o adianto. Quem se candidata a escrever um TCC?


6 comentários

  1. Caro Vladimir, muito interessante o seu texto. Quanto ao questionamento final, após uma breve reflexão, vou expressar de forma bem sucinta o meu pensamento. Entendo que é defensável a propositura de IDC mesmo havendo decisão recorrível ou definitiva sobre o caso na Justiça Estadual. Se uma das razões de ser do IDC é evitar que o Estado brasileiro seja responsabilizado internacionalmente por violação de direitos humanos, a indesejada violação poderá ocorrer tanto pela inércia ou deficiência das autoridades locais em apurar e julgar o fato, como por julgamento em que ficar caracterizado o objetivo de subtrair a responsabilidade do acusado ou que não tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça. Com efeito, as hipóteses que permitiriam um eventual novo julgamento do caso pela Justiça Federal são as mesmas que possibilitam ao TPI afastar a vedação à dupla valoração do mesmo fato (Ne bis in idem: artigo 20, 3, do Estatuto de Roma, acima transcrito). Por uma questão de lógica: se o TPI pode desconsiderar eventual coisa julgada, por que o próprio estado brasileiro, com o fim de se resguardar de futura condenação nas instâncias internacionais, não poderia? Entendo que o esforço argumentativo maior passa pela, digamos, “compatibilidade” do TPI com a Constituição da República, sobretudo em relação a temas tão sensíveis, como a própria desconsideração da coisa julgada, o instituto da entrega, dentre outros temas polêmicos que o circundam. Por isso, antes de se questionar a possibilidade de ajuizamento de IDC perante decisão de Tribunal local para levar o caso à apreciação da Justiça Federal, deve ser questionada a internalização do Estatuto de Roma no ordenamento jurídico brasileiro. Sem me alongar mais do que o devido, e respeitando os robustos argumentos contrários, entendo que o Estatuto de Roma recebeu a guarida tanto do constituinte originário (artigo 7º, ADCT) quanto do reformador (artigo 5º, § 4º, da CR), devendo, portanto, ser considerado como parte do sistema jurídico brasileiro. Aguardo o seu palpite.Forte abraço!

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  2. A título de curiosidade, a banda sublime fez uma boa música sobre a revolta do caso rodney king. Se chama april 26th 1992http://www.youtube.com/watch?v=e1dPKfxRhk0
    Em tempo, foi extremamente injusta a questão do CNMP. Fiquei indignado!
    Um forte abraço!
    Alberto Cartaxo (promotor de justiça da paraíba)

    Date: Mon, 15 Jul 2013 16:29:40 +0000
    To: cunha00@hotmail.com

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  3. Teria que ter mais conhecimento do assunto para responder mas tentarei o fazer de modo superficial. O Brasil é signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, que eu seu bojo, não traz qualquer exceção como é feita na Europa. Tanto é que vejo o artigo 8° do CP com ressalvas pois em conflito com referido pacto. Em um controle de convencionalidade (como diz o professor Valério), seja adotando a teoria de status supra legal dos tratados internacionais de direitos humanos (adotada pelo STF) ou do status constitucional (teoria material da CF, com a qual simpatizo), o artigo 8° do CP não resistiria a este filtro. Assim sendo, a priori, entendo não cabível o segundo julgamento pois não há qualquer ressalva em referido pacto e nem mesmo no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Não conheço qualquer previsão expressa neste sentido em regras legais abaixo da CF ou dos referidos pactos. Adianto que é uma opinião superficial e desprovida de conhecimento profundo sobre o assunto. Estou aberto a mudanças em virtude de um maior estudo da matéria. E diga-se de passagem, matéria interessantíssima esta citada neste post. Como sempre o mestre Vladmir sempre surpreendendo. A opinião do mestre seria de grande valia.

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