O pastor alemão e os lobos em pele de cordeiro


vaticano-25A renúncia de um papa não é coisa corriqueira. Há quase 600 anos não ocorria um evento igual ao que presenciamos. Gregório XII foi o último pontífice a abdicar lá pelo ano de 1415. Foi há tanto tempo que o Brasil nem existia. Na época, o Grande Cisma do Ocidente opôs a igreja de Roma, governada por Gregório XII, à de Avignon, onde pontificava o antipapa Bento XIII.

Agora a história se repete com outro Bento. A grande divisão do século XXI na Cúria Romana, o ente governativo da Santa Sé, parece ter sido o motivo para esta abdicação. Na sé santa da igreja dos católicos parece haver sede de poder. Não é a fé católica que está em discussão, mas a condução do governo vaticano.

Monarcas comuns renunciam rotineiramente. Papas não. Entre os soberanos de reinos não teocráticos, a renunciante mais recente foi a rainha Beatriz dos Países Baixos. No século XX, o mais famoso rei a abandonar o trono foi Eduardo VIII, do Reino Unido. Por seu ineditismo, a decisão do papa Bento XVI de deixar o cargo de sumo pontífice surpreendeu o mundo. Há quem acredite que havia pistas de que isto aconteceria. Rumores já existiam há pelo menos um ano (veja aqui). Do ponto de vista secular, as coisas não andavam fáceis no Vaticano. Em junho de 2012, a Der Spiegel escreveu:

The mood at the Vatican is apocalyptic. Pope Benedict XVI seems tired, and both unable and unwilling to seize the reins amid fierce infighting and scandal. While Vatican insiders jockey for power and speculate on his successor, Joseph Ratzinger has withdrawn to focus on his still-ambiguous legacy.”

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Um Pepino: a complexa estrutura do Vaticano

Em 1989, quando obtive a grade curricular do bacharelado na Universidade Católica do Salvador e vi que teria Direito Canônico fiquei intrigado. Para que serviria aquilo? O Código de Direito Canônico em vigor datava de 1983 e estudá-lo me parecia uma inutilidade. Talvez fosse útil para futuros advogados da área de família interessados em anular casamentos religiosos, mas para quem se sentia atraído pelo “mundo do crime” – no bom sentido, é claro -, o direito canônico parecia uma chatice. Não era.

É complexo o arranjo político-jurídico que dá personalidade jurídica internacional à Santa Sé e ao Vaticano, como entes distintos. Esta história, você lembra, remonta aos Estados Pontifícios, territórios sob domínio secular ou temporal da Santa Sé, que existiram na parte central da península itálica entre 752 e 1870 d.C., com capital em Roma.

Em 1870, a cidade eterna foi ocupada pelo Reino da Itália, que se unificava, e o papa Pio IX declarou-se prisioneiro no Vaticano. A Santa Sé queria manter seus territórios intactos e assegurar o poder temporal sobre tais terras, como sempre fora desde o século VIII, no reinado do baixinho Pepino, o Breve, rei dos francos, filho de Carlos Martel, pai de Carlos Magno e, por isto, precursor da dinastia carolíngia.

Foi a anexação de Roma ao novo reino peninsular unificado que deflagrou a Questão Romana, que só foi solucionada pelos três Pactos Lateranenses de 1929, firmados entre a Santa Sé, no pontificado de Pio XI, e o Reino da Itália, representada pelo primeiro ministro Benito Mussolini, em nome do rei Vítor Emanuel III.

Os Estados Papais desapareceram, mas o chamado Patrimônio de São Pedro se manteve, embora em reduzida extensão, no Vaticano e em outras propriedades imobiliárias na Itália. A riqueza da Igreja, porém, continuou intacta em outros pontos do globo, com inúmeros imóveis na Europa e na América Latina, em nome de congregações, ordens religiosas ou entidades clericais, além de outros tantos geridos pela Administração do Patrimônio da Sé Apostólica – APSA, uma entidade governamental vaticana. Muitos desses próprios foram adquiridos a partir de 1929 com a indenização paga pela Itália, conforme determinava o terceiro pacto lateranense, como compensação pela incorporação dos antigos territórios pontifícios.

Hoje o Vaticano é um enclave de 44 hectares em Roma. Trata-se do menor país do mundo, em extensão e em população. Cerca de 800 pessoas vivem lá. Apesar disto, mais de 18 milhões de peregrinos e turistas visitam a Basílica de São Pedro e os museus do Vaticano a cada ano.

Concomitantemente, o Tratado de Latrão de 1929 criou a Cidade Estado do Vaticano e conferiu personalidade jurídica de direito internacional público à Santa Sé, tornando-a a única entidade religiosa do planeta a ser reconhecida como um Estado soberano. O papa, considerado o sucessor de Pedro para os católicos, foi reconhecido como chefe de Estado e lhe foram conferidas imunidades pessoais. Sendo assim, o papa não está sujeito a persecução criminal na Itália, gozando de imunidade em relação à jurisdição local.

Também foram concedidas imunidades a propriedades da Santa Sé na Itália, como o palácio de Castelgandolfo e as basílicas de São João de Latrão, Santa Maria Maior e São Paulo Extramuros. Tais exclaves do Vaticano não se submetem à jurisdição italiana. Se um crime ocorre em qualquer deles, cabe à Justiça vaticana julgar o fato.

O tratado de 1929 também garantiu aos cardeais da Igreja Católica, mesmo se não italianos, plena liberdade de ingresso e trânsito no território da Itália e imunidades pessoais durante a sé vacante, os conclaves e os concílios, de modo a não prejudicar o governo da Santa Sé.

Diferentemente do que ocorre noutras nações, a cidadania do Vaticano não se obtém nem por ius sanguinis nem por ius soli. A nacionalidade vaticana é determinada pelo critério ius officii, ou seja, pelo estado clerical. Somente quem está a serviço da Santa Sé recebe tal cidadania, que é perdida com o fim da relação funcional. Logo, o papa, qualquer que seja sua nacionalidade de origem, é sempre o primeiro cidadão vaticano. Os cardeais também são cidadãos se residirem no Vaticano ou em Roma. Também têm a nacionalidade vaticana os membros do Corpo Diplomático, especialmente os núncios apostólicos, enviados pela Santa Sé aos 179 países com os quais o Vaticano mantém relações diplomáticas.

Regida pela Lei Fundamental de 2000, a Cidade Estado do Vaticano é uma monarquia teocrática diferente das outras porque não há sucessão dinástica ou sanguínea. O substituto do papa é escolhido por eleição, em conclave. Somente cardeais com menos de 80 anos têm direito a voto. Atualmente, o colégio de cardeais tem 117 membros. São eles os príncipes da Igreja.

Os poderes executivo, legislativo e judiciário não existem como tais, pois suas funções estão enfeixadas nas mãos do papa, que os delega a várias entidades na Santa Sé e na Cidade do Vaticano, chamados dicastérios e tribunais. Segundo o art. 1º da Lei Fundamental de 2000: “O Sumo Pontífice, Soberano da Cidade Estado do Vaticano, exerce em toda a plenitude os poderes legislativo, executivo e judiciário”.

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vaticanoA legislação vaticana

De acordo com a Lei sobre as Fontes do Direito – Lei da Cidade Estado do Vaticano n. LXXI de 2008 (legge sulle fonti del diritto del 2008), o Vaticano tem seu próprio ordenamento jurídico, mas a legislação italiana é aplicável no caso de lacunas normativas. Assim, certas leis da República da Itália são recebidas no Estado do Vaticano para completar omissões, salvo em matéria de casamento, cidadania e adoção, cuja regulação é reservada ao direito canônico.

Algo pitoresco se dá no âmbito criminal. Não, desfaça a ideia de que na Igreja ainda são aplicadas sanções medievais, próprias da Inquisição. A lei penal em vigor é antiga, mas não tanto assim. O Código Penal italiano de 1889 e o Código de Processo Penal peninsular de 1913 acham-se em vigor no Vaticano, com as modificações legislativas realizadas pela Santa Sé a partir de 1929. Há penas alternativas e a Lei de 2008 realça os fins educativos da pena.

A sanção capital existiu no período de 1929-1969, quando foi abolida por Paulo VI, mas jamais foi aplicada no Vaticano. Era cabível no caso de pontificídio, o homicídio do papa, nos termos do art. 8º do Tratado de Latrão. Vale lembrar que o único atentado comprovado contra a vida de um papa ocorreu em maio de 1981, quando o turco Mehmet Ali Ağca disparou tiros contra João Paulo II, na Praça de São Pedro, sítio que integra o Vaticano mas cuja segurança pública é compartilhada com a Itália. Preso pela polícia vaticana, Ağca foi entregue à Itália (o que é possível de acordo com os arts. 3º e 22 do Tratado de 1929), foi julgado pela Justiça italiana e condenado a prisão perpétua. A pena capital já não estava prevista nem na Itália nem no Vaticano.

Os arts. 7º e 8º da Lei sobre as Fontes do Direito regulam a matéria:

Art. 7

(Norme penali)

1. Fino a che non si provveda a nuova definizione del sistema penale, si osserva, sotto le riserve specificate nell’art. 3, il Codice penale italiano recepito con la legge 7 giugno 1929, n. II, come modificato ed integrato dalle leggi vaticane.

2. La legge prevede i casi nei quali alle pene detentive possono essere sostituite sanzioni alternative e ne indica la natura, avuta presente la funzione educativa della pena.

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Art. 8

(Norme di procedura penale)

Sino a che non si provveda a nuova disciplina del rito, si osserva, sotto le riserve specificate nell’art. 3, il Codice di procedura penale italiano recepito con la legge 7 giugno 1929, n. II, come modificato ed integrato dalle leggi vaticane.

O CP italiano de 1889 ficou conhecido como Código Zanardelli, em homenagem ao ministro da Justiça italiano Giuseppe Zanardelli. Ao seu tempo, era o código mais liberal da Europa e foi o primeiro da Itália unificada, onde vigorou de 1890 a 1930, tendo sido substituído na Itália pelo Código Rocco, em referência a Alberto Rocco, ministro da Justiça do governo Mussolini. Diga-se en passant que este último código italiano influenciou o Código Penal brasileiro de 1940, ainda em vigor no Brasil.

Nos últimos anos, a ordem jurídico-penal vaticana tem sido atualizada. Responsável por intermediar “julgamentos no céu”, a Santa Sé não desdenha os julgamentos terrenos. No campo da lavagem de dinheiro, vige a Lei 127/2010 (Lei da Cidade Estado do Vaticano n. CXXVII), modificada pela Lei 166/2012 (Lei CLXVI). Tal diploma introduziu alterações relevantes no Código Penal de 1889, para adequar a legislação vaticana às recomendações do GAFI e aos tratados internacionais em matéria penal de que o Estado faz parte.

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Estrutura da Justiça criminal no Vaticano

Embora o papa conduza uma monarquia absoluta e não exista partição de poderes nem separação entre o Estado e a Igreja, os tribunais e o ministério público têm certa independência. Contudo, o Sumo Pontífice pode interferir para encerrar um procedimento criminal. Com 18 milhões de visitantes por ano, há um certo número de crimes no território vaticano, especialmente furtos.

Segundo a Lei Orgânica do Sistema Judiciário da Cidade Estado do Vaticano (Lei CXIX de 1988), são quatro os principais órgãos judiciais:

a) o Juízo Singular, com competência para pequenas causas e infrações de trânsito;

b) o Tribunal do Vaticano, formado por um presidente e três juízes, com competência em primeira instância em causas cíveis e criminais, inclusive para acusações de lavagem de dinheiro.

c) a Corte de Apelação, formada por quatro juízes (um presidente), com mandato de 5 anos, que detêm competências recursais e disciplinares.

d) a Corte de Cassação, a corte máxima do Vaticano em matéria não-eclesiástica, é composta por três cardeais que também integram um órgão canônico, o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. É da competência da Cassação julgar os recursos contra as decisões da Corte de Apelação e as causas criminais contra cardeais e bispos (foro especial por prerrogativa de função), conforme o art. 23 da Lei Orgânica Judicial:

Art. 23.

A Corte de Cassação, com o prévio consentimento do papa, é o único tribunal competente para julgar os mais eminentes carderais e os mais excelentes bispos nas causas criminais, além daquelas causas indicadas no Cânon 1405, parágrafo 1º do Código de Direito Canônico.

Conforme a Lei CXIX de 1988, o Ministério Público é exercido em todas as instâncias pelo promotor de Justiça (promotore di giustizia em italiano, ou promotor iustitiae em latim) em matéria civil e criminal. O nome do cargo é o mesmo usado no Brasil para os membros do Ministério Público estadual, o que não deixa de ser curioso, porque nos países de origem latina os representantes da acusação pública normalmente são chamados de procuradores da República. Assim é na própria Itália, na França e em Portugal.

O promotor de Justiça vaticano atua perante o Juízo Singular e o Tribunal de primeira instância, assim como nas cortes superiores. O promotor é indicado pelo papa (art. 7º), mas exerce suas funções com relativa autonomia. Grande parte da instrução preparatória é feita pelo próprio Ministério Público, com o apoio da Polícia. Há um juiz de instrução (giudice istruttore), que acolhe ou não a denúncia (requisitoria) e, mediante sentenza de rinvio, manda o réu a julgamento no tribunal colegiado (Tribunal da Cidade Estado do Vaticano), onde três juízes decidem in camera, após o procedimento contraditório. O sistema de inquirição é presidencialista, pois nele as perguntas às testemunhas e ao réu são feitas por intermédio do juiz-presidente do Tribunal, tal como no Brasil antes da minirreforma de 2008. A prova pode ser incorporada ao processo por leitura, mas os depoimentos de testemunhas e do acusado podem ser repetidos por decisão da Corte ou a requerimento das partes. Admite-se a confissão, mas seu valor probatório é relativo.

Não existe Defensoria Pública. Para atuar como advogado nas cortes do Vaticano, é preciso estar inscrito na lista ofical da Rota Romana (uma das cortes canônicas) e ter formação no regime de civil law.

A polícia é dividida em duas corporações: a) Guarda Suíça Pontifícia, que cuida da proteção pessoal do papa e do patrimônio da Santa Sé; e b) a Gendarmeria (Corpo della Gendarmeria dello Stato della Città del Vaticano) que realiza policiamento ostensivo na Cidade do Vaticano, responsabiliza-se pela segurança viária e pelos acessos fronteiriços e procede a investigações criminais sob a direção do promotore di giustizia.

Talvez por causa da estrutura exígua do Vaticano, à sua natureza especial e à inexistência de presídios em seu território, algumas causas criminais podem ser transferidas do sistema judicial vaticano para a Justiça penal italiana, conforme autoriza o art. 22 do Tratado de Latrão. Este pacto também determina que o Vaticano extradite para a Itália pessoas que cometeram crimes em solo italiano e que se refugiem no pequeno país ou em seus exclaves imunes localizados fora dos muros do Vaticano.

Art. 22

At the request of the Holy See, or by its delegation which may be given in individuals cases or permanently, Italy will provide within its territory for the punishment of crimes committed within Vatican City, except when the author of the crime will have taken refuge in Italian territory, in which event he will be certainly prosecuted according to the provisions of Italian laws.

The Holy See will hand over to the Italian State persons who may have taken refuge within Vatican City and who have been accused of acts, committed within Italian territory, which are considered to be criminal by the laws of both States.

The same provisions will apply in regard to persons accused of crimes who may have taken refuge within the buildings declared to be immune in Art. 15 hereof, unless the persons in charge of such buildings prefer to invite the Italian police agents to enter them in order to arrest such persons.

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Os tribunais eclesiásticos da Santa Sé

Ao lado dessas cortes “civis”, há ainda os três tribunais da Cúria Romana, competentes para assuntos da Santa Sé, temas religiosos e violações do Código de Direito Canônico. São eles a) a Penitenciária Apostólica; b) o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica; e, o mais conhecido dos três: c) o Tribunal da Rota Romana.

Sua abrangência é global, porque a essas cortes estão sujeitos todos os sacerdotes católicos espalhados pelo mundo e também causas dos leigos. Tais tribunais não exercem jurisdição sobre temas criminais (esta competência é dos tribunais não-eclesiásticos), mas são responsáveis por exigir o cumprimento das regras do Código Canônico que também têm repercussão criminal. Exemplo é a questão da pedofilia quando praticada por padres ou outros clérigos. Tais temas, além de serem da jurisdição das Justiças criminais nacionais (do país onde o crime ocorreu), são também levados a julgamento religioso na diocese do fato com recurso para os órgãos da Cúria, depois de verificados pela Congregação para a Doutrina da Fé. Esta Congregatio Pro Doctrina Fidei substituiu a Suprema e Sacra Congregação da Inquisição Universal, mais conhecida como Santa Inquisição. O cardeal Ratzinger dirigiu tal entidade de 1981 a 2005, quando se tornou Bento XVI.

O Código Canônico de 1983 prevê as várias infrações canônicas (ali chamadas de “crimes”), regula penas e tem regras para o processo judicial, no qual a acusação é entregue ao promotor de Justiça (cânon 1430), nomeado pelo bispo da diocese. A pena mais grave é a demissão do estado clerical (cânon 1336). De acordo com o cânon 1341, a ação penal canônica não é obrigatória:

Cân. 1341 — O Ordinário somente cuide de promover o processo judicial ou administrativo para aplicar ou declarar penas, quando tiver verificado que nem a correcção fraterna nem a repreensão nem outros meios da solicitude pastoral são suficientes para reparar o escândalo, restabelecer a justiça, e emendar o réu.

Segundo o cânon 1725, “Na discussão da causa, quer se faça por escrito, quer oralmente, o acusado tem sempre direito a que ele ou o seu advogado ou procurador escreva ou fale em último lugar”, o que é uma regra processual garantista, por assim dizer. O réu sempre fala por último. Os recursos dessas causas canônicas são julgados pela Rota Romana.

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Pedofilia: um pecado capital

Baseada no cânon 332 do Código de Direito Canônico, a renúncia do Papa Bento XVI só terá efeito no dia 28/fev, mas inúmeras especulações sobre os motivos que levaram o cardeal Joseph Raztinger a renunciar estão em curso. Problemas de saúde do pontífice ou problemas no governo da Sé e do Vaticano?

A questão da pedofilia, de que são suspeitos alguns sacerdotes, vem sendo enfrentada há alguns anos e não creio que tenha sido o único móvel para a adbicação papal, nem o mais importante deles. Este tema é desgastante para Bento XVI, porque Ratzinger dirigiu a Congregação para a Doutrina da Fé, responsável por apurar tais abusos. Mas a Cúria tem demonstrado disposição para enfrentar o problema e isto não justificaria as declarações do próprio papa quanto à existência de cizânia no Vaticano.

Segundo o art. 48 da Constituição Apostólica Pastor Bonus, de 1988, a tarefa da Congregação para a Doutrina da Fé é promover e salvaguardar a doutrina sobre a fé e a moral católica em todo o mundo“. Assim, são de sua competência os chamados delicta graviora, ou seja, temas como as heresias, as apostasias e a pedofilia na Igreja. Um motu proprio papal assinado em 2001 afirmou competir a este dicastério da Cúria a apuração de abusos sexuais. Normalmente, o julgamento canônico ocorre na diocese onde o fato se deu. A prescrição da infração eclesiástica é de 10 anos contados a partir do dia em que a vítima do abuso sexual completa 18 anos. A infração canônica da pedofilia está prevista no cânon 1395:

Cân. 1395 — O clérigo concubinário, fora do caso referido no cân. 1394, e o clérigo que permanecer com escândalo em outro pecado grave externo contra o sexto mandamento do Decálogo, seja punido com suspensão, e se perseverar no delito depois de admoestado, podem ser-lhe acrescentadas gradualmente outras penas até à demissão do estado clerical.
§ 2. O clérigo que, por outra forma, delinquir contra o sexto mandamento do Decálogo, se o delito for perpetrado com violência ou ameaças ou publicamente ou com um menor de dezasseis anos, seja punido com penas justas, sem excluir, se o caso o requerer, a demissão do estado clerical.

Os principais problemas para a elucidação das acusações de pedofilia supostamente praticadas por clérigos são o medo das vítimas e o sigilo das confissões. O sacerdote que toma a confissão de um padre pedófilo não está autorizado a denunciá-lo às autoridades civis. Alguns países têm regras específicas que determinam que autoridades religiosas reportem tais abusos; outros não. Nestes, é preciso que a vítima tome a iniciativa de noticiar o crime, o que é muito difícil pois tais infrações são psicologicamente devastadoras. No Brasil, a divulgação de segredo confessional pode conflitar com o art. 154 do CP:

Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

Tal dispostivo, por sua vez, deve ser lido em conjunto com o art. 5º – que trata da proteção integral – e com o art.245 da Lei 8.069/90 (ECA), que pune o médico, o professor ou o responsável por estabelecimento de atenção a saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche (o que inclui santas casas e escolas religiosas), que deixa de comunicar à autoridade competente “os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente“.

Em dezembro de 2012, o papa Bento XVI nomeou o respeitado padre americano Robert Oliver como novo promotor de Justiça junto à Congregação para a Doutrina da Fé. Mas as coisas pioraram, pois, com a renúncia do papa, um dos sacerdotes acusados de acobertar casos de abuso sexual na Igreja poderá votar no conclave que elegerá o novo pontífice em 2013. Trata-se do cardeal Roger Mahony, ex-arcebispo de Los Angeles, maior arquidiocese dos Estados Unidos. Pesa contra ele a suspeita de que teria ocultado 129 casos ao longo dos anos, o que gerou um grande escândalo naquele país (aqui). Grupos religiosos da própria Igreja, como os “Católicos Unidos”, querem impedi-lo de juntar-se aos outros 116 cardeais eleitores no conclave de março. Seria um caso inédito de “eleitor ficha suja” (aqui).

No passado, outro alto dignitário da Igreja Católica nos EUA foi acusado de semelhante negligência em relação a um padre pedófilo de sua diocese. Por isto, o cardeal Bernard Law, ex-arcebispo de Boston, renunciou ao seu posto em 2002, mas foi premiado pela Cúria Romana com uma posição na Basílica de Santa Maria Maior, exclave vaticano, e, consequentemente, livrou-se da jurisdição norte-americana (aqui). Em 2005, Law foi um dos participantes do conclave que elegeu Bento XVI. Não foi condenado por qualquer tribunal.

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ÍndiceAs suspeitas de lavagem de dinheiro

Aqui na Cidade de São Salvador da Bahia, terra onde dizem haver 365 templos católicos (nunca os contei), as palavras “lavagem” e “igreja” só se “encontram” no Bonfim. No Vaticano, contudo, não tem sido assim.

A Igreja Católica conforta milhões de pessoas em todo mundo. A relevância de suas obras sociais é inquestionável. Pessoas assistidas e almas consoladas pela doutrina e instituições católicas espalham-se por todo o planeta. Mas há também aparentes disputas por poder. O que se sabe é que a liderança temporal da Cidade Estado não tem sido uma tarefa fácil para o papa. Considerado um grande teólogo, Ratzinger é um homem de bem. Obviamente a resistência física desse conservador octogenário já não é a mesma. Enfrentar problemas mundanos da gestão pública tira a saúde de qualquer um. Para além dos conflitos ideológicos entre o Movimento Comunhão e Libertação e a Opus Dei e a gestão dos temas religiosos que são a principal atividade do papa e da Cúria, a Santa Sé tem de lidar com problemas do dia-a-dia, próprios a qualquer governo. Com isto vêm as disputas por poder político interno. Teoricamente, ali todos falam latim, mas poucos se entendem.

Nos últimos 30 anos, o principal desses problemas temporais tem sido o Banco do Vaticano. Oficialmente chamado de Instituto para as Obras Religiosas (IOR) (Istituto per le Opere di Religione), esta instituição financeira oficial, criada em 1942 pelo Papa Pio XII para gerir recursos de ordens religiosas e sacerdotes católicos, vem passando por seguidos percalços.

Em 1948, logo após a 2ª Guerra Mundial, o monsenhor Edoardo Prettner Cippico foi preso (aqui) e julgado na Itália por desviar alguns milhões de liras italianas de contas mantidas no IOR.

Então, veio o tempo do mafioso e maçom Michele Sindona, nomeado em 1968 para o conselho de administração do Banco do Vaticano e depois condenado pela United States District Court for the Southern Distric of New York, a cumprir 25 anos de prisão por fraude, crimes financeiros e falso testemunho, na gestão do seu Franklin National Bank (aqui),

Na Itália, Sindona foi sentenciado a prisão perpétua pelo homicídio de Giorgio Ambrosoli, ocorrido em Milão em 1979 (aqui). A vítima, um advogado, fora liquidante da Banca Privata Italiana, instituição que também pertencia ao mafioso e quebrou em 1974. Ambrosoli seria testemunha de acusação contra Sindona no processo criminal norte-americano. Após cumprir parte de sua pena nos EUA, Sindona foi extraditado para a Itália e morreria em 1986, em circunstâncias misteriosas, apenas quatro dias após seu veredicto milanês. Aparentemente, o banqueiro foi envenenado na prisão com uma xícara de café com cianeto (aqui).

Quatro anos antes, em 1982, ocorreu outro grande escândalo de lavagem de dinheiro (riciclaggio di denaro, como dizem os italianos), que envolveu certas autoridades do Banco do Vaticano. O caso levou à quebra do Banco Ambrosiano. O então poderoso cardeal Paul Marcinkus, já falecido, dirigia o IOR. A instituição mantinha relações financeiras obscuras com o Ambrosiano, maior banco privado da Itália, então dirigido por Roberto Calvi. O Ambrosiano tinha no Banco do Vaticano o seu maior acionista. Com a liquidação, o prejuízo financeiro para a Santa Sé foi gigantesco.

Marcinkus chegou a ser investigado pelo Ministério Público italiano por suspeita de gestão fraudulenta de instituição financeira, mas o Vaticano opôs sua imunidade à jurisdição local (art. 11 do Tratado de 1929), já que o IOR é uma instituição oficial do pequeno Estado. Marcinkus morreu em 2006. Nunca foi condenado por qualquer crime. Pelo menos nos tribunais terrenos. Do outro lado, nunca se sabe.

Com a estrondosa quebra, Roberto Calvi, apelidado de “banqueiro de Deus”, fugiu para Londres e enforcou-se ou foi enforcado sob a ponte Blackfriars, a ponte dos frades negros, situada sobre o Tâmisa. A investigação levantou suspeitas de que a loja maçônica Propaganda Due (P2), do investidor Licio Gelli, estaria envolvida na morte de Calvi. Em 1991, seguindo os passos de Tommaso Buscetta, o ex-mafioso Francesco Marino Mannoia tornou-se réu colaborador (pentito) da Justiça e declarou a procuradores italianos que Calvi fora assassinado por ter perdido aplicações da Cosa Nostra no Banco Ambrosiano. Um dos primeiros magistrados a interrogá-lo foi o procurador Giovane Falcone. Anos depois, as acusações do Pubblico Ministero contra os suspeitos do homicídio de Calvi foram julgadas em cortes italianas e os réus foram absolvidos. Até hoje persiste o mistério: quem matou Calvi? Por que ele se enforcaria numa ponte com um nome tão simbólico? Por que em seu corpo foram encontrados tijolos e uma grande soma em dinheiro? O IOR aproveita-se de sua imunidade à jurisdição estrangeira para reciclar capitais de origem obscura?

Ao longo dos anos, a falta de uma lei de lavagem de ativos, a inexistência de uma unidade de inteligência financeira e a pouca transparência de sua instituição financeira concorreram para situar o Vaticano na lista de países potencialmente propícios para a lavagem de ativos. Ou seja, a Santa Sé entrou num “index”, na lista negra do GAFI. Mas isto mudou com a ascensão de Bento XVI. Diz o jornalista Gianluigi Nuzzi, autor de “Sua Santidade” (Sua Santità: le carte segrete di Benedetto XVI):

“Até há poucos anos atrás o Vaticano era um paraíso fiscal. O crime de lavagem de dinheiro só foi introduzido em 2010. O IOR [Instituto das Obras Religiosas – Banco do Vaticano], nas décadas de 80 e 90, “lavou” dinheiro da máfia. É algo que vem escrito nas sentenças que os juízes emitiram após a morte do presidente do IOR [Roberto Calvi], encontrado morto, em Londres, em 1982. Na década de 90, o IOR “lavou” dinheiro da corrupção política. Era um banco offshore da Europa. Só depois do 11 de setembro [de 2001], com as políticas de transparência exigidas pelos americanos e o Banco Mundial, que motivaram os governos europeus e o Banco Central Europeu, o IOR começou a atuar de acordo com as regras financeiras, para evitar que o pusessem numa lista negra, que o excluiria de qualquer atividade financeira com os países mais importantes.”.

Não se sabe se essas suspeitas são verdadeiras. Mas os problemas em torno do IOR se acentuaram em 2010, quando a Justiça romana determinou o bloqueio de 23 milhões de euros em transações realizadas pelo Banco do Vaticano, por falta de identificação completa dos originadores e dos destinatários das transferências, uma irregularidade que prejudica a prevenção à lavagem de capitais e o rastreamento dos autores de crimes antecedentes. Esta e outras dificuldades operacionais levaram à demissão de Ettore Gotti Tedeschi, então diretor do IOR e homem de confiança de Bento XVI. Era maio de 2012, e as más línguas atribuem sua queda ao Secretário de Estado do Vaticano, segundo nome da Cúria e atual camerlengo, o cardeal Tarcísio Bertone.

Para piorar, dias depois dessa demissão, procuradores italianos realizaram busca e apreensão na residência de Gotti Tedeschi e apreenderam documentos sobre sua gestão no IOR. A investigação não estava relacionada ao Vaticano; dizia respeito a um suposto esquema de corrupção envolvendo a empresa Finmeccanica, que atua na indústria aeroespacial e de defesa. Coincidentemente, neste mês de fev/2013, Giuseppe Orsi, diretor da empresa, também renunciou ao seu cargo.

Após a apreensão na casa de Gotti Tedeschi, a Santa Sé alertou a Itália que parte desses papeis estariam protegidos por sua imunidade jurisdicional como Estado soberano. Há notícias de que o ex-diretor do IOR teria montado um dossiê sobre o Banco do Vaticano, para divulgação caso fosse assassinado. O que teria levado à saída do diretor Gotti Tedeschi? Sua tentativa de impor transparência aos negócios do IOR e adequá-los à normativa europeia? Há quem o veja como um gestor incapaz. Outros querem vê-lo como um potencial colaborador da Justiça, um qualificado whistleblower, cujas revelações poderiam ajudar muito a livrar a Cúria de suas ervas daninhas.

Foi justamente para evitar negócios obscuros no Banco do do Vaticano que o papa Bento XVI aprovou a Lei de Lavagem de Dinheiro em 2010 e criou a Autoridade de Informação Financeira (Autorità di Informazione Finanzaria), órgão responsável pela política de prevenção à lavagem de dinheiro (AML) e ao financiamento do terrorismo (CFT) no Vaticano. É um ente semelhante ao nosso COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Além disso, a Santa Sé, durante o papado de Ratzinger, passou a fazer parte das Convenções de Viena e Palermo e da Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, o que é sinal evidente do compromisso vaticano de harmonizar sua legislação penal e processual penal em matéria de AML/CTF.

Em 2009, em sua terceira encíclia, Caritas in Veritate, Bento XVI pontificou sobre a transparência: “O grande desafio que temos diante de nós — resultante das problemáticas do desenvolvimento neste tempo de globalização, mas revestindo-se de maior exigência com a crise económico-financeira — é mostrar, a nível tanto de pensamento como de comportamentos, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da própria razão económica. Trata-se de uma exigência simultaneamente da caridade e da verdade.”. E completou: “Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres.”

Como resultado dos esforços do sumo pontífice em prol dessa transparência, em março de 2012, o Departamento de Estado do governo norte-americano divulgou a sua tradicional International Narcotics Control Strategy Report, que classifica países em 3 categorias em relação aos riscos de branqueamento de capitais: of primary concern (de atenção prioritária), of concern (de atenção) e monitored (monitorados). O Vaticano está na segunda categoria, ao lado do Chile, Egito, Hungria, Irlanda e Polônia, países considerados razoavelmente vulneráveis à lavagem de ativos. Comparemos com o Brasil. No mesmo relatório, nosso País está na categoria de primary concern, junto à Espanha, por exemplo. Segundo os norte-americanos, aqui se lava mais branco.

Na sequência, em julho de 2012, o Comitê de Especialistas na Avaliação de Medidas Anti-lavagem de Dinheiro e contra o Financiamento do Terrorismo (Committee of Experts on the Evaluation of Anti-Money Laundering Measures and the Financing of Terrorism) – Moneyval, órgão do Conselho da Europa, divulgou seu primeiro relatório sobre a Santa Sé e a Cidade Estado do Vaticano. O informe do Moneyval considera haver risco muito baixo de ocorrência de lavagem de dinheiro no país da Igreja.

Porém, em janeiro/2013 o Banco da Itália (banco central) proibiu todas as operações eletrônicas e em cartões de crédito, inclusive em caixas automáticos, no Vaticano, por descumprimento de regras de compliance, destinadas à prevenção da lavagem de dinheiro. Vale lembrar que desde maio de 2012, o Banco do Vaticano estava sem diretor. Tal posição só foi ocupada em fevereiro de 2013. Dias após renunciar ao supremo pontificado, Bento XVI nomeou o advogado alemão Ernst von Freyberg para dirigir o IOR. E nova polêmica se instalou, pois o nomeado é dirigente do estaleiro Blohm + Voss que constrói navios comuns, mas também naus de guerra. Com isto, mais pólvora ingressou no debate. E até que se tenha um novo papa, essa fumaça sobre a Cúria – tal como a que se expele durante o conclave – continua sendo preta.

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“Será o Benedito”? O caso Vatileaks

Ehemaliger Kammerdiener des Papstes vor GerichtComo se não bastassem os problemas com o Banco do Vaticano e com o tema da pedofilia, o papa Bento XVI enfrentou outro dissabor. Paolo Gabrielle, seu mordomo pessoal, foi o pivô de um estrondoso crime na Santa Sé: a subtração de correspondências pessoais do sumo pontífice.

O caso veio à tona em janeiro de 2012. O camareiro papal Paolo Gabrielle e seu cúmplice, Claudio Sciarpelletti, técnico em informática da Secretaria de Estado do Vaticano, acabaram presos em maio de 2012 (mesmo mês da queda de Gotti Tedeschi) e foram acusados pelo promotor de Justiça vaticano de haverem praticado, respectivamente, o crime de furto agravado de documentos reservados, previsto nos arts. 402 a 404 do CP de 1889 (o que seria para nós o delito de furto qualificado pelo abuso de confiança) e o crime de favorecimento real (art. 225 do CP vaticano). Leia aqui em italiano a denúncia do MP vaticano e a pronúncia do juiz instrutor (giudice istruttore), Piero Antonio Bonnet, que mandou o caso a julgamento pelo Tribunal da Cidade Estado, em juízo trino.

Os documentos copiados do apartamento papal foram entregues à imprensa italiana, no escândalo conhecido por Vatileaks. Alguns dos papeis mais importantes consistiam em cartas enviadas pelo arcebispo Carlo Maria Viganò ao papa e ao cardeal Bertone. Viganó ocupava posição central no Governatorato vaticano e cuidava da administração do país até ser transferido para os Estados Unidos, aparentemente por ter exposto uma suposta teia de corrupção e clientelismo em licitações e contratos públicos do Estado do Vaticano. Na carta de 2011 ao papa, Viganó disse:

“Blessed Father, my transfer in this moment would provoke confusion and discouragement for those who thought it was possible to clean up so many situations of corruption and abuse of office.”

«Beatissimo Padre, un mio trasferimento in questo momento provocherebbe smarrimento e scoramento in quanti hanno creduto fosse possibile risanare tante situazioni di corruzione e prevaricazione da tempo radicate nella gestione delle diverse Direzioni”.

Ao que parece, na Cúria Romana há aqueles que servem a Deus. Outros porém talvez sirvam a Mamon. É uma pesada sina para uma religião com tantos bons frutos.

Na sequência desses eventos, em maio de 2012, Bento XVI declarou: “The events of recent days about the Curia and my collaborators have brought sadness in my heart…I want to renew my trust in and encouragement of my closest collaborators and all those who every day, with loyalty and a spirit of sacrifice and in silence, help me fulfill my ministry“. Obviamente, o papa referia-se à queda de Gotti Tedeschi como dirigente do IOR e à prisão de seu camareiro pessoal, Paolo Gabrielle.

Num dos processos penais mais importantes da história do Vaticano, o réu Paolo Gabriele confessou o crime, mas disse ter agido por amor à Igreja e pelo desejo de revelar suposta corrupção no Vaticano e por acreditar que o papa estaria sendo manipulado. O Tribunal do Vaticano, composto pelos juízes Giuseppe Dalla Torre, Paolo Papanti-Pelletier e Venerando Marano, ouviu o libelo sustentado pelo promotore di Giustizia Nicola Picardi e a defesa patrocinada pelos advogados Cristiana Arru e Gianluca Benedetti. No Vaticano, os debates do procedimento acusatório são públicos, mas a corte decide in camera, por maioria, tendo em conta o CPP italiano de 1913 e o CP italiano de 1889.

O veredicto de Paolo Gabrielle saiu em outubro de 2012: condenado a 18 meses de prisão. Durante alguns meses daquele ano, Gabrielle foi preso solitário em uma das quatro celas que existem no Vaticano. Era o detento número um. E único. A defesa não recorreu da sentença.

Em dezembro de 2012, como era esperado, Bento XVI concedeu-lhe graça, sendo extinta sua punibilidade – tal como ocorreria com base no art. 107, inciso II, do CP brasileiro. Obviamente, Gabrielle perdeu o emprego na Santa Sé e deixou de ser cidadão vaticano. Não houve contra ele nenhuma Santa Inquisição e suas suposições por enquanto cairam no vazio. Gotti Tedeschi ficou sem o cargo no IOR e o Banco do Vaticano tem novo presidente. O arcebispo Viganò foi “desterrado” para os Estados Unidos. Bento XVI renunciou. E o secretário de Estado, Sua Eminência Reverendíssima Tarcisio cardeal Bertone, continua poderoso, sem que haja qualquer condenação ou prova contra ele. Será que o mordomo era mesmo o culpado? Ou o pastor alemão foi cassado (sic) por lobos em pele de cordeiro? Como no improvável livro de Dan Brown, a resposta talvez não esteja com o camareiro, mas com o camerlengo.

7 comentários

  1. Assunto complexo e espinhoso esse. A frase final foi de rara oportunidade, associando-se plenamente ao contexto. Excelente, como sempre!

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  2. Jamais ousaria, por ser analfabeta em tal seara, comentar sob os aspectos jurisdicionais do artigo, e nem mesmo nas questões do Vaticano, apesar de ser católica e ter um pouco de interesse em leituras correlatas. Minha área é outra, e nela uma das coisas que faço é análise de discurso, e no “discurso” escrito, a técnica do negrito é perfeita para que o autor designe partes do seu texto que, lidas apenas essas, não somente sejam destacadas ao léu, mas ofereçam uma síntese passível de compreensão do artigo inteiro. Ao ler seus negritos, garanto: o cenário, pela opinião aqui exposta, ficou assustador. Arrisco afirmar que não foi essa a intenção do doutor. Mas nos brindou com um quadro muito pior do que o texto inteiro faz crer que seja. É para se pensar, mesmo.

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