Grampos telefônicos: Pororoca contra Furacão


A jurisprudência do STF
A jurisprudência do STF     (foto: educarbrasil.com.br)

Não é partida de um campeonato de forças da natureza. O tema é investigação criminal na visão da Suprema Corte. Uma pororoca teria varrido um importante precedente do STF. A decisão da Corte sobre a desnecessidade de transcrição integral das escutas telefônicas, adotada na Operação Furacão em 2008 parece ter sido engolida pela efeitos da Operação Pororoca de 2004. É o que dizem.

Na Operação Furacão, objeto do Inquérito 2424/RJ (rel. Cezar Peluso), o STF decidiu que a Polícia e o Ministério Público não precisavam transcrever inteiramente os diálogos interceptados com base na Lei 9.296/96. Segundo este que parecia ser um leading case na matéria, bastava entregar à defesa cópia integral dos áudios, em CD ou DVD, para dar-se lugar ao contraditório. A ementa do acórdão no Inquérito 2424 é longa. O trecho que importa é este:

9. PROVA. Criminal. Interceptação telefônica. Transcrição da totalidade das gravações.Desnecessidade. Gravações diárias e ininterruptas de diversos terminais durante período de 7 (sete) meses. Conteúdo sonoro armazenado em 2 (dois) DVDs e 1 (hum) HD, com mais de quinhentos mil arquivos. Impossibilidade material e inutilidade prática de reprodução gráfica. Suficiência da transcrição literal e integral das gravações em que se apoiou a denúncia. Acesso garantido às defesas também mediante meio magnético, com reabertura de prazo. Cerceamento de defesa não ocorrente. Preliminar repelida. Interpretação do art. 6º, § 1º, da Lei nº 9.296/96. Precedentes. Votos vencidos. O disposto no art. 6º, § 1º, da Lei federal nº 9.296, de 24 de julho de 1996, só comporta a interpretação sensata de que, salvo para fim ulterior, só é exigível, na formalização da prova de interceptação telefônica, a transcrição integral de tudo aquilo que seja relevante para esclarecer sobre os fatos da causa sub iudice. (STF, Pleno, Inq. 2424/RJ, rel. min. Cezar Peluso, j. em 26/11/2008).

No começo, o furacão soprou a favor do Ministério Público. Em fevereiro de 2013, parece que a maré virou. Na Operação Pororoca (AP 508/AP), o STF teria decidido o oposto que dissera no caso Furacão (Inq. 2424/RJ).

Ao julgar agravo regimental interposto pelo MPF na AP 508/AP, o pleno do STF afirmou que é indispensável a transcrição integral dos grampos. O relator desta ação penal, o ministro Marco Aurélio, assinalou que o STF teria aberto uma exceção na Operação Furacão, quando a examinou em 2008. A tabela a seguir ajuda a entender a controvérsia:

FEITO

DECISÃO DO STF QUANTO À TRANSCRIÇÃO

INTEGRAL

ENTENDERAM QUE A TRANSCRIÇÃO É NECESSÁRIA

NÃO VOTARAM

INQ 2424/RJ

Não é necessária

(por 6 a 3)

Marco Aurélio

Celso de Mello

Gilmar Mendes

Joaquim Barbosa

Menezes Direito

AP 508/AP

Sim, é necessária

(por 5 a 4)

Marco Aurélio

Ricardo Lewandowski

Dias Toffoli

Cármen Lúcia

Joaquim Barbosa

Celso de Mello

Ξ

A reviravolta causada pela Pororoca

Como resultado da Operação Pororoca, de 2004, o réu Sebastião “Bala” Rocha foi denunciado pelo MPF em Macapá por supostas fraudes em licitações na área da saúde (leia aqui uma nota de sua defesa). Várias pessoas foram acusadas. A denúncia foi recebida em dezembro de 2005. Em 2007, este réu assumiu mandato de deputado federal pelo Estado do Amapá, e foi reeleito em 2010. Os autos foram desmembrados na primeira instância e remetidos ao STF, em função da aquisição do foro privilegiado (art. 102, inciso I, `b`, da CF). Os demais réus sem foro continuaram a responder à ação penal em primeiro grau, e alguns foram condenados entre setembro e novembro de 2012.

Normalmente, o desmembramento de inquéritos e ações penais é realizado pelo juiz natural da autoridade que detém o foro especial. Ou seja, a cisão ou não da causa cabe ao tribunal de segunda instância (TRF, TRE, TJ ou STM) ou às cortes superiores (STF ou STJ). Porém, este caso Pororoca tem uma peculiaridade. Quando a ação penal foi aberta em Macapá, ninguém gozava do foro especial. Posteriormente, um dos réus assumiu mandato na Câmara Federal. O foro privilegiado superveniente permitiu que essa cisão fosse determinada em primeiro grau, como se vê na correição parcial abaixo ementada:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. FORO ESPECIAL. PRERROGATIVA DA FUNÇÃO. CONEXÃO DE PROCESSOS. DESMEMBRAMENTO. COMPETÊNCIA.

1. Compete ao tribunal competente pela prerrogativa da função, em princípio, avaliar e determinar o desmembramento dos autos, na ocorrência de
co-réus que não detenham tal prerrogativa. Na hipótese, contudo, na qual o fato-causa da remessa dos autos ao tribunal eleição de um dos acusados 
para a deputação federal ' ocorreu depois da fase do art. 499 ' CPP, é razoável que o próprio juiz singular, a pedido do titular da ação penal, 
promova a separação dos autos apenas em relação ao réu com foro especial, para remessa ao foro competente.

2. Deferimento da correição parcial, nos exatos termos do pedido. (Correição Parcial nº 2007/00499-AP).

Na Corte Suprema, o feito foi autuado como Inquérito 2764/AP, sob a relatoria do min. Marco Aurélio, e depois reautuado como ação penal 508/AP por decisão de 16/02/2009, quando foi aberto o prazo de diligências do art. 10 da Lei 8.038/90, em 5 dias! Findas essas diligências, as partes teriam mais 15 dias sucessivos para a apresentação de alegações finais, conforme o art. 11 da Lei 8.038/90.

Pois bem. Passaram-se 4 anos desde 16/02/2009 e a defesa ainda não apresentou suas alegações finais, na AP 508/AP. O prazo que era de 15 dias transformou-se em 4 anos! Não me perguntem como. Só sei que o relógio prescricional continuou o seu inexorável tique-taque.

Na verdade, o caso se arrasta há mais tempo, desde novembro de 2004, quando foi deflagrada a Operação Pororoca. A denúncia do MPF é de 2005 e está embasada nas escutas realizadas em primeira instância, autorizadas conforme a Lei 9.296/96. Assim, há pelo menos 8 anos essas escutas são de conhecimento da defesa. Ou deveriam ser.

No STF, o tema da transcrição integral dos diálogos ou da falta dela foi objeto primeiramente de uma decisão monocrática do relator da AP 508/AP, oportunidade em que o ministro Marco Aurélio mandou entregar ao réu cópia integral da mídia que continha as gravações telefônicas. Esta decisão foi proferida em 23/04/2012 (aqui) e seguia a correnteza. Contudo, o réu opôs embargos de declaração, que foram também monocraticamente decididos em 13/06/2012, com a determinação de entrega das gravações (mídia) e renovação do prazo para as alegações finais (de 15 dias), o que indica que o processo caminhava para julgamento pelo plenário.

Porém, até 19 de junho de 2012, a defesa não comparecera à Secretaria do STF para buscar a importante mídia e, em nova petição, requereu a transcrição de todos os diálogos interceptados na investigação criminal, no que foi mais uma vez atendida pelo ministro Marco Aurélio: “A existência de processo eletrônico não implica o afastamento da Lei 9.296/96. O conteúdo da interceptação telefônica verificada, registrado em mídia, há de passar pela degravação“. E é só este o fundamento da decisão monocrática tomada pelo relator, sem prévia oitiva do MPF (e o contraditório?), em 24/06/2012, ao espoucar de fogos no dia de São João. Eis a íntegra:

DECISÃO INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA – MÍDIA – DEGRAVAÇÃO. 1. O Gabinete prestou as seguintes informações: Sebastião Ferreira da Rocha, em petição eletrônica assinada digitalmente por profissional da advocacia regularmente credenciado, levando em conta o pronunciamento formalizado por Vossa Excelência em 23 de abril de 2012 – cópia anexa –, requer, antes da abertura de prazo para apresentação de alegações finais, a degravação dos diálogos telefônicos interceptados durante a investigação policial. Sustenta que a ação penal tem por base, exclusivamente, tais provas e aponta ofensa ao devido processo legal, pois as escutas telefônicas, mesmo autorizadas pela Justiça, devem apenas complementar outras provas e indícios apurados. Vossa Excelência acolheu os embargos de declaração interpostos contra o referido ato, para esclarecer que o curso do prazo alusivo às alegações finais pressupõe a entrega de cópia da mídia constante à folha 2664 (cópia do TC – 016.166/2002-5). A decisão está pendente de publicação. À folha 2739, há certidão de que não se encontram nos autos as mídias relativas às interceptações telefônicas autorizadas judicialmente pela 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Amapá bem como de que o acusado, até 19 de junho último, não compareceu à Secretaria Judiciária para obter cópia da mídia juntada à folha 2664. O processo está no Gabinete. 2. A existência de processo eletrônico não implica o afastamento da Lei nº 9.296/96. O conteúdo da interceptação telefônica verificada, registrado em mídia, há de passar pela degravação. Também cumpre solicitar ao Juízo da 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Amapá a mídia, para degravação, da interceptação telefônica mencionada na denúncia. 3. Providenciem. 4. Publiquem.
(AP 508, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 24/06/2012, publicado em DJe-150 DIVULG 31/07/2012 PUBLIC 01/08/2012.

Para surpresa de quem imaginava que o réu buscava acesso a documentos que lhe teriam sido sonegados, verifica-se no andamento processual do STF
que, pouco antes de 14 de agosto de 2012, o juiz federal da 2ª Vara de Macapá esclareceu à Corte Suprema “que a referida mídia ficou à disposição dos 
réus na Seção de Depósito e Arquivo Judicial, não havendo Sebastião Ferreira da Rocha formulado qualquer pedido visando ter acesso aos dados 
enquanto esteve submetido à jurisdição de primeira instância”. Nemo auditur propriam turpitudinem allegans, diriam os antigos.

Intimado dessa decisão monocrática, o Ministério Público Federal interpôs em 07/08/2012 agravo regimental (art. 317 do Regimento Interno do STF). Em 07/02/2013, o plenário negou provimento ao recurso e, segundo alguns comentaristas, modificou o entendimento anterior da própria Corte quanto à desnecessidade de transcrição integral dos diálogos de uma interceptação telefônica. Na data que escrevo, o acordão que apreciou o regimental na AP 508/AP ainda não foi publicado, como se vê aqui. Mas o informe divulgado pelo próprio STF permite entrever os argumentos utilizados pela Corte, para assegurar “o direito à transcrição integral das interceptações telefônicas feitas no âmbito da Ação Penal 508, a que responde pela suposta prática de crimes de corrupção e formação de quadrilha”. Pelo que entendi, fez-se interpretação literal do artigo 6º, §1º, da Lei 9.296/96:

Segundo Marco Aurélio, a formalidade é essencial à validação da interceptação telefônica como prova. A Lei 9.296/1996, que regulamenta a interceptação telefônica, determina que sempre que houver a gravação da comunicação, será determinada sua transcrição. Ao analisar o caso concreto, o ministro afirmou que a regra não foi observada. Não houve, portanto, transcrição integral de nenhum debate ou conversa envolvendo o réu e os demais envolvidos, constando em parte do processo apenas trechos de diálogos, obtidos em dias e horários diversos.

O voto do ministro relator no agravo regimental é, na falta de uma palavra melhor, esquálido na fundamentação, como se vê aqui. Porém, sua leitura não permite concluir que o STF mandou transcrever todos os diálogos interceptados na Operação Pororoca (nem disse a quem caberia fazê-lo). O que ressoa é a ordem de transcrição de todos os diálogos usados pelo MPF contra o acusado na AP 508/AP e dos que interessam à defesa, coisa bem diferente.

Ξ

Minha opinião:

O art. 6º da Lei 9.296/96 (resultado do projeto de Lei 1156/1995) não autoriza o entendimento de que todas as conversas grampeadas devem ser transcritas. Se o §1º do art. 6º menciona a transcrição das gravações, o §2º, logo em seguida, deixa claro que o resultado da interceptação será encaminhado ao juiz na forma de um “auto circunstanciado que deverá conter o resumo das operações realizadas”. Este resumo é justamente a transcrição dos diálogos que interessam à investigação.

Art. 6° Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização.

§ 1° No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada, será determinada a sua transcrição.

§ 2° Cumprida a diligência, a autoridade policial encaminhará o resultado da interceptação ao juiz, acompanhado de auto circunstanciado, que deverá conter o resumo das operações realizadas.

O art. 9º da Lei 9.296/96 densifica a compreensão de que não há transcrição integral dos diálogos, pois, ao tratar do incidente de destruição das gravações que não interessam ao processo, diz que estas (as gravações) serão inutilizadas, nada mencionando sobre suas respectivas transcrições. E a razão é uma só: o legislador não previu essa alegada transcrição completa das conversas, por sua absoluta desnecessidade.

Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.

Se fôssemos ler o art. 9º tal como certo segmento da doutrina interpreta o art. 6º, §1º, da Lei 9.9296/96 chegaríamos à conclusão literal de que, após feitas todas as degravações, o juiz mandaria destruir apenas os áudios, mantendo intactas suas transcrições ou reproduções em papel. Tampouco foi esta a intenção do legislador, pois a existência de gravações e transcrições completas duplicaria o risco de vazamentos e de exposição de assuntos da vida privada dos investigados, como opões políticas, religiosas ou sexuais. Por outro lado, por que transcrever diálogos que serão destruídos em seguida?

Portanto,  se, na AP 508/AP, o STF aplicou literalmente a regra procedimental, não agiu bem. A solução correta interpreta de forma sistemática os arts. 6º e 9º da Lei 9.296/96, pois esta não impõe a transcrição de todas as escutas realizadas durante a investigação, nem acredito que tenha sido esta realmente a decisão da Corte.

O emprego pela Lei da palavra “resumo” não é por acaso. Ademais, não se transcreve aquilo que será destruído na forma do art. 9º. Por fim, tal posição contraria a tendência de oralização do processo penal brasileiro, que procura substituir os termos escritos por gravações audiovisuais, especialmente por apreço à fidelidade dos registros, à celeridade dos feitos e à economia processual. A mesma ideia se aplica no caso em exame.

De fato, a reforma de 2008 adotou o procedimento oral em lugar do procedimento escrito, com grande ênfase na audiência de instrução e julgamento (art. 400 do CPP) nos ritos comum ordinário e sumário, tal como já existia no júri (oralidade intensa desde sempre) e no sumariíssimo dos Juizados Especiais Criminais (criado em 1995). Nesta esteira, as audiências criminais têm sido gravadas em áudio e vídeo, sem necessidade de transcrição (art. 405 do CPP):

Art. 405.  Do ocorrido em audiência será lavrado termo em livro próprio, assinado pelo juiz e pelas partes, contendo breve resumo dos fatos relevantes nela ocorridos. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 1o  Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações(Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2o  No caso de registro por meio audiovisual, será encaminhado às partes cópia do registro original, sem necessidade de transcrição. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

Mais do que isto: qual a utilidade de transcrever todos os diálogos interceptados? Atrasar o andamento do feito? Que proveito tem realmente a defesa com a entrega da reprodução gráfica dos diálogos? Não se diga que seria para dispensar o advogado de escutar os áudios…

E ainda bem se pode dizer que é mais difícil compreender os diálogos transcritos, pela leitura, do que entendê-los pela audição. A explicação é simples. A entonação, o ritmo e a ênfase próprios da prosódia, a pronúncia e os sotaques enchem as falas de sentidos que não podem ser transferidos para o papel, sem perda da riqueza da linguagem falada e, muitas vezes, do seu significado. Assim, sem dúvida, ao apoiar-se nas conversas (áudio) para reexplicá-las ou refutá-las em juízo, a defesa será mais eficiente do que se se firmar na contestação de sua simples transcrição.

Nesta mesma linha, é de se ver que somente os áudios se prestam a exame pericial, quanto à identidade do autor da fala, quanto ao que realmente se disse e quanto à existência de edições no conteúdo gravado. Para as perícias de fonética forense e de integridade de gravações, a transcrição de nada serve.

Se a mídia audível permite à defesa acesso a todas as escutas e se somente ela propicia uma defesa ampla e efetiva, que papel a transcrição desempenha nisto? A que fim se destina a reprodução em papel? Parece-me mero apego à tradição cartorial de que somos tributários. Parece mais amor pela papelada e pela burocracia do que atenção à utilidade das coisas.

Ao final, há de se refazer a indagação: se não é possível transcrever todas as nuances da fala para o papel e se não é possível periciar esta representação gráfica, que interesse jurídico se pretende proteger com a transcrição integral dos diálogos interceptados?

Com os áudios em mãos e ouvidos atentos, um bom defensor poderá refutar sentidos da fala, poderá questionar a autoria dos diálogos (quem fala), ou duvidar de sua integridade. Com o contraditório centrado na transcrição – sem acesso ao áudio global ou sem o seu cotejo com os trechos utilizados pela acusação –, a defesa pode ser deficitária, talvez surda, porque não ouviu, e cega, porque não viu oportunidades de refutação.

Foi no sentido da desnecessidade da transcrição integral a decisão do STJ no HC 139.966/SP:

4. É dispensável a degravação integral dos áudios captados, cabendo à Autoridade Policial, nos exatos termos do art. 6º., § § 1º. e 2º. da Lei 9.296/96, conduzir a diligência dentro dos parâmetros fixados pelo Juiz. Segundo a jurisprudência desta Corte, basta a transcrição dos trechos necessários ao embasamento da denúncia. (STJ, 5ª Turma, HC 139.966/SP, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 13/abr/2012).

Em decisão monocrática de 19/out/2012, o ministro Celso de Mello indeferiu a medida cautelar no HC 114.369/SP invocando o precedente firmado no Inquérito 2424/RJ.

Lembro, porém, que o ministro Celso de Mello acolheu a orientação da Corte no Inq. 2424/RJ, mas registrou sua posição pessoal contrária à ali afirmada:

Devo registrar, neste ponto, que dissinto, respeitosamente, da orientação majoritária que tem sido observada, no tema ora em análise, pela jurisprudência desta Suprema Corte, considerada, para tanto, a minha posição pessoal externada no julgamento desse mesmo Inq 2.424/RJ. Não obstante a minha pessoal convicção em sentido contrário, devo ajustar o meu entendimento à diretriz jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte (AI 685.878-AgR/RJ, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – HC 91.207/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. EROS GRAU – HC 114.639 MC / SP HC 105.527/DF, Rel. Min. ELLEN GRACIE, v.g.), em respeito e em atenção ao princípio da colegialidade.

Em suma, só há uma forma de dar sentido à decisão do STF no agravo regimental na AP 508/AP (Operação Pororoca):

a) na forma da SV 14, a defesa deve ter acesso imediato e irrestrito a todos os áudios resultantes da interceptação (mídia), tão logo concluído o procedimento;

b) deve haver a transcrição completa dos diálogos utilizados pelo Ministério Público para sustentar a acusação contra o réu, inclusive daqueles que a contextualizem;

c) não basta a transcrição de trechos dos diálogos que servem de base à acusação; a conversa por inteiro deve ser levada ao papel; e

d) é dispensável a reprodução gráfica das demais conversas, isto é, daquelas que não interessam ao caso criminal ajuizado, o que inclui os diálogos sobre temas da vida privada de investigados e terceiros.

Apoia essa compreensão o fato de a defesa (recorrida no agravo regimental) ter ressaltado não pretender a degravação integral dos CD-ROMs, mas apenas dos trechos em o que réu foi mencionado, especialmente os que serviram de base à denúncia do MPF (vide o relatório do ministro Marco Aurélio, p. 3,  aqui).

Por isto o ministro Marco Aurélio decidiu: “Frise-se, por oportuno que a referida formalidade não está retratada no documento de folha 409 a 453. Neste constam apenas trechos de diálogos obtidos em dias e horários diversos, não havendo a transcrição integral de nenhum debate envolvendo o agravado e os demais envolvidos“. Clara está, portanto, a extensão do julgado na AP 508/AP.

Ξ

Equilibrando a tese: a ampla defesa

O ponto mais relevante não é determinar se é preciso transcrever ou não os diálogos interceptados com base na Lei 9.296/96. Minha opinião, já a revelei, é de que isto é absolutamente dispensável, desde que as gravações (todas elas) sejam entregues à defesa.

O problema está em saber, isto sim é relevante, se o advogado do réu terá tempo suficiente para preparar a defesa do acusado, a partir do momento em que os áudios lhe cheguem aos ouvidos. Então surfemos essa Pororoca.

O art. 8º, §2º, letra `c`, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969) pode e deve ser aqui invocada. Tal regra é equivalente à do art. 14, §3, letra `b`, da Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966). O Pacto tem força supralegal no Brasil, conforme já decidiu o próprio STF:

Artigo 8º – Garantias judiciais

[…]

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;

No particular, o que realmente importa é que a defesa tenha tempo suficiente para conhecer os áudios usados pela acusação em juízo. Este tempo deve ser razoável e guardar algum grau de proporcionalidade em relação ao utilizado pelo Ministério Público para preparar a acusação.

Obviamente, nem sempre atenderá ao princípio da ampla defesa a concessão do prazo regular do procedimento comum (10 dias) para que o advogado do réu tenha conhecimento de todo o conteúdo dos diálogos que interessam à imputação. Em megaoperações, o tempo líquido das escutas pode representar centenas de horas de conversas. Não haverá um fair trial se o tempo da defesa não for suficiente para o conhecimento integral do resultado dessas escutas, tendo em conta, evidentemente, a posição particular do acusado diante delas.

O que acabo de dizer não significa que a defesa deve ter tempo igual àquele que a Polícia utilizou para realizar as interceptações. A paridade de armas não chega a este ponto. Não é de uma igualdade matemática de que se cuida aqui, porque grampos pegam conversas que não interessam ao caso (temas da intimidade) e captam conteúdos que nada têm que ver com a questão criminal ou com um suspeito em particular. Essa proporcionalidade temporal deve ter em conta os diálogos que importam ao caso e considerar os áudios subjetivamente vinculados a este ou àquele suspeito, tal como lançados na denúncia do Ministério Público.

Ademais, é preciso observar que o prazo razoável para a preparação da defesa deve ser estimado tomando em conta o dia em que os áudios lhe forem realmente entregues. Isto normalmente (mas nem sempre) ocorre antes do oferecimento da denúncia, em virtude da Súmula Vinculante 14. Ainda nesta linha, há de se ver que o termo final da defesa não é o momento da resposta à acusação (prazo de 10 dias), mas se estende, pelo menos, até o momento da audiência de instrução e julgamento. No procedimento ordinário, isto ocorre em até 60 dias após a decisão que rejeita eventual pedido de absolvição sumária.

Como se vê, são diversas as variáveis a considerar para determinar o tempo justo (necessário e suficiente) para a defesa inteirar-se de uma escuta telefônica, razão pela qual deveria haver prazos diversos na lei processual, e não uma fórmula única, adequada para a criminalidade tradicional ou pouco complexa.

Enquanto este ponto não merece a atenção do legislador, cabe ao juiz da causa avaliar o resultado da interceptação, identificar os trechos que foram efetivamente utilizados pelo Ministério Público na acusação contra cada um dos réus e aquilatar quanto tempo será necessário para que a defesa escute inteiramente tais interceptações, a partir das “horas líquidas” resultantes dos grampos. Isto é trabalhoso e não pretendo aqui apresentar uma fórmula mágica. Certo é que o prazo geral do CPP presta-se a situações ordinárias, a casos simples (sem escutas) ou a processos nos quais estas sejam pouco extensas. Nos grandes casos, ou seja, naqueles em que tenha havido uso intensivo de interceptações (o usual nas megaoperações), o tempo da defesa deve ser proporcionalmente maior, em nome do devido processo legal.

Ξ

Conclusão

Preocupa a vacilante posição do STF num tema de tamanha importância para a ampla defesa e para a defesa da sociedade. Réus grampeados e condenados serão beneficiados com base no precedente da AP 508/AP? Processos criminais serão anulados? É preciso ter clareza.

Como o acórdão no recurso na AP 508/AP ainda não foi publicado, não se sabe se este será um novo precedente, que afastará as premissas do Inquérito 2424/RJ. Creio que não será. O julgado no agravo regimental na AP 508/AP não parece ter a extensão que alguns gostariam. Ou seja, não houve mudança de entendimento na Suprema Corte. A transcrição ordenada pelo STF deve alcançar todos os diálogos usados pela acusação em juízo, mas não tudo o que foi colhido nas escutas. 

Em outras palavras: não é suficiente transcrever trechos de diálogos do suspeito. Todas as falas usadas pelo Ministério Público na denúncia devem ser integralmente transcritas. Quanto às demais conversas, não há necessidade de reproduzi-las graficamente. Os diálogos íntimos do investigado e outros temas de sua vida privada serão destruídos – jamais transcritos – e continuarão segredos de alcova. A ligação para o serviço de entrega de pizzas também não precisa de transcrição.

Veremos o acórdão na AP 508/AP em breve. Enquanto isto, fica a perguntam: que rumo deve a Justiça criminal seguir neste tema das transcrições de grampos: os ventos implacáveis do Furacão ou as águas turbulentas da Pororoca? Aposto na ventania. O precedente do Inq 2424/RJ continua a valer. O resto é miragem.

Ξ

Segundo tempo: eis o vídeo da sessão

Voltei para acrescentar algumas coisas. O STF divulgou hoje o vídeo do julgamento. Vejam-no neste link. É a sessão na qual o STF julgou o agravo regimental do MPF na AP 508/AP (Op. Pororoca). Nele se discutiu a questão da necessidade ou não da transcrição completa de escutas telefônicas.

Como se vê (aqui), os ministros não mudaram a orientação da Corte advinda do Inquérito 2424/RJ (Operação Furacão). E não ficou mesmo claro se a ordem é transcrever tudo, os grampos do começo ao fim.

Mesmo os ministros que seguiram o relator Marco Aurélio, como Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, não se comprometeram com a tese de que a transcrição completa seria sempre necessária.

Em outras palavras, o STF tomou uma decisão ad hoc, só para este caso concreto, sem afirmação de nulidade do feito, irregularidade do procedimento adotado e sem reversão de orientação. Isto significa que não haverá inflexão algum a partir do caso Pororoca. Continua valendo o leading case do caso Furacão.

Nota-se no debate entre os julgadores:

a) a racionalidade dos ministros Teori Zavascki, Luiz Fux e Rosa Weber, que entenderam suficiente a entrega das mídias completas à defesa, e a faculdade que esta tem de transcrever por si mesma os diálogos que considere relevantes;

b) a sensatez do min. Gilmar Mendes, que votou para manter a jurisprudência da Corte, alertou para o risco quanto à segurança jurídica na modificação casuística de entendimentos e exortou o Congresso Nacional a aperfeiçoar a Lei 9296/96;

c) o preconceito orgânico do ministro Marco Aurélio que insinuou, entre risos, que o MPF havia recorrido porque talvez “tivesse algo a esconder da defesa” ou “a temer” nos áudios a serem transcritos; e

d) o blecaute do ministro Dias Toffoli que invocou três ou quatro vezes o artigo 499 do CPP, já revogado! E isto numa ação penal originária (!), à qual tal artigo jamais se aplicou mesmo quando vigente, pois o rito nestes processos é o da Lei 8.038/90!

Enfim: acabou o oba-oba. Este julgado não muda a jurisprudência da Corte Suprema quanto à transcrição de grampos. As notícias e análises publicadas nos últimos dias superestimaram o julgado. Era, como eu disse, uma miragem…

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Um comentário

  1. Dr. acompanho seu blog desde 2010, mas especialmente agora os seus posts estão sendo de grande valia para os meus estudos para concurso público. Parabéns pelos excelentes temas tratados e pela forma de debatê-los! E o meu muito obrigado!

    Continuarei acompanhando!

    Abraços,

    Marcela Menezes

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