Os três pês e os três bês


Certas coisas nem dá para reciclar.

Prostitutas, pobres e pretos, os “três pês”, são vítimas fáceis de preconceito. Vimos o uso de dois desses clichês na acalorada discussão que se seguiu ao suposto estupro praticado pelo participante Daniel Echaniz, da 12ª edição (!) dos três “bês”, o Big Brother Brasil.

Tirando a hipótese de você ter acabado de voltar ao planeta Terra após uma longa jornada espacial em uma cápsula criogênica, você sabe a quem me refiro. Esse Daniel, um modelo paulistano, teria abusado sexualmente de outra participante, a gaúcha Monique Amin. Ela é branca. Ele é negro.

Minutos depois de o evento ir ao ar, o ciberespaço foi contaminado por centenas de milhares de pré-julgamentos e acusações infames contra os dois protagonistas, tratados, tanto quanto os demais, como animais num zoológico. A jaula é a “casa mais (mal) vigiada do Brasil“. Para uns, ela quis ir para as cobertas e teria gostado da situação. Eis o clichê de “prostituta”, da mulher devassa que “provoca” o estupro. Muitas mulheres passam por este tipo de julgamento machista. Para outros, por ser negro, ele seria automaticamente culpado. Como “sempre“. É o uso do rótulo do negro “sujo”. Nem lá nem cá.

Sob pressão, a Globo resolveu expulsar Daniel por violação às regras do programa. “Depois de criteriosa avaliação, a direção entendeu que o comportamento de Daniel foi motivo de eliminação“, anunciou ontem (16/jan) o ex-jornalista Pedro Bial.

Veja como são as coisas no mundo do crime. Não existe “verdade real“. Ninguém tem certeza de nada. Quando meus estagiários põem o advérbio “indubitavelmente” numa peça processual, eu mando riscar. Isto não existe. Mesmo num ambiente altamente controlado como aquele, com câmeras de vídeo por todos os lados, e a vigilância constante de milhões de brasileiros, naquele quarto ocorreu um fato cujos contornos não são precisos. A vigilância do Grande Irmão não foi suficiente para impedir o aparente crime. A penumbra do ambiente noturno, o edredom que protegeu as figuras do suposto autor e da suposta vítima, a negativa daquele quanto a violência sexual e a insegurança desta a respeito do que realmente aconteceu são fatores que se redundam numa incógnita. Houve crime?

Quem viu o vídeo, que faça seus juízos. Ouça aqui o que a participante Monique disse ao ser questionada no confessionário. Sua conclusão arremata a incerteza: “Só se ele foi muito mau caráter em fazer [sexo] e eu dormindo“. Eis a importância do princípio da presunção de inocência. Precipitação nunca é boa conselheira para julgamentos justos.

Diante do que se divulgou até agora, é provável que o sujeito tenha forçado a relação sexual, o que, se ocorreu, caracterizaria um crime hediondo (art. 1º, inciso V ou VI, da Lei 8.072/90).

O delito de estupro está tipificado no art. 213 do CP, mas a Lei 12.015/2009 criou outra modalidade deste crime, o estupro de vulnerável:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§1º. Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Teoricamente, a parte acima grifada corresponde à conduta em questão. A vítima estava bêbada e dormia. Por isto, não tinha capacidade de resistir. Neste caso, o rapaz teria mantido relação sexual com uma pessoa “vulnerável”, não um ser humano que é vulnerável, como seria uma criança ou uma pessoa com deficiência mental. A vítima em questão estava momentaneamente vulnerável por outra causa, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, que é talvez a pior mensagem que esse reality show passa à juventude. Um amigo feirense foi mordaz e cirúrgico em sua observação sobre o triste episódio: “Se BB, não durma“.

Se não houve estupro, pode ter ocorrido o crime do art. 215 do CP, violência sexual mediante fraude:

Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

A Polícia Civil fluminense instaurou um inquérito e já ouviu a vítima, nas próprias instalações da Rede Globo. Ela teria negado o estupro. A ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, também pediu providências. Com a palavra o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que poderá imputar a Daniel um ou outro delito (arts. 215 ou 217-A, §1º, do CP) ou simplesmente arquivar o caso.

Para provar eventual infração penal com segurança, deveria ter sido imediatamente realizada uma perícia toxicológica na vítima para verificar se estava embriagada e se esta ebriez era completa ou não, a ponto de eliminar sua capacidade de resistência ao ataque. Também deveria ter sido feita perícia de conjunção carnal, para determinar se houve relação sexual entre ambos, mediante a coleta de sêmen, por exemplo. Ao que consta, nada disto foi feito.

Outro elemento a considerar é a natureza da ação penal. Se o crime fosse o estupro de vulnerável (art. 217-A, §1º, CP), a ação penal seria pública incondicionada. Ou seja, a vítima não precisará solicitar a intervenção da Polícia ou a atuação do Ministério Público. O caso será investigado, queira ela ou não.

Porém, se o delito for de ação pública condicionada, somente com a manifestação de vontade da vítima o aparente crime sexual pode ser investigado e levado a julgamento. A esta manifestação se dá o nome de “representação”. O crime de violência sexual mediante fraude (art. 215 do CP) está nesta categoria. Se a vítima não quiser, nada acontece com o abusador. Esta regra visa a respeitar a privacidade da pessoa ofendida, evitando o chamado escândalo judicial (strepitus iudicii), o que é meio esquisito num caso com tamanha exposição midiática como este.

Pedagogicamente, há um lado bom nessa celeuma. Todo mundo ficou sabendo que transar com uma BBB, isto é, uma mulher Bonita-e-Bem-Bêbada, é crime. O que pode acontecer agora? A direção do programa deveria pensar se não é corresponsável pelo evento. Afinal, os organizadores tinham o dever de impedir o ataque sexual tão logo o perceberam. Os números do Ibope pesaram mais do que as sanções do Código Penal. Os departamentos de marketing dos patrocinadores do BBB 12 devem estar de cabelos em pé. Ligar seus nomes a um show de horrores em que houve um possível crime sexual não é nada bom. A moça parece ter sido pressionada a recuar, ou se sentiu intimidada pela repercussão?

Já o suspeito saiu do confinamento numa casa de luxo e agora não é mais candidato a 1,5 milhão de reais. A depender da Polícia e da Promotoria, Daniel, que não foi um modelo de comportamento, poderá ser candidato a outro confinamento, desta vez em B-B-Bangu 8. Agora, o sujeito tem um milhão de motivos para arranjar um advogado, urgentemente. Tomara que tenha economizado muitas estalecas e que tenha um bom discurso para o paredão, digo, interrogatório. A se provar o fato, corre o risco de ser eliminado do convívio social por alguns anos.

Isto é só especulação. O cara é inocente até que o Ministério Público prove o contrário, ainda mais agora depois do depoimento formal da vítima. Se estivéssemos no Mississipi ou no Alabama, nos anos 1960, Daniel já estaria pendurado pelo pescoço numa árvore qualquer, e ouviríamos gritos e “KKK“. Cuidado! estas três letras K não são uma gargalhada.

30 comentários

  1. Muito bom texto. Só um ponto:

    Essa hipótese de ele ter sido considerado automaticamente culpado apenas pelo fato de ser negro é, a meu ver, inverossímil e sem fundamento. Ora, se há tanta dúvida, por parte de quase todos, inclusive especialistas, sobre a ocorrência ou não do crime, como apontar algum racismo sobre qualquer um que considere que houve o crime? Pode até haver — o que eu acho que é excepcional –, mas qual o indício?

    Insisto: primeiro que a grande maioria das pessoas defendeu que o caso é incógnita, demonstrando todo o tipo de dúvida quanto à ocorrência ou não do crime, o que já exclui o caso de racismo por parte destes. E segundo que todos (os poucos) que consideraram que sem dúvida alguma houve o crime utilizaram argumentos bem fundamentados baseados em imagens etc. Ninguém tocou na questão da cor, exceto os ideólogos racistas de plantão, ou o tal do Boninho, desesperado para estancar o escândalo, apelando para um discurso politicamente correto, um discurso da moda.

    Por que colocar a questão racial aqui? Se fosse um caso de total clareza da não ocorrência do crime, tudo bem. Mas não é. Creio que isso faça parte dessa tendência “politicamente correta” de proteger a “raça negra” o tempo todo, até quando ela não precisa ser protegida (porque não foi atacada). Essa atual tendência de segregação da sociedade, de criar aqui uma luta de raça que não há — mas, por causa dessa forçação, parece que está começando a surgir.

    Não. Ninguém acusou o Daniel apenas por ser negro. Não, o Brasil não é racista a esse ponto. O que houve foi o contrário: muita dúvida, muita gente achando que nada houve, e muita gente, sim, criticando a Globo.

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  2. Excelente post Professor! Aproveito para indagar-lhe o seguinte: se eventualmente o mesmo fato tivesse ocorrido (supondo que ela realmente estivesse “apagada”) mas envolvendo um casal de namorados ou casados restaria configurado o crime de estupro de vulnerável da mesma forma?

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  3. Caro Vladimir,

    meus sinceros parabéns pela construção tão contestadora, esclarecedora, humorada e elucidativa! Uma crônica e tanto!!

    Vi que você fez o mestrado aqui na nossa querida UFPE, pena não ter conhecido uma figura assim, porque também fiz o meu lá, sob orientação do Prof. Ricardo de Brito, onde tb estou fazendo o doutorado.

    Peço a gentileza de permitir a publicação do texto no blog – Asa Branca Criminologia – um grupo e estudos criminológicos, sob a vertente da criminologia crítica aqui em Recife, PE. Não preciso nem dizer que a fonte será referida…

    Muito obrigada e parabéns!!!

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  4. Ok. Vladimir, achei interessante sua abordagem e interessante sobre o assunto.Prova de quem “conece do riscado”!
    Contudo, gostaria de acrescentar, você não teria “autonomia” para mover a ação, solicitar tais exames e quem sabe a proibição do programa face ao seu (não é de agora) “desserviço” á sociedade?????
    Por quê você mesmo não impetra a Ação Incondicionada?????????
    Saudações,
    Ricardo Lima

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  5. Texto lindo! V. Excelência!

    No sistema capitalista até o amor e as formas de sentir prazer viram peças de compra e venda, assim é no reality show , onde a premiação excita homens e mulheres a participarem de um jogo e expor publicamente os sentimentos , atitudes e emoções sem reservas. Como personagens que se identificam com o valor a ser conquistado, pessoas são pagas porque almejam sucesso e melhoria do poder de compra. Enquanto a TV consegue alcançar, através desta arena, altos índices de audiência, seu texto atrai porque propõe a prática da democracia e permite a expressão de uma rede solidária de reflexões humanas, historicamente não arbitrárias.

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  6. Prof.,

    Seria possível enquadrar no art. 215? Qual o meio utilizado para a conjunção carnal? Se foi a embriaguez, não poderia ser imputada ao indiciado, já que não foi ele que a provocou, não?

    Sds,

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  7. Olá caro colega professor

    Parabéns pelo belo e elucidativo texto! Isto o senhor já recebeu de várias pessoas. Eu quero agora é externar os meus agradecimentos por socializar o conhecimento. Isto é prova inconteste de que o autor do texto é, de fato, um Mestre. Obrigado pela ampla aula de direito e cidadania.
    Aproveito para solicitar sua autorização para publicar o seu texto no meu site o BlogBahiaGeral.com.br . Quero partilhar com meus leitores.

    Abraços cordiais,
    Jamil Souza – http://WWW.blogbahiageral.com.br

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  8. Digno Mestre!

    Graças a DEUs que existem pessoas como V.Exa.para interpretar,com argumentos e disposotivos o que milhares de brasileiros pensam,inclusive,EU.
    Muito obrigada pela beleza do texto.Verdade,sempre verdade!Abraços cordiais

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  9. Prof. Vladmir,

    Análise perfeita,

    Em relação a relevância da omissão, que também me parece plausível, teríamos que enfrentar a problemática da pessoa jurídica cometer o crime de estupro, pois, salvo engano, na omissão do garantidor ele responde pelo crime cometido. Como sabemos, a interpretação da possibilidade da pessoa jurídica cometer crime tem sido, majoritariamente, restrita as hipóteses dos crimes ambientais.

    Mais interessante me parece a intervenção do MPF, que além do debate sobre a ocorrência do crime contra a dignidade sexual, entabula a quaestio juris no âmbito da constitucionalidade e legalidade do exercício da concessão pública. Nesse enfoque, não é objeto da questão a ocorrência da conjunção carnal ou ato libidinoso, mas sim o violação aos princípios da comunicação social das concessões de radio e tv previstas na CF/88,

    Obviamente, isto não diminui em nada os procedimentos com vistas à proteção dos direitos da mulher.

    Ab.

    Samuel Martins.

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    • Samuel, creio que a imputação por omissão, se possível, recairia sobre a direção do programa. O diretor seria o garantidor. Abs.

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  10. A parte jurídica está muito bem explicada – adorei! E agradeço por compartilhar o conhecimento. Só discordei da parte que você fala do lado pedagógico da coisa toda: eu e você, que estamos na net, estamos aprendendo um monte coisas, mas quem está só com a versão da Rede Globo acaba tendo a impressão de que houve algum mal entendido e que “a mulher teve culpa” – uma espiada nos comentários de grandes portais e você verá como o senso comum já julgou a moral da mulher pelo fato de ela ter bebido demais e que por isso ela “permitiu” o ato, que nem é percebido como abuso. Para uma boa parte da população abusar de uma pessoa temporariamente vulnerável é uma coisa corriquira, vista como normal. A Rede Globo peca por não trazer a tona o tema com todos esses especialistas dizendo que é sim, crime, a pessoa abusar de outra que está embriagada/inconsciente. Se há um “crime” cometido pela Globo é a omissão quanto ao seu papel de ocupar uma concessão pública e instruir as pessoas, diminuindo um pouco da ignorância que aind existe entre muitos brasileiros. Seria ótimo se a Globo pudesse instruir as pessoas, sobretudo as mulheres, a denunciarem esses casos de abuso. Até hoje eu não vi uma abordagem decente desse assunto naquela emissora. Abraços

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    • Você tem razão em relação ao público da TV, mas observe que muita gente discutiu os aspectos do preconceito contra a mulher, de um lado, e do racismo, do outro. Ainda que a Globo não tenha capitaneado essas discussões na TV, o ciberespaço não se omitiu. Claro que sempre haverá mais gente falando bobagem do que pessoas debatendo a sério um tema. Carnaval e tertúlias. Abs.

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  11. Vlad:
    Mas a “Globo” (leia-se, diretor do programa, pois pessoa jurídica não comete crimes do Direito Penall “clássico”) não tinha a posição de garantidor, o que exclui, mesmo em tese, a hipótese sugerida pelo slotriquelme.
    Feliz 2012!
    Jeca Tatu

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    • É isto o que poderíamos discutir na teoria. O diretor do programa atuava como garantidor? Não estou seguro.

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  12. Professor, sem as provas periciais, de que deveriam ser colhidas de plano, bem como, por não haver nenhuma testemunha, sem ser a próprias câmeras, com que fundamentos o M.P.E. vai provavelmente denunciar o Sr. Daniel.

    Abraços

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    • É uma possibilidade apenas. Não sei se vai. Pode arquivar, como eu disse no texto. Há vários “poréns” antes disto.

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    • Teoricamente, pode-se falar em relevância causal da omissão (art. 13, §2º, do CP) para imputar crime doloso a quem se omitiu.

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