Reforma a conta-gotas


O Código de Processo Penal do Estado Novo está em vigor desde 1º de janeiro de 1942 (art. 810, CPP). Nesses quase 70 anos de vigência, seu texto já foi modificado diversas vezes, mas até hoje não se adequou inteiramente à Constituição de 1988.

As alterações mais relevantes ocorreram em 2008, quando três leis modificaram o procedimento comum (ordinário e sumário), o procedimento especial do júri e o tratamento da prova.

Em 2009, foi regulamentado o teleinterrogatório, também chamado de interrogatório por videoconferência, ferramenta que eu defendia desde 2002.

Em 2011, mais uma lei retocou a prisão em flagrante, alterou completamente a prisão preventiva e a fiança no CPP e nele introduziu novas medidas cautelares pessoais.

Imaginem a confusão que essas mexidas aqui e ali vêm causando, quase sempre em prol da impunidade. Não que as leis sejam ruins. O problema são as nulidades que surgem (ou são fabricadas) devido a divergências em sua aplicação.

A maior parte desses projetos é de autoria de uma comissão presidida pela professora Ada Pelegrini Grinover e por outros juristas de nomeada. Esta constelação entregou seus sete anteprojetos ao governo em 2000. No ano seguinte, o Poder Executivo levou-os ao Congresso Nacional, que, nesses dez anos, já aprovou quatro deles. Outros ainda estão a caminho, como os que alteram a matéria recursal e a investigação criminal.

O resumo da ópera é este até aqui:

1º) Projeto de lei 4.209/01: investigação criminal (em tramitação);

2º) PL 4.207/01: suspensão do processo/procedimentos, que se converteu na Lei 11.719/2008;

3º) PL 4.205/01: provas, que se converteu na Lei 11.690/2008;

4º) PL 4.204/01: interrogatório e defesa (em tramitação);

5º) PL 4.208/01: prisões, medidas cautelares e liberdade, que se converteu na Lei 12.403/11;

6º) PL 4.203/01: rito do júri, que se converteu na Lei 11.719/2008;

7º) PL 4.206/01: recursos e ações de impugnação (em tramitação).

A opção por essa reforma setorial se revelou equivocada. As mudanças são sensíveis e alguns insitutos novos não se encaixam inteiramente no modelo vigente, porque outros elementos processuais referentes a eles estão previstos nos projetos ainda não aprovados.

Enquanto ainda não nos adaptamos às novidades, a produção legislativa não para. Em 9/set, o D.O.U. publicou a Lei 12.483/11, que acrescentou o art. 19-A à Lei 9.807/99.

São duas novidades:

1ª) as ações penais em que houver vítimas ou testemunhas ameaçadas, ou investigados ou réus colaboradores inseridos em programas de proteção como o Provita terão prioridade sobre os demais processos criminais. Outros feitos já são prioritários, como o habeas corpus, as ações eleitorais e os processos de interesse de idosos.

2ª) nessas mesmas ações penais, os depoimentos das vítimas e testemunhas ameçadas ou dos réus em risco poderão ser colhidos antecipadamente “após a citação”, qualquer que seja o rito processual adotado (júri, ordinário, sumário, sumariíssimo, ação penal originária, etc). Caberá ao juiz justificar, fundamentadamente, a razão para a não antecipação da audiência.

A lei já está em vigor. Portanto, a ordem atual da instrução criminal, que manda ouvir a vítima, as testemunhas da acusação, as testemunhas da defesa e o réu (art. 400 do CPP), poderá ser diversa em tais casos. Se houver uma testemuha ameçada, esta poderá ser ouvida antes da vítima, por exemplo.

O problema é saber o que se entende por “após a citação“. Significa que “tão logo citado o réu” o juiz deverá ouvir a pessoa ameaçada? Ou isto só ocorrerá depois da resposta à acusação e da decisão que não determinar a absolvição sumária (arts. 397 e 399 do CPP)?

O espírito da reforma de 2008 foi estabelecer uma audiência una de instrução e julgamento. A nova lei de 2011 tem por objetivo acautelar a prova (pela sua antecipação) e desonerar, o mais rápido possível, a pessoa protegida do dever de colaborar com a Justiça com o seu depoimento, de modo a melhorar a proteção de sua vida ou integridade física.

Porém, a novidade presente no parágrafo único do art. 19-A da Lei 9.807/99 – ora incluído – poderá fracionar o rito instituído pela Lei 11.719/2008, em prejuízo do princípio da concentração, “quebrando” a audiência una.

Ideia acautelatória e antecipatória semelhante inspira o artigo 225 do CPP: “Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento“.

O artigo 156, inciso I, do CPP (alterado pela Lei 11.690/2008), também permite a antecipação de depoimentos, pois faculta ao juiz “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida“.

Portanto, a Lei 12.483, de 9 de setembro de 2011, além de desnecessária no contexto do processo penal, é mais um remendo de tecido novo em pano velho. Essas costuras tendem a funcionar mal. O CPP de 1941 está muito esgarçado. Enquanto isto, o PL 8045/2010 (já aprovado no Senado com o número PLS 156/2009), que institui o novo Código de Processo Penal se arrasta na Câmara dos Deputados.

Mais leis, mais reedições. As editoras jurídicas amam muito tudo isto.

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4 comentários

  1. Uma pergunta q me incomoda: de onde o senhor tira essas imagens dos posts? hehe
    achar no google uma rede de gol custurada é praticamente impossivel

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  2. Sem contar as “prioridades de tramitação”: o legislador tem estabelecido isso como um remédio infalível para combater a morosidade, indistintamente. Agora temos duas valas, que recebem todos os processos: os prioritários e não-prioritários. O Brasil é o país da solução fácil.
    Quanto às modificações, trata-se da já conhecida tautologia jurídica, em que vários artigos são criados repetindo o texto (ou a norma jurídica) já previsto em outro dispositivo, quando não para repetir, ipsis literis, o texto constitucional – como se precisasse “ordinarizar” os preceitos previstos na Carta Magna.
    E tem gente que reclama que o Congresso trabalha pouco: na atual conjuntura, quanto menos eles trabalharem melhor para o ordenamento jurídico.

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