A marcha da pamonha


A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a marcha da maconha não poderia ter sido outra. O STF não autorizou o uso de drogas nem o incentivou. Coube ao tribunal cumprir o papel de guardião da Constituição.

Por provocação da Procuradoria-Geral da República (PGR), em ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) firmada pela SubPGR Deborah Duprat, o STF acabou com o atordoante festival de liminares que vinham proibindo a marcha da Cannabis sativa pelo Brasil.

Nem o MPF, que propôs a ação, tampouco o STF, que a julgou procedente por unanimidade, pretendem estimular ou autorizar o uso dessa droga. O Brasil é signatário da Convenção de Viena de 1988, que coíbe o narcotráfico, e tem lei contra substâncias entorpecentes, a Lei 11.343/06. Porém, o País também tem liberdades públicas. Duas delas estavam em jogo na questão “maconheira”. As liberdades de reunião e de manifestação do pensamento.

Não são poucas as pessoas que defendem a liberação da maconha. Não são menos numerosos tampouco aqueles que defendem a completa descriminalização das drogas. Aqui na Europa, de onde agora escrevo, o debate é muito intenso em Portugal e na Holanda. Nesta, há espaços próprios para a venda de maconha para uso próprio. Alguns líderes globais, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, têm defendido a descriminalização da Cannabis sativa. Nos EUA, uma ONG formada por policiais, advogados e membros do Ministério Público, a Law Enforcement Against Prohibition (LEAP), sustenta abertamente a bandeira descriminalizadora. Estes e outros enxergam o fracasso da guerra global contra as drogas, capitaneada pelos EUA, que tem queimado milhões de “verdinhas” para combater implacavelmente o “matinho” e drogas mais perigosas.

Por trás desse discurso, há interesses escusos -de traficantes em busca de mais lucros e da indústria do vício, mas também há nobres iniciativas, como as dos pesquisadores que defendem o uso medicinal da droga. Num dos mais interessantes episódios de Law and Order SVU, a Lt. Anita Van Buren, acometida de câncer, vê-se no dilema de usar maconha para combater os enjoos resultantes da quimioterapia.

Um fato inquestionável é que os Estados não têm conseguido vencer as drogas, nem as antigas – que sempre foram usadas ritualisticamente – nem as novas – usadas precipuamente para fins recreativos. Algo semelhante aconteceu nos EUA, quando foi aprovado o Volstead Act, a Lei Seca, que pretendeu proibir o consumo de álcool. Não funcionou. Só o crime organizado e os produtores clandestinos de bebidas alcoólicas se beneficiaram da Era da Proibição. Poucos anos depois, a emenda foi revogada e o álcool voltou a ser uma droga “legal” e ninguém cogita criminalizar seu uso – salvo países islâmicos fundamentalistas – e muito poucos, mesmo no Brasil, aceitariam abdicar de seu uso recreativo. Curioso que alguns desses que “enchem a cara” de pinga, cerveja, vinho e uísque, ou que bebem socialmente estão entre os que clamam contra a marcha dos maconheiros.

Em suma, o problema é muito mais complexo do que parece e obviamente não pretendo resolvê-lo aqui. O certo é que, com a proibição dos debates, das marchas e dos protestos, estaremos sufocando com a fumaça da intolerância as sementes da democracia plantadas há quase 23 anos.

Não podemos deixar o direito penal entorpecer a razão. Baseado no artigo 5º da Constituição, o STF não liberou nada, não disse que se pode fumar agora. Mas liberou o debate. Desde 1988 isto nunca foi proibido.

20110705-081530.jpg
Venda de maconha e utensílios no centro de Amsterdã

12 comentários

  1. A impossibilidade de um encontro (qualquer) entre marcha da maconha e marcha dos pedófilos se faz pelo gozo. Pedofilia é da ordem da fixação! Não há nenhuma possibilidade produçao de subjetividade (o que marchas/movimentos implicam) entre os pedófilos, já que são ‘constitutivamente’ sujeitados.

    Curtir

  2. Antes de tudo, é importante apurar os reais os efeitos da maconha à saúde do usuário (e a vida de um modo geral). Eis aí o fundamento de qualquer política futura em relação à droga. Neste sentido, estão disponíveis hoje diversos estudos científicos sobre o tema, os quais têm fundamentado inclusive seu uso medicinal. Entre eles, o “Relatório Oficial sobre Abuso de Drogas”, realizado por uma comissão multidicisplinar e encomendado por R. Nixon, então presidente dos EUA. O documentário “Grass: the history of marijuana” ilustra bem os acontecimentos em torno do uso da maconha nos EUA desde o início do século XX até os dias atuais. O Brasil parece apenas seguir o andamento da “carruagem global” com um possível passo pela não criminalização da droga: vejamos que Portugal e Argentina, países próximos, legalizaram seu uso. Talvez o Brasil siga a mesma política da época da abolição da escravatura: pressionado pelo contexto internacional, a passos lentos vá cedendo com “leis para inglês ver”.
    A legalização da maconha certamente pode gerar um impacto também na economia. Resta saber também quais empresas comercializarão a droga, pois dificilmente a maconha ficará “livre” do mercado. Será a SouzaCruz ou talvez a Ambev, com uma nova bebida a base de marijuana?! Um fato é que a maconha tem um efeito social similar ao da cerveja – recreação – e traz consigo uma nova cultura, que certamente competiria com a indústria “cervejeira”. É possível que o fator econômico nessa discussão esteja latente.
    Já o Estado, ao “legalizar”, deixaria de gastar tanto com o combate ao tráfico e passaria a tributar o novo produto inserido no mercado. Esta tributação poderia vir também através de um controle sanitário, de políticas de informação e de prevenção ao uso, enfim, vejo por um lado positivo a não criminalização da maconha. O certo é que as drogas já acompanham a humanidade desde os seus primórdios, o que torna questionável qualquer política que se proponha hoje a eliminá-las completamente.

    Curtir

  3. Muito interessante o post, e também o é o desenrolar com a discussão nos comentários…

    Afinal, como no caso apontado sobre “marcha pela pedofilia”, nota-se que nem todas as questões merecem a chancela estatal para que sejam publicamente defendidos.

    Eis mais uma zona cinzenta, na qual perigosamente a “ponderação” pode ser sinônimo de valoração discricionária dos julgadores, elegendo o que pode ou não ser levado à discussão pública.

    PS: O senhor viu que foi publicada hoje uma alteração na LEP, admitindo legalmente a remissão da pena por horas de estudo? (como já vinha aceitando a jurisprudência)

    Att,

    Geise

    Curtir

  4. Hodiernamente vivemos em um cenário totalmente contraditório, pois ao tempo em que vivemos em um incensante combate às drogas e todo o sistema que está ao seu derredor, o nosso Supremo Tribunal Federal libera a marcha da maconha! Baseada em apenas um preceito fundamental. Não considero a liberdade de manisfestação deste natureza, mais importante do que o combate ao crime organizado, e nem tampouco às vidas que perdemos todos os dias em virtude das drogas! Não se trata apenas de uma simples manifestação, pois sabemos que existem grandes interesses envolvidos nesta marcha. Interesses de traficantes de drogas, de armas… Sabemos também que não faltarão pessoas usando a droga durante a caminhada. Sabemos que a maconha é o passo inicial para o uso das demais drogas, que tem um poder de destruição e dependência muito grande! Até quando vai a nossa liberdade? Considero tal liberação, como uma “apologia ao crime”, como uma apologia à “destruição da humanidade”! A cada dia o poder judiciário me decepciona com as suas decisões!

    Curtir

  5. Em tempos de coronelismo gospel, de tentativa de instauração de uma teocracia evangélica e de ditatura de valores cristãos, fico feliz em ver o STF garantindo nossa liberdade de expressão. Ah e apausos à Dr.ª Déborah Duprat sempre dando show na defesa das minorias, do laicismo, do pluralismo, da democracia e da igualdade e liberdade:

    ““O que está em debate é única e exclusivamente a liberdade de expressão como uma dimensão indissociável da dignidade da pessoa humana e também como uma dimensão pública, democrática e plural da sociedade brasileira”

    “Se permitíssemos isso, permitiríamos ao Estado que proibisse a manifestação da minoria, o que é a antítese da democracia.”

    Curtir

  6. Bom dia Vladmir,

    Em relação a marcha dos pedófilos, me parece importante fazer a diferenciação quanto ao critério da lesividade da conduta que é objeto da marcha.

    Se considerarmos que no caso da maconha o uso traz um dano irrisório ao usuário, inclusive, muito menor do que as bebidas alcólicas, o seu uso tem sido reconhecido, preponderantemente, como um ato de autonomia do indivíduo.

    Tal análise diferencia a marcha da maconha da marcha dos pedófilos, pois nesse caso o dano envolve terceiro, inclusive, um sujeito de direito prioritário no ordenamento brasileiro, as crianças e os adolescentes.

    Nesse tópico, interessante observar as diferenças das posições da Suprema Corte Norte-Americana e o Tribunal Constitucional alemão, este com posição menos extensiva da liberdade de expressão, quando em conflito com outros direitos fundamentais.

    Recentemente a Corte norte-americana teve decisão interessante, caso Snyder Vs Phelps, acho que é isso, quando uma religião fazia protestos contra a guerra em funerais de soldados mortos, e ainda assim foi reconhecido o direito de liberdade de expressão, AINDA QUE CAUSASSE GRANDE DESAGRADO, DOR E OFENSA A TERCEIRO, no caso os familiares do soldados. Também existia um detalhe que a religião fazia o protesto na frente da igreja.

    Seja pelas características da formação do Estado, como também pela s Escolas Jurídicas basilares em cada caso, a referência do Estado Alemão pode ser bastante contributiva para o Brasil.

    Assim, penso que no Brasil não admitir-se-ia tal possibilidade. O pano de fundo do debate me parece que está relacionado com o quanto o regime democrático se defende, seja pela garantia da liberdade de expressão ou dos bens jurídicos que podem vir a ser ofendidos por essa própria liberdade. Como essa balança nunca pode ser estática, inevitavelmente, nos aproximamos da necessidade de analisar caso a caso.

    De qualquer modo, é preciso ter cuidado, pois as vezes se leva um argumento ao extremo, como no caso, para se suprimir um direito fundamental.

    Ab.

    Samuel Martins.

    Curtir

  7. Caro Vlad, belo post. Sem querer entrar no mérito se deve ou não descriminalizar, li essa semana um artigo no correio brasiliense do promotor José Theodoro Correa de Carvalho e, ele vai ao cerne da questão.

    São cinco os principais argumentos de quem defende a descriminalização:

    i) Fracasso do Direito Penal e das Instituições estatais em combater as drogas

    ii) A necessidade de retirar o poder dos traficantes, garantindo uma especie de selo de qualidade às substancias comercializadas

    iii) O direito do usuário fazer o que quiser com o corpo

    iv) A prisão impediria que o viciado recebesse tratamento médico

    v) o uso medicinal e a “leveza” da maconha

    Reconhecendo a profundidade do debate, tais argumentos não se sustentam, como bem explica o promotor do DFT José Theodoro Correa de Carvalho:

    i) “(…) De fato, o sistema repressivo não tem o poder de coibir integralmente a prática do tráfico de drogas, mas isso também ocorre em relação aos demais crimes, como roubos, homicídios etc. e ninguém pensou em liberá-los.”

    ii) “(…)Por seu turno, se a venda de drogas fosse regulada, controlada e tarifada, é certo que haveria limites de idade para compra e de toxidade para as drogas e preço mais alto, o que indica que seguiria existindo um mercado paralelo, controlado pelos traficantes, para venda de drogas mais fortes e mais baratas. O problema da criminalidade continuaria existindo e a facilidade de acesso às drogas levaria ao aumento do número de consumidores”.

    iii) “(…) Outra hipótese seria a liberação apenas do consumo individual de todas as drogas. Apesar de parecer correto afirmar que cada um tem o direito de fazer o que quiser com o próprio corpo, consumindo, inclusive, produtos nocivos à saúde, essa regra não é absoluta. Quando se trata do consumo de drogas que alteram o funcionamento do cérebro, mudando comportamentos, gerando adicção e tolerância, não pode haver liberdade absoluta, visto que o vício provoca compulsão incontrolável pela próxima dose. Não bastasse isso, a droga produz mudanças de comportamento que criam riscos para o usuário e para outras pessoas que o circundam (doenças, acidentes, crimes, etc). Percebe-se, portanto, que a droga retira justamente o que seria a justificativa para se permitir o consumo: a liberdade. Quem é viciado em drogas perde a liberdade de escolher o próprio destino e passa a ser controlado pelo vício.”

    iv e v) “(…). Desde 2006, não existe pena de prisão para usuário e a proibição não impede que sejam implementados programas massivos de prevenção e tratamento, o que é fundamental. Se os governos permitissem ou regulassem o uso das drogas, como ocorre com o álcool, certamente, o número de consumidores aumentaria assustadoramente, pois a percepção do risco deixa de existir. Para que se tenha uma ideia, aproximadamente 75% da população brasileira já provaram álcool, contra menos de 9% que fizeram uso da maconha (Senad, 2005). A solução do problema das drogas virá das pesquisas médicas e da prevenção, enquanto a descriminalização poderia provocar problemas muito mais sérios, como uma epidemia de consumo de drogas. Não é necessário descriminalizar qualquer conduta para que a prevenção e o tratamento sejam aperfeiçoados, enquanto, paralelamente, são realizadas ações de redução da oferta. Afinal, quanto menos droga houver, melhor para a qualidade de vida de todos.”

    Quanto ao debate do STF, ao contrário do usual, achei o debate pobre, talvez por isso unanime. Faltou explicar como ponderar as liberdades públicas com os mandamentos constitucionais de criminalização. Poderia ter dado uma interpretação conforme ao artigo do CP que faz menção à apologia do crime.

    Saudações e mais uma vez parabens pelo blog,

    Márcio Rocha

    P.S.: Pelo amor de Deus,diga que você não é o procurador que foi autorizado a fazer um doutorado em Roma e de lá continuar trabalhando, as expensas do parco dinheiro do contribuinte.

    Curtir

    • Rapaz, pergunta difícil. Nos EUA, existe uma associação que defende algo muito parecido com isto, a North American Man/Boy Love Association (NAMBLA). A ponderação de valores é ainda mais difícil neste caso. No processo Curley vs. Nambla, a American Civil Liberties Union (ACLU) apoiou a associação de pedófilos.

      Curtir

      • Entendo que, infelizmente, os pedófilos tem o direito a esta marcha.
        Cada vez mais o Direito se abre para não se mostrar politicamente incorreto. Isso trará consequências desastrosas. A meu ver, a pedofilia consentida ainda vai ser liberada, pois o movimento por este direito cresce a cada dia. Vale a pena conferir este artigo da Dra. Suheyla: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/25112.

        Curtir

  8. Creio que o problema não está em proibir,apenas proibir não irá erradicar o uso de entorpecentes. A realidade é que pela lei 11.343/06, não há punição com prisão ao usuário de drogas, apenas medidas que, a meu ver, não abolirão o consumo de entorpecentes (art.28). Advertir ou submeter um sujeito a medidas educativas, não vai faze-lo parar de usar drogas. Na decisão em tela, muitos foram infelizes em mau interpretá-la, pois o Supremo, como o senhor disse, não liberou o consumo. O consumo de drogas não vai cessar com a mera letra da lei, vejo que há a necessidade de implantar políticas públicas sérias. Se é proibido usar drogas em publico, o indivíduo usará escondido. Talvez descriminalizar a “maconha” só faria com que seus usuários usasem-na em público.

    Curtir

Deixe um comentário