A cabeça de Lampião


A morte do maior terrorista de todos os tempos me fez lembrar o passamento do maior cangaceiro de todos os tempos.

Meu avô José Aras (1893-1979), escritor e poeta sertanejo, foi um dos que teve a sorte de não cruzar o caminho do cangaceiro Virgulino Ferreira. José Aras costumava contar a história de que nos anos 1930, numa das muitas picadas do Sertão de Canudos, foi salvo por um burro chamado Melindre. Viajava por ali quando, de repente, o bicho embicou em direção ao mato e não quis voltar para o caminho de terra batida. Depois de insistir sem conseguir que a besta retornasse ao leito da estrada, meu avô percebeu que sua vida acabara de ser salva por um burro esperto. Ao longe, passara o bando do cangaceiro. Sobre ele, Zé Aras escreveu o livro “Lampião, terror do Nordeste”. E, em retribuição, “Melindre” mereceu o melhor pasto para sua velhice.

As cidades tremiam ante sua passagem. E não era pelo galope das montarias. Havia cartazes por toda a região com ofertas de recompensa: “Lampião, vivo ou morto”. Se fosse hoje, poderiam chamá-lo de terrorista. O substrato em que nutriu seu ódio era feito da mesma pobreza e abandono nos quais Osama buscou seus soldados jihadistas.

Tal como a tenebrosa história de Osama Bin Laden, o rei de Tora Bora, os anos de terror do Rei do Cangaço terminaram com uma execução sumária e extrajudicial. Nenhum dos dois foi levado à Justiça. Para os dois existiam promessas de recompensa. Ambos foram mortos pelo Estado. E suas biografias mudam de sentido a depender do lado em que se está. Lampião, herói ou bandido não se sabe, foi morto por brigadianos da Polícia Militar, na Gruta do Angico, atual Poço Redondo/SE, onde se homiziava entre uma aventura e outra e onde se acoitava entre um assalto e um tiroteio. Sua morte foi em julho de 1938. Mas o que seguiu parece hoje.

As cabeças dos cangaceiros: arte moderna?

A gruta virou sítio turístico e um lugar de certa peregrinação. Foi isto que os americanos quiseram evitar dando fim ao corpo de bin Laden. A história sangrenta de Lampião terminou e o bandido mais temido do Sertão foi decapitado. A famosa fotografia que correu o mundo coroava uma gravíssima violação dos direitos humanos, praticada pelo governo. O suposto criminoso Virgulino Ferreira, o Lampião, “bandoleiro das selvas nordestinas”, estava morto e degradado. Vamos festejar.

Para aplacar a ira dos que o detestavam e para excitar os ânimos dos que eram ávidos por coisas macabras, as cabeças de vários integrantes do  bando de Lampião, inclusive a de Maria Bonita, foram enfileiradas numa escada e fotografadas com os seus adornos. A fotografia, obviamente, servia a dois propósitos: prova do grande feito e propaganda de governo. As cabeças humanas foram entregues ao “rei” opinião pública, como fora a de João Batista, e ficaram expostas no museu de antropologia do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador, até 1969, quando foram finalmente inumadas por ordem judicial. As exóticas peças de coleção são o retrato de um tempo bruto. Foram estudadas por vários médicos, entre eles Estácio de Lima, em busca de degenerações que explicassem suas vidas criminosas, quiçá, na esperança de encontrar anatomias lombrosianas.

Talvez a nossa curiosidade e as nossas dúvidas sobre a morte do líder da Al Qaeda só cessem quando Barack Obama autorizar a divulgação do vídeo da operação dos Navy Seals no norte do Paquistão, um lugar que é igual em aridez e que rima com sertão. Se o vídeo não sair, uma fotografia do “cangaceiro árabe” já ajudaria a “apaziguar” (sic) os desejos funéreos da espécie humana. Mas parece que não. Obama não quer mostrar a cabeça estourada de bin Laden, no que faz muito bem. O resultado pode ser pior. Não estamos mais em 1938.

Alguns devem estar pensando: a morte não é o bastante, não. São Tomé é o santo de minha devoção; o melhor é trazer a cabeça de bin Laden lá do Paquistão e expô-la na vitrine da nação; talvez no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, na entrada ou no saguão, tal como um dia foi exibida a do cangaceiro Lampião.

13 comentários

  1. Um texto sutil. José Aras, com certeza, o aplaudiria. Sr. Vladimir, como faço para adquirir o livro “Lampião, terror do nordeste”? Preciso lê-lo. José Aras possui algum outro livro na linha do cangaço? Aguardo resposta.

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  2. Muito bom seu breve texto, Vladimir.
    Como apanhado histórico e também por seu sabor literário.
    E a analogia política ressalta bem que, 70 anos depois de Lampião, em pleno século XXI, a barbárie triunfa e viceja lépida e faceira ante consciências distraídas e ávidas de sensacionalismo e emoções rasas.
    Direitos Humanos, autodeterminação, soberania, estado democrático de direito, princípios e valores civilizatórios… tudo indo para o ralo, como se estivéssemos condenados a viver na pré-história.

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  3. Excelente texto professor!Percebe- se que o tempo passa e histórias se repetem.
    Ouvi muitas histórias de Lampião, esse excelente texto fez-me lembrar da minha infância, quando escutava centenas de histórias do cangaço, contadas pelo meu pai. Parabéns pelo trabalho!

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  4. Dr.Wladimir Aras
    Que mundo pequeno!Que alegria ler seu texto e testemunhar as veracidades dos fatos nos seguintes seguimentos:1º.Conheci o Mestre José Aras,seu avô,na cidade de Feira de Santana, através do Ilustre Dr.Roque Aras,Angélica e seu até então esposo José Aras Filho, onde pude ouvir histórias belíssimas do nosso sertão, e ler seus poemas enriquecidos da labuta do homem nordestino.2º,a história de lampião,a quem não devoto nenhum mérito, pode ser sim comparada ao “de cujus” ora comentado,pois tive familiares fugindo das suas terras, escondendo mato a dentro,quando se anunciava através de berrões que Virgulino estava chegando.3º a comparação da exposição do corpo do Osama, causaria um clamor/pavor popular(para o bem ou para o mal),como o foi a exposição das cabeças do cangaceiro e sua parceira Maria Bonita,no extinto IML,localizado na 1ªFaculdade de Medicina do Brasil,no Terreiro de Jesus.

    Insigne Mestre,que maestria este texto!Lecionei na cidade de Feira de Santana nos idos de 1970 a 1986,nos Colégios Santo Antonio dos Frades Capuchinhos e Colégio Estadual,onde lecionava a disciplina Inglês.Lembro-me que tive um exímio aluno da família Aras.Quiçá tivesse sido V.Exa.mas,de qualquer sorte, esta família nasceu com o dom da palavra,e eu me orgulho da convivência com os clãs, ultra mencionados.Hoje,sou formada em Direito,aos 64 anos,resido no Rio de Janeiro,contudo com o meu umbigo fincado na nossa terra,e orgulhosa de tão indeléveis lembranças .
    Saudações
    Cleuza

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  5. Doutor,

    Bem lembrado. Não podemos esquecer também do Conselheiro que também fora degolado e do livro “Sangue de Irmãos”. Conselheiro assim como Lampião era cabra do sertão, nascidos em chão árido do nosso amado Nordeste, de poucas posses, Lampião pernambucano, Conselheiro cearense e com uma História vista pelos meus olhos bem mais digna, no entanto, ambos perderam a cabeça pelas mãos dos comandados do governo e ambas as cabeças serviram de troféu onde sabe-se para que e porque. Coisas da mente de alguns homens do passado que como muitos de hoje, não pensam na repercussão. Afinal as cabeças só ficam bem na foto quando juntas a seus corpos e com muita vida, lãbios movimentando-se em falas, olhos bem abertos e brilhantes, olfatos e audição bem apurados, nada de morte, nada de sofrer ou fazer sofrer.

    A paz,

    Jorge Silva

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