Mãos de tesoura


Fonte: Google Imagens

Todo mundo ficou chocado. De novo! É a segunda auxiliar de enfermagem que se mete em grave enrascada em razão de barbeiragens no atendimento de crianças. Ano passado (4/dez), num hospital de São Paulo, a funcionária K. A. teria levado a menina Stephanie dos Santos Teixeira, de 12 anos, à morte ao confundir X com Y. A suspeita trocou soro fisiológico por vaselina líquida e a aplicou na vítima. Na veia. Veja aqui. K.A. pode ter cometido homicídio culposo (art. 121, §3º, do CP): pena, de 1 a 3 anos de detenção, com o aumento de um terço (§4º).

Agora (30/jan) o drama se repete em outro hospital também da zona norte de São Paulo. M. F. C. decepou o dedo de um bebê de um ano quando tentava retirar um esparadrapo de sua mãozinha. Deu na Folha de São Paulo. A menininha perdeu a falange distal do dedo mínimo da mão direita. Isto porque a delicada auxiliar de enfermagem, sem o devido cuidado, utilizou uma tesoura para retirar a bandagem.

Ninguém foi preso. Nem poderia. Na pior das hipóteses para a suspeita, ela será enquadrada no crime de lesão corporal culposa (art. 129, §6º, do CP), uma infração penal de menor potencial ofensivo (IPMPO). Segundo o art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95, nestes casos não se impõe prisão em flagrante nem se exige fiança. Basta que o autor do fato se comprometa a comparecer ao Juizado Especial Criminal assim que intimado.

Teoricamente não é possível acusar a desastrada auxiliar do crime de lesão corporal dolosa, ou intencional. Difícil acreditar que tenha querido lesionar a bebê. Resta então o crime de lesão corporal culposa, que ocorre quando o agente não tem a intenção de ferir a vítima, mas age por negligência, imprudência ou imperícia. A pena é de 2 meses a 1 ano de detenção. Nestes casos, pode haver composição civil do dano entre os pais da vítima e a autora do fato, ou transação penal entre esta e o Ministério Público.
Se esses institutos consensuais não forem efetivados, a suspeita poderá ser denunciada pelo Ministério Público, e este órgão também poderá propor a suspensão condicional do processo, o que se traduz no cumprimento de determinadas condições para que a ação penal permaneça suspensa, entre elas a reparação do dano (art. 89 da Lei 9.099/95). Mas o processo penal só ocorrerá se houver pedido expresso dos pais da pequena vítima, a chamada representação (art. 88 da mesma lei). Caso contrário, a Promotoria estará de mãos atadas.

Se não for factível utilizar a suspensão condicional do processo (apelidada de “suscon”), não há a mínima possibilidade de a auxiliar de enfermagem ser presa, pois, se for condenada, a sanção penal privativa de liberdade (detenção) poderá ser substituída por pena alternativa, como a prestação de serviços à comunidade, com base no art. 44 do Código Penal.

Em suma, no que diz respeito a possíveis repercussões penais de sua conduta, a moça das mãos de tesoura pode ficar tranquila, pois, como visto, ela não corre o menor risco de ir para a prisão. Seus pesadelos noturnos e eventual processo no Conselho Regional de Enfermagem a assustarão muito mais. Creio que num caso assim, se provada a responsabilidade da funcionária, a justa punição é a demissão ou um longo período de afastamento da profissão acompanhado de uma rigorosa reciclagem. Mas é bom ver o que estão ensinando nesses cursos de auxiliar de enfermagem que se proliferam em todo o Brasil. A pequena paciente foi mais uma vítima do caos na saúde pública brasileira. Pelo menos seus pais poderão processar civilmente o Estado de São Paulo, já que o hospital é público. Mas isto não é consolo. É só o preço da dor.

6 comentários

  1. Pelas informações da imprensa, a enfermeira não é uma profissional recém formada. É alguém com 15 anos de experiência; com longos anos de trabalho e muito conhecimento acumulado, que nunca cometeu um erro grave como este. O que ocorreu com o bebê foi realmente triste. Tudo indica, porém, que foi resultado de um erro. Seres humanos erram e isto ocorre com muito mais frequência que a gente imagina, ainda mais em ambientes de estrutura precária como os hospitais públicos brasileiros. Quantas vezes erramos na nossa vida profissional? Muitas vezes. O mais curioso é como o sistema jurídico lida com erros humanos. Todo o sistema jurídico é desenhado para não admitir erros de conduta humana. É no mínimo curioso como os seres humanos fazem um sistema jurídico que não admitem erros deles próprios, como se não fosse crível admitir que seres humanos são falíveis e erram bastante por stress, falhas de cognição, falhas de atenção, desconhecimento, afobação, falta de equipamento adequado etc. Toda a ciência (física, matemática, estatística etc.) admite o erro e inseri isto num cálculo de probabilidade; só o direito que adota uma postura rígida de não admitir o menor erro de um ser humano, repelindo a probabilidade de eventos assim ocorrerem, digamos, “naturalmente”. Todas as ciências sociais trabalham com uma margem de erro na avaliação de condutas humanas; só o direito que desconhece isto. Estou dizendo isto porque acho que a enfermeira não merece ser punida criminalmente; nem mesmo ser punida com demissão. No máximo, colocá-la numa reciclagem é o bastante. Uma revisão sobre os protocolos de atendimento do hospital e sobre a implementação deles também cairia bem. Punir severamente a enfermeira não irá eliminar a probabilidade de novos eventos idênticos a este acontecerem “naturalmente” (digamos assim) no futuro. Eles com certeza se repetirão. Não estou querendo defender com isto a não punição de erros humanos. Mas acho que devemos concentrar a punição aos casos dolosos e graves.

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    • Leandro,
      Mal ou bem, o que você chama de erro pode derivar de imprudência, imperícia ou negligência em detrimento de bens jurídicos valiosos. A imprudência do motorista que empreende alta velocidade em zona urbana, ou a negligência do profissional de saúde que deixa de adotar cautelas adequadas repercute gravemente sobre a vida, a saúde ou a integridade física de outrem. Alguém morre ou fica inválido por erros assim. A vida em sociedade compreende riscos e cabe ao Direito exigir certas condutas dos cidadãos para que esses riscos (que os erros incrementam) sejam minimizados. Exatamente por considerar que as condutas culposas são menos graves é que o direito penal impõe penas menos severas (limites máximo e mínimo são menores) ao agente e admite sanções alternativas (impedindo o encarceramento).

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  2. Bela análise novamente prof. Vlad,

    Eu só tenho a ponderar o seguinte:

    Não poderíamos tentar a incidência penal do art. 13, § 2º c/c art. 14 (no caso de tentativa de homicídio) ou lesão corporal grave consumada com aumentos legais, tendo em vista o dolo eventual de quem assume o risco de decepar o dedo da infante ao retirar o curativo como uma eduarda “Scissorhands” [c/c art. 129, § 2º, IV, e 129, § 7º] mesmo no caso de lesão culposa, temos uma certa celeuma interpretativa acerca da incidência cumulada da inobservância de regra técnica, arte ofício ou profissão

    [pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, … Sendo doloso …, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. ]?

    Grande abraço e perdão pelo esforço hermenêutico, mas o caso precisa de reprimenda proporcional a gravidade da ação.

    Thiago.

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    • Admito a utilização da regra da relevância causal da omissão para hipóteses bem específicas, numa leitura …aham….garantista do art. 13, §2º, do CP. Não creio que o caso desta auxiliar reclame a aplicação de tal dispositivo. Para mim, a ação foi culposa. Porém, teoricamente acho que a causa especial de aumento de 1/3 seria cabível. Abs.

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