Estupro continuado: não adianta dizer não


O Superior Tribunal de Justiça (STJ), autointitulado tribunal da cidadania, deu mais um presente de grego aos cidadãos de bem. A novidade apareceu no julgamento do HC 125.207/ES, de que foi relator o ministro Og Fernandes, julgado neste mês de abril.
Trata-se de mais uma decisão da 6ª Turma, prolífica em julgados esquisitos. Há poucos dias no post “Nas graças do STJ” critiquei um outro julgado da mesma turma, em feito relatado pelo ex-ministro Nilson Naves. Naquela ocasião, o STJ acabara de facilitar a vida de ladrões de objetos deixados no interior de veículos.
Agora o caso é bem mais grave. Um pai violentou a própria filha de 10 anos pelo menos três vezes! Condenado a 21 anos de reclusão em primeira instância, o STJ reduziu a pena do réu para 10 anos, 9 meses e 18 dias de reclusão. Logo, em pouco mais de 4 anos, o acusado estará em regime semiaberto, uma vez que a progressão ocorre com o cumprimento de 2/5 da pena, em se tratando de crime hediondo.
Isto é, se esse crime hediondo tiver ocorrido depois de 2007. Se for anterior, para a progressão bastará cumprir 1/6 da pena (< 2 anos).

É bem verdade que o Superior Tribunal de Justiça pode dividir a culpa por essa decisão com o Congresso Nacional, que aprovou a Lei n. 12.015/2009. Segundo esta lei, desapareceu o crime de atentado violento ao pudor (art. 214, CP). Agora tudo é estupro (art. 213), um só crime. Com isso, tornou-se possível reconhecer a continuidade delitiva entre crimes da mesma espécie (estupro “vaginal” e estupro “anal”, por exemplo).

Foi por esta razão que, sem maior reflexão, o STJ entendeu adequado aplicar a continuidade delitiva (art. 71 do CP) entre os três atos de violência sexual praticados contra a menina pelo seu próprio pai. Porém, se tivesse um pouco mais de consideração pelas vítimas, a corte teria mantido a cumulação de penas, pela regra do concurso material (art. 69 do CP). Neste caso as sanções dos crimes seriam somadas. Como os crimes foram cometidos ao longo de dias, as condutas são autônomas e mais reprováveis, e não mera continuidade umas das outras. A reiteração do abuso não pode ser premiada. Mas foi isto que o STJ fez: agraciou o abusador! Ao lançar mão do art. 71 do CP, a pena do estupro (6 a 10 anos) é aumentada somente de um sexto a dois terços. Cabe a pergunta: as vítimas de crimes sexuais não estão protegidas pelo princípio da dignidade da pessoa humana? Que política criminal é esta?

Até há pouco a jurisprudência dominante vedava a aplicação desse benefício legal nos crimes sexuais de estupro e atentado violento ao pudor, pois os delitos não pertenciam à mesma espécie. Em junho de 2009, antes da Lei n. 12.015/09, o plenário do STF confirmou a jurisprudência da corte, entendendo que não há falar em continuidade delitiva dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor” (STF, HC 96.942/RS, rel. min. Ellen Gracie).

Claro que a lei penal mais benéfica retroage em favor do réu. Por isso, o legislador merece crítica, já que acabou autorizando essa involução da jurisprudência. Tanto que o STF caminhou na mesma direção em julgado do mês de março de 2010:

“AÇÃO PENAL. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. MESMAS CIRCUNSTÂNCIAS DE TEMPO, MODO E LOCAL. CRIMES DA MESMA ESPÉCIE. CONTINUIDADE DELITIVA. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 12.015/09. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. HC CONCEDIDO. CONCESSÃO DE ORDEM DE OFÍCIO PARA FINS DE PROGRESSÃO DE REGIME. A edição da Lei nº 12.015/09 torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima”. (HC 86.110/SP, relator min. Cezar Peluso, 2ª Turma, unânime, julgado em 02/03/2010).

É lamentável que isso tenha ocorrido. Há vários julgados do próprio STF e do STJ que impedem a aplicação da ficção jurídica denominada “crime continuado” quando o réu é um criminoso contumaz e as repetições revelam um modus vivendi. No HC 70.891, relatado pelo ex-ministro Sepúlveda Pertence, o STF decidiu que fica descaracterizado o crime continuado “quando independentemente da homogeinedade das circunstâncias objetivas, a natureza dos fatos e os antecedentes do agente identificam a reiteração criminosa indicadora de delinquência habitual ou profissional” (vide também o HC 64.451). Nisso reside a diferença entre continuidade delitiva e habitualidade criminosa, capaz de impedir a aplicação do benefício legal do art. 71 do CP contra pessoas que abusam repetidamente da mesma vítima, em geral suas mulheres, companheiras, filhas, sobrinhas, netas ou enteadas. Não é justo nem proporcional punir de forma frouxa aquele que persevera no crime. Faça as contas: pela regra do art. 71, caput, do CP, um estuprador primário, que abuse de sua filha, desafia uma pena de 6 anos de reclusão. Se repetir o estupro em menos de 30 dias, contra a mesma vítima, sua punição mínima será aumentada só de 1/6 (um sexto), o que resultará em uma pena de 7 anos de reclusão.  Se a regra aplicável fosse a do concurso de crimes (art. 69 do CP), a sanção final resultaria da soma das penas de dois estupros: 12 anos.

Eis o release divulgado pelo STJ sobre a nova orientação, pós-Lei 12.015/09, no caso do pai que estuprava sua filha de 10 anos:

STJ considera crime continuado o estupro e atentado violento ao pudor ocorridos no intervalo de menos de um mês
 
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu como crime continuado os atos de atentado violento ao pudor e tentativa de estupro realizados contra uma mesma vítima, em circunstâncias semelhantes, com intervalo de menos de um mês. O novo entendimento é fruto da alteração do Código Penal ocorrida no ano passado (Lei n. 12.015/09), que agregou ao crime de estupro (artigo 213) o de atentado violento ao pudor (antigo artigo 214).

O fato diz respeito a um condenado do estado do Espírito Santo que violentou a filha de 10 anos, próximo à casa em que moravam, numa área rural. No primeiro episódio, ele realizou ato libidinoso diferente da conjunção carnal. No segundo episódio, uma semana depois, ele novamente a obrigou a realizar ato libidinoso. Passados mais alguns dias, o acusado tentou manter conjunção carnal com a vítima, não obtendo êxito em razão da chegada de uma pessoa. A pena imposta pela Justiça capixaba foi de 21 anos de reclusão.

A decisão do STJ resultou na redução da pena e baseou-se em voto do relator do habeas corpus, ministro Og Fernandes. O ministro observou que as condições de lugar e maneira de execução são absolutamente semelhantes, sendo o intervalo entre os acontecimentos de menos de um mês. Daí o reconhecimento do crime continuado, inclusive entre os crimes de atentado violento ao pudor e de estupro. A Sexta Turma recalculou a pena em 10 anos, 9 meses e 18 dias de reclusão.

O artigo 71 do CP, que trata da chamada continuidade delitiva, afirma que, quando o agente, mediante mais de uma ação, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, pelas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução, devem os subsequentes serem considerados como continuação do primeiro. Nesses casos, é aplicada a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, com o aumento de um sexto a dois terços.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa”.

 
Fonte: nanihumor.blogspot.com

Minha opinião: leis e decisões desta ordem deixam nossas crianças ainda mais desprotegidas diante de abusadores sexuais. Fica difícil combater a pedofilia, inclusive a de origem parental, quando as autoridades do Legislativo e do Judiciário mostram-se lenientes com tais “predadores”. Embora exista uma norma perfeitamente aplicável a estupros em série (art. 69 do CP, concurso material), o STJ e o STF começam a admitir a continuidade delitiva em crimes sexuais (art. 71 do CP), unicamente em benefício do tarado, mesmo que as repetições tenham ocorrido em dias distintos ou separadas por semanas. A questão do lapso temporal entre os abusos é fundamental nos crimes “domésticos”, pois esses crimes são repetidos ao longo de meses ou anos. Ao perseverar em crimes tão horrendos contra a mesma vítima, o réu não merece o benefício de política criminal insculpido no art. 71 do CP. Essa posição das cortes superiores brasileiras, baseada num grosseiro erro do Congresso Nacional, resultará em reprimendas mais brandas mesmo para pedófilos habituais ou criminosos sexuais “profissionais” (serial rapists). Os agressores sexuais de mulheres e crianças em casos de violência doméstica, cíclicos e pontuais como um relógio, serão os maiores beneficiados, se a nova orientação se firmar. Embora a questão pudesse resolver-se no âmbito da prudência dos juízes, parece que estamos muito aquém de concretizar a doutrina da proteção integral neste aspecto. Diante da resposta penal mais branda, os estupradores sentir-se-ão “estimulados” a continuar seu modus vivendi. Repetir a violência sexual contra a mesma vítima não custará tão caro quanto praticá-la pela primeira vez. Não adianta dizer (que) não. Literalmente, para os abusadores “valerá a pena”.

10 comentários

  1. ESSE E O PROBLEMA DE SENADORES QUE NAO TEM NOÇAO DE LEGISLAÇAO FAZEREM LEIS QUERIAM ENDURECER ACABARAM DIMINUINDO A PENA MOSTRA A NULIDADE DO CONHECIMENTO DAS LEIS

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  2. Lamentável. Simplesmente lamentável, como tudo referente ao direito penal brasileiro. Tenho pena de vocês juristas que tem que conviver com essa sujeira todo santo dia. Excelente post e blog. Parabéns.

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  3. Excelente “post”. Lamentável a decisão do STJ.
    É preciso sempre lembrar que o direito não é apenas técnica. É técnica impregnada de valores. Com esse entendimento, vê-se que o “tribunal da cidadania” não se fia pelo eixo axiológico da dignidade da pessoa humana, tão caro à ordem jurídica e que, por distorções como essas, tem custado ainda mais caro para as vítimas de delitos.
    Parabéns pelo ótimo blog, Vladimir! Abraços.

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  4. Na hora que li essa notícia, pensei na hora “que diabo é isso? E o parágrafo único do art. 71?!”

    Daí, fui ler de novo o art. 71 e percebi o problema. Devido à mudança da Lei 12.015/09, o crime de estupro passa a ser único, sumindo o AVP e permitindo, em tese, a interpretação de crime continuado, mesmo com atos sexuais distintos.

    No entanto, como trata-se de prática que envolve violência ou grave ameaça, em regra, entraria em ação o parágrafo único do art. 71, que permitiria o aumento até o triplo da pena mais grave.

    O problema (e isso me deixou p. da vida quando percebi) é o texto seguinte no p. único do citado artigo: “contra vítimas diferentes”. Assim, não é uma interpretação errônea afastar a aplicação do dispositivo (e manter o infeliz crime continuado em sua forma normal) para o estuprador que pratique atos sucessivos contra a mesma vítima, guardados os limites de local e data requeridos…

    Triste, mas não vejo incorreção técnica na decisão do STJ, forçada pela péssima técnica legislativa da Lei 12.015/09.

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