Súmula Vinculante 11: nada mudou!


Adolescente de 15 anos algemado (dez/2008) (foto: Bahia Notícias)

No começo deste mês de fevereiro, o Correio noticiou que o ministro Gilmar Mendes, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), fez um anúncio pomposo: “acabou o terror policial no Brasil”.

Fiquei surpreso com a categórica afirmação do ministro. Como ele é dado a rompantes retóricos, logo vi que o justice se referia às chamadas prisões-espetáculo realizadas pela Polícia Federal em várias cidades do Brasil, naquelas operações policiais batizadas com nomes interessantes e outros muito esquisitos. O ministro tem um estilo peculiar: parece gostar da exposição midiática. Quando era Advogado-Geral da União, Gilmar Mendes, chegou a dizer que havia na Justiça um “manicômio judiciário”. Para atacar o Ministério Público, gosta de repetir que a instuição faz “denúncias ineptas”. Com a Polícia Federal, implicou por causa do “Estado Policial”. Leia a matéria abaixo. Depois volto com meu comentário.

CORREIO
10/02/2010 – 1h39  Gilmar Mendes diz que se orgulha de ter acabado com “terror” da PF

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, disse na noite desta terça-feira (9) que se orgulha de ter acabado com a espetacularização das prisões feitas pela Polícia Federal e com o “quadro de terror” que ameaçava o trabalho do Judiciário. “Tínhamos a polícia dando o tom a todas as nossas instituições. Era a polícia que dizia o que o promotor tinha que fazer. Todos viviam um pouco temerosos”, disse. Mendes participou do lançamento do Observatório das Inseguranças Jurídicas no Campo e aproveitou o discurso para fazer uma espécie balanço de sua gestão no STF.    Segundo Mendes, em alguns casos, os magistrados que questionavam condutas da polícia também eram atacados. “Tenho orgulho de ter enfrentado esse estado de coisas. A Polícia Federal havia se tornado o poder. E onde a polícia se torna poder, a democracia não existe”, comparou.    Mendes disse que a súmula vinculante do STF que limitou o uso de algemas em operações da PF e em julgamentos encerrou o “modelo de espetacularização” que eram comuns até então. “Isto o Brasil deve ao STF. Só isso já bastaria para consagrar o Supremo”, avaliou.   A súmula, editada em 2008, proíbe a utilização indiscriminada de algemas durante as operações policiais e nos julgamentos. Por unanimidade, o plenário do STF determinou que as algemas só devem ser usadas quando houver chance de fuga do preso ou risco à segurança.

O tema aqui é a Súmula Vinculante 11, conhecida pelos íntimos como Súmula “Dantas-Cacciola”. Juristas espirituosos deram-lhe esse apelido porque a SV 11 foi aprovada em 13 de agosto de 2008, logo após a:

  • prisão de Daniel Dantas, ocorrida em 8 de julho daquele ano na “Operação Satiagraha”; e
  • a extradição do ex-banqueiro Salvatore Cacciola para o Brasil, que chegou aqui preso em 17 de julho de 2008.

Meras coincidências, decerto. A súmula determina que “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada da excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade […]”. Até aí nenhum problema. Alguma regulamentação era realmente necessária para evitar abusos. Esse regramento deveria ter vindo do Legislativo. Mas sua inércia abriu a porta para os juízes legisladores do STF, tão característicos dessa quadra de ativismo judiciário, nos dois anos da “Corte Mendes”.

A SV 11 foi aprovada quando o STF discutia o caso do banqueiro pedreiro Antonio Sérgio da Silva, que participou algemado da sessão do tribunal do júri de Laranjal Paulista/SP, na qual foi condenado a 13 anos de prisão por homicídio (HC 91.952/SP).  O STF entendeu, a meu ver corretamente, que, neste caso, o uso de algemas pode ter influenciado a formação da convicção dos sete jurados, que são juízes leigos. Porém, a aprovação do texto foi feita de forma tão açodada pelo STF que sobrou até para a filha do ministro Cezar Peluso, a então juíza da comarca, Glaís de Toledo Piza Peluso, que foi duramente criticada, inclusive pelo próprio pai (sem que ele soubesse, é claro), por ter permitido que o julgamento ocorresse com o réu algemado. Foi assim que o pedreiro de Laranjal (sic) tornou-se o representante involuntário de uma causa nacional: a abolição das algemas.

ALGEMAS – UTILIZAÇÃO. O uso de algemas surge excepcional somente restando justificado ante a periculosidade do agente ou risco concreto de fuga. JULGAMENTO – ACUSADO ALGEMADO – TRIBUNAL DO JÚRI. Implica prejuízo à defesa a manutenção do réu algemado na sessão de julgamento do Tribunal do Júri, resultando o fato na insubsistência do veredicto condenatório. (STF, Pleno, HC 91952, relator min. Marco Aurélio, julgado em 07/08/2008).

De fato, nem sempre é necessário algemar suspeitos. Cabe ao agente policial determinar essa necessidade, caso a caso, para impedir fugas ou para prevenir reações violentas contra os policiais, terceiros ou ferimentos autoinfligidos, e nunca para humilhar o preso. Entretanto, se, para o presidente do Supremo Tribunal Federal, “terror policial” ocorre quando a Polícia Federal algema pessoas legalmente presas, por ordem judicial, não sei mais o que é terror.

Se pudesse, faria dois convites ao ministro Gilmar Mendes.   Primeiro, convidá-lo-ia para assistir a um desses programas extremamente populares da TV aberta brasileira, que mostram o “mundo cão” policial. Em qualquer desses “shows de direito penal” (em Salvador um dos mais vistos é o “Na Mira“, exibido pela TV Aratu, afiliada do SBT), o magistrado veria que parte da Polícia brasileira continua algemando pessoas indiscriminadamente, espancando cidadãos e, com o auxílio da imprensa marrom, execrando os indivíduos culpados, os aparentemente culpados e também os inocentes que tenham cara de culpados.

Depois do tour midiático, convidaria o presidente do STF para dar uma olhada no verdadeiro terror que é o tratamento dado pela Polícia Militar a pessoas negras e pobres ou com “fenótipo” de suspeitas. Esses continuam sendo algemados corriqueiramente, porque não são parecidos com o  banqueiro pedreiro Antônio de Laranjal Paulista.

Se quisesse, o ministro Gilmar Mendes ainda teria direito a um bônus de realidade. Esta semana, o Ministério Público do Estado da Bahia instalou uma força-tarefa de promotores de Justiça para investigar a atuação de um grupo de extermínio aparentemente formado por policiais militares baianos. Em Vitória da Conquista, sudoeste do Estado, 14 pessoas foram mortas e outras três estão desaparecidas, após o assassinato do soldado PM Marcelo Márcio Lima Silva. Esse crime ocorreu no dia 28 de janeiro de 2010 numa área supostamente dominada pelo narcotráfico. Depois disso, começaram as execuções sumárias. As vítimas, em sua maioria adolescentes ou jovens adultos, foram retiradas de suas casas por policiais armados sob as vistas de familiares impotentes. Depois de sequestrados pelo Estado, vários deles apareceram mortos, alguns com tiros na cabeça, como foi o caso de Oséas Belas de Oliveira, 15 anos, o primeiro a ser exumado. Isto é terror, ministro Gilmar Mendes!

Eis o verdadeiro “Estado Policial” contra o qual as instituições democráticas e a imprensa devem se opor. Quando o STF “enfrentar esse estado de coisas”, o povo brasileiro poderá “consagrar o Supremo” num altar que a corte ainda não merece. Falta muito para a hora do aplauso. Por enquanto, é melhor reaprender o refrão de uma conhecida canção dando-lhe um toque de sofrimento, lamento e pavor: Oh, oh, oh, nada mudou!

8 comentários

  1. Professor Vladimir,

    Já que o Ministro Gilmar Mendes aspira tanto elevar o STF ao “status” de consagração, basta que o Pretório Excelso siga, como exemplo, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida no dia 24 de novembro de 2010 (Guerrilha do Araguaia vs Brasil). Essa sim é digna de aplausos!!!

    Aliás, quando o assunto é “terror policial”, o Estado Brasileiro alcançou belíssimas consagrações no cenário internacional, dentre as quais vale destacar:

    1. A de descumpridor da “obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”. (Guerrilha do Araguaia vs Brasil);
    2. Morosidade das autoridades policiais e da justiça (Caso Sétimo Garibaldi); e
    3. Suspeita de parcialidade do Judiciário (Caso Sétimo Garibaldi).

    Por enquanto, no que diz respeito as reclamações constitucionais endereçadas ao STF por descumprimento de Súmula Vinculante n.º 11, vamos continuar a ver esta sendo aplicada em casos excepcionais, como a do banqueiro, ou melhor, pedreiro do Laranjal e julgadas improcedentes para negros e pobres.
    ____

    Opa, tendo em vista o caso de grupo de extermínio que aparentemente envolve policiais do estado da Bahia, gostaria que, se possível, o ilustre professor fizesse um artigo sobre a “Tipificação do Crime de Desaparecimento Forçado de Pessoas” que deve estar tramitando no Congresso Nacional.

    Obrig.

    Paulo Henrique

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  2. Colega,

    O que você opinar sobre a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública relativamente à defesa dos direitos dessas miseráveis vítimas da exposição midiática?

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  3. Excelente artigo. Só não esquece de avisar ao Ministro Gilmar Dantas, quer dizer, Mendes […], que para a consagração do Supremo bastaria a sua saída.

    A sua imagem, bem como suas decisões e até mesmo comentários, desmoralizam […] o Judiciário Brasileiro e nos passam a grande sensação de impunidade que existe em nosso país.

    Cumprimentos.

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  4. Na verdade entendo que o que acabou foi o Estado Policialesco, não o Estado Policial. Vlad, não caberia à DPU e DPE ajuizarem reclamações constitucionais diretamente no STF para garantir o respeito a SV11 ? Entendo que nesse aspecto ela foi útil. Abrs.

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    • Hélio,

      A DPU e a DPE vêm fazendo isso que você sugere. Mas o STF tem negado todas as reclamações, exaamente como fez ontem com esta apresentada pelo advogado de um suposto traficante do Mato Grosso. Leia abaixo.

      Eles viram que criaram uma SV inexeqüível em relação à grande massa de presos do País e estão “tirando o corpo fora”.

      Abs.

      Vladimir Aras

      NOTÍCIAS DO STF

      Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 201

      Arquivada reclamação de corretor preso com uso de algemas que alegava desrespeito à SV 11

      O Supremo Tribunal Federal (STF) arquivou Reclamação (Rcl 9734) ajuizada pelo corretor de veículos G.A.C., preso em flagrante com o uso de algemas, em dezembro de 2009, pela acusação de tráfico de drogas em Rondonópolis (MT). Ele pedia o reconhecimento da nulidade de sua prisão, com a consequente expedição de alvará de soltura, alegando desrespeito à Súmula Vinculante nº 11, do STF, que disciplina o uso de algemas por parte da polícia.
      O advogado do corretor revelava, na reclamação, que as imagens apresentadas por duas emissoras de televisão locais mostram seu cliente descendo da viatura policial algemado, com as mãos para trás, escoltado por policiais armados. Para a defesa, trata-se de “verdadeira cena midiática de humilhação e afronta à SV 11, do STF”. Isso porque, no entendimento do advogado, G.A.C. e sua esposa não teriam demonstrado resistência, intenção de fuga ou oferecido qualquer forma de risco. “Não houve a justificada excepcionalidade escrita por parte da autoridade policial, conforme exigido pela Súmula”, arremata.
      Arquivamento
      O relator do processo, ministro Cezar Peluso, considerou inviável o pedido. Inicialmente, ele destacou que o instituto da Reclamação só é admissível em duas hipóteses: para preservação da esfera de competência da Corte e para garantir-lhe a autoridade das decisões. “Verifico que, a toda evidência, os fundamentos invocados pelo reclamante não se relacionam com usurpação de competência, nem com afronta a decisão do Supremo Tribunal Federal”, disse.
      O ministro afirmou que, conforme a própria defesa admitiu, o juiz apontado como autoridade coatora reconheceu a nulidade da prisão do acusado em virtude da SV n° 11 do STF, “de forma que não há, aqui, hipótese de violação ou descumprimento de decisão desta Corte”.
      Da leitura da inicial, o ministro Cezar Peluso verificou que a pretensão da defesa é a de ver desconstituída a prisão cautelar decretada pelo juízo reclamado. Porém, ressaltou que a via escolhida é inadequada.
      EC/LF
      Leia mais:
      07/01/2010 – Corretor preso com uso de algemas alega desrespeito à SV 11 e pede liberdade ao STF

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      • Pelo que entendi o próprio juiz reclamado reconheceu a nulidade da prisão em virtude das algemas, mas houve a manutenção do cárcere por outro motivo. Preciso ler o inteiro teor. Abrs

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  5. Olá, muito pertinente seu comentário sobre a súmula. Saindo do comentário, vc poderia me indicar algum livro de processo civil
    ? Um bom pra concurso público MP estadual. Obrigado

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  6. Acho que chegou a hora do STF e da comunidade jurídica também discutir o transporte dos presos naquelas “gaiolas” que ficam na parte traseira das viaturas. Quer maior desrespeito com a dignidade humana do que levar os presos naquelas “jaulas” como “animais ferozes”? Inclusive, adolescentes também são transportados nestas “jaulas” em tontal afronta ao princípio da dignidade humana e violação do art. 178 do Estatudo da Criança e do Adolescente. Será que isto seria objeto de Súmula Vinculante ? O País ainda tem muito que evoluir em termos de dignidade humana. E as cadeias ? Superlotadas, a sociedade faz vista grossa e, quando um juiz, como ocorreu em MG, tem a coragem de mandar soltá-los por problemas graves de higiene, ele é aposentado compulsoriamente pelo seu Tribunal. Enquanto isto, Arruda fica numa sala da PF com ar condicionado e recebendo pizza. Vejo lindas dissertações sobre a teoria do mínimo existencial e dignidade da pessoa humana, contudo, referidas teses só ficam nas academias sem aplicabilidade prática no Brasil. Até quando?

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