Controle externo: o pomo da discórdia


Na abertura dos episódios da série Law and Order (Universal), um locutor, com voz grave e tom solene, anuncia: “In the criminal justice system, the people are represented by two separate yet equally important groups: the police, who investigate crime, and the district attorneys, who prosecute the offenders. These are their stories.” 

Também no Brasil, a Polícia e o Ministério Público compõem o sistema de Justiça criminal e devem trabalhar juntos em prol da coletividade (o povo). Mas nem sempre é isto o que ocorre.

A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público (MP) a atribuição de exercer o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, CF). Tendo em vista que o MP é o titular da ação penal pública (art. 129, I, CF), nada mais natural que a instituição possa fiscalizar a atividade-fim policial, composta pelas tarefas de investigação criminal (determinação da materialidade do crime e de seu autor) e de segurança pública (policiamento ostensivo).

É natural que os órgãos de controle interno, compostos por membros de uma mesma corporação, tenham dificuldades de dar conta dessa atividade fiscalizatória, devido as relações próximas que se estabelecem e à comunhão de interesses entre fiscais e fiscalizados. Por estes e outros motivos, é necessário o controle externo. Em muitos países, mesmo as questões disciplinares internas da Polícia são entregues a órgãos externos à corporação policial investigada, como são alguns escritórios de Internal Affairs, ou corregedorias.  

No Brasil, o regramento legal para o controle externo está no art. 9º da Lei Complementar 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União) e no art. 80 da Lei Federal 8.625/93, que se aplica aos Ministérios Públicos estaduais. No entanto, nunca foi agradável o cumprimento dessa atribuição.Fui promotor de Justiça na Chapada Diamantina de 1993 a 1996 e os delegados das comarcas em que atuei não ficavam muito satisfeitos com as visitas de controle externo. Naquela época, essa atividade era cumprida às cegas, sem qualquer apoio e ainda existiam no interior da Bahia os delegados ditos “calças curtas” (não bachareis), recrutados entre praças da Polícia Militar ou entre cidadãos comuns sem formação jurídica, mas com fortes conexões políticas.

Para especificar as atribuições de promotores de Justiça e procuradores da República, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão de controle externo da instituição ministerial, editou a Resolução n. 20/2007, que cuida da matéria, e vale em todo o País. O Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) baixou ato semelhante há mais de dez anos. Trata-se da Resolução 32/1997.

Mesmo assim, as coisas neste terreno não são nada fáceis. Contudo, pouco a pouco, o Ministério Público vem cumprindo a tarefa que lhe foi imposta pelo constituinte. Nos Estados, há órgãos de controle externo da atividade policial. No MPF, o procurador-Geral da República organizou em várias unidades federadas (exemplos, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro e São Paulo) os Grupos de Controle Externo da Atividade Policial (GCEAP). No seu IX Encontro Nacional, ocorrido em 2009, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (2ª CCR), órgão temático do MPF para a área criminal, publicou um roteiro de atuação destinado a orientar procuradores da República no controle externo da atividade das polícias da União, especialmente a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal.

Em agosto de 2009, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG), uma organização não-governamental que reúne os chefes do Ministério Público brasileiro, divulgou o seu Manual Nacional do Controle Externo da Atividade Policial, endereçado especialmente a promotores de Justiça encarregados da fiscalização da Polícia Civil e da Polícia Militar dos Estados-membros e do Distrito Federal.

No entanto, após uma reportagem publicada no Consultor Jurídico nesta semana, o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Sandro Avelar, divulgou nota na qual atacou o manual do CNPG, considerando-o uma tentativa de subordinar a Polícia ao Ministério Público. Dois itens do livro incomodaram enormemente os delegados federais, como se lê em trecho da nota, que reproduzo abaixo:

“A negativa do direito de representação pela Autoridade Policial e a tese de que o Ministério Público é titular privativo da capacidade postulatória para adoção de medida judicial preventiva ou cautelar, além da tramitação do inquérito policial apenas entre Polícia e Ministério Público são exemplos do modelo de subordinação da investigação à acusação, que se deseja implantar a força no Brasil e, infelizmente, serve apenas para alimentar rusgas entre as instituições, segmentando‐as ainda mais, prejudicando, com isso, os trabalhos de persecução criminal e o interesse da sociedade.”

Tratarei desses dois pontos noutro post.

Minha opinião: o problema não é de lei ou de falta dela. Há normatização suficiente sobre o controle externo, cuja finalidade é o aperfeiçoamento da persecução criminal e da segurança pública em benefício da sociedade. Quem pode ser contra isto? Portanto, o problema está no relacionamento. Membros do Ministério Público e policiais têm um histórico conflituoso, que, em larga medida, interfere negativamente no desempenho das duas instituições. Isto não é bom. Mas uma coisa é certa. Não pode haver poder sem controle, como num “Estado Policial”. Se a Constituição quis submeter a Polícia ao controle externo do Ministério Público (art. 129, VII), a mesma Constituição submeteu o Ministério Público ao controle externo do CNMP (art. 130-A). Le pouvoir arrête le pouvoir. E isto é bom.

6 comentários

  1. Dr. Vladimir, gostaria de sugestões referente ao tema: Controle Externo da Atividade Policial. Pois este será o Tema do meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso).

    Respeitosamente,

    Wallace Barbosa, estudante de Direito.

    Curtir

    • O MPM atua nas ações penais por crimes militares que tramitam na JMU. Essas ações, em regra, são baseadas em inquéritos policiais militares (IPM), que são presididos por membros das Forças Armadas, no cumprimento da função de polícia judiciária. Logo, o MPM também realiza o controle externo.

      Curtir

  2. Dr. Vladimir, venho acompanhando atentamente a leitura de seu blog. Adicionei-o no twitter com o nome zz4hsg, contudo, fui bloqueado por V. Exa. Gostaria muito de continuar acompanhando as postagens feitas lá.

    Curtir

Deixar mensagem para Hendrikus Cancelar resposta